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quinta-feira, 31 de julho de 2014

"Tudo o que o céu permite" (1955): o mundo edulcorado da burguesia em xeque

Mais um post com o intuito de revelar a Hollywood desmistificadora de estereótipos socialmente estabelecidos, na linhagem da antepenúltima entrada do blog. O gênero em questão é, desta vez, o melodrama, historicamente acusado de haver colaborado na manutenção de mitos cuja voga é duradoura: a coisificação da mulher, a cisão do mundo na dicotomia bem/mal, a visada cristã à existência (crença numa “providência divina” que pune os vilães e eleva os heróis, brindando-os com Happy Endings). 
Incorporado pelo cinema, o gênero teve seu papel revisado. Se historicamente o melodrama serviu mais à invenção (e imposição ao público) de uma sociedade ideal que à sua apresentação realista, nas telas ele gradualmente viu incrementar-se seu papel de crítica social. Objeto paradigmático desse esforço é a filmografia rodada por Douglas Sirk nos anos de 1950, da qual exemplo bem acabado é a obra “Tudo o que o céu permite” (“All that heaven allows”, 1955). 
Em pauta, a burguesia norte-americana: rosada, endinheirada, polida no mais alto grau, no entanto, hipócrita e mesquinha. Sirk não economiza nas tintas. Literalmente. Aproveita-se dos arroubos cromáticos do Technicolor para tingir o objeto de seu olhar. Dá de ombros ao realismo e inclina-se à estilização, sublinhando, assim, a crítica social – Vincente Minnelli, outro exímio manejador das cores, atingiria objetivo muito semelhante um ano mais tarde, em “Chá e Simpatia”. Aliás, a tomada em paralelo desses dois filmes, além de acrescentar à análise, desvela a sofisticação analítica com que a capital do cinema poderia se debruçar aos seus temas. 
A cidadezinha americana criada por Sirk tem muito do campus universitário que é tema do filme de Minnelli. Ambas, presas a estereótipos tão sólidos quanto falsos – falsidade que os diretores não se furtam a explicitar, largamente. No segundo filme, Minnelli casa aquela flor delicada que é Deborah Kerr com um troglodita. Treinador esportivo de uma universidade para meninos, o homem é, psicologicamente, a extensão do tipo que fisicamente retrata. Um grosseirão insensível, fomenta nos alunos o espírito de competição e a manutenção de preconceitos. 
Pega para cristo um garoto muito delicado – naturalmente um homossexual, na visada rasteira da sociedade de então. Transforma-o na “garotinha” da turma, enlouquecendo-o paulatinamente; leva-o, mesmo, à tentativa de suicídio – precipício do qual o garoto é salvo pela personagem de Kerr, que, tão carente de afeto quanto ele, deita-se consigo para prová-lo um homem. Os preconceitos nunca findam, são sempre substituídos por outros, já que a sociedade como um todo é putrefata: o menino sensível descobre-se “homem”, mas a mulher nunca consegue se limpar da mancha que era a perda de sua “honra” – mesmo que a causa tenha sido honorável e que seu esposo nunca venha a sabê-lo. O filme critica a sociedade de aparências, mas é a moral melodramática, já tão enraizada na sociedade, que dá fecho à história – a mulher que pecara contra o lar perde-se para sempre, embora salve o garoto. 
Minnelli, como Sirk, usa o melodrama de um mesmo modo ambivalente: carrega nas tintas, avivando as fraturas da sociedade, mas, ao se apoiar tão estritamente no gênero, acaba por comprar seus pressupostos estruturais. Precisamos ter em vista que a Hollywood da época era regida por uma severa censura, daí a necessidade de se respeitarem certas imposições morais. Tais filmes precisam ser submetidos a uma análise fina; a crítica que fomentam repousa nos seus interstícios. “All that Hollywood allows” (“Tudo o que Hollywood permite”), paráfrase do título do filme de Sirk sobre o qual falo, também batiza um livro de larga envergadura crítica, o qual analisa os meandros dos melodramas hollywoodianos no que toca ao modo como se trabalha, neles, a questão dos gêneros (masculino/feminino); especificamente, como o retrato que esses filmes tecem dos gêneros por vezes fá-los (faz os gêneros) escapar de sua suposta inerência. Recomendo-o. 
Voltemos a Sirk. “Tudo o que o céu permite” narra a história de amor de Cary Scott (Jane Wyman) e Ron Kirby (Rock Hudson), casal separado não apenas pela posição social como pela idade: ela é uma cinquentona viúva de classe média-alta, com um par de filhos casadoiros; ele, seu jardineiro, homem bonito, na flor da idade e solteiro. Nenhum liame o prende: ele trabalha mais por gosto que por precisão, quando e onde quer; vive num pequeno quarto, contíguo à estufa onde faz germinar suas flores. Já ela, todos os liames a prendem: a família, as obrigações da alta sociedade à qual ela pertence, a sua casa senhorial, as amigas vazias... Pinta-se a dicotomia estrita, como já se vê. O casal construirá um mundo no intermédio, respeitando, bem entendido, “tudo o que o céu permite” – moral cristã inserta logo no título. Não há ruptura total, ou senão não haveria filme. 
No entanto, a crítica se impõe. Sirk fala abertamente sobre sexo, assunto realizado sob muitas cobertas nos filmes do período. Quem levanta o tema é a filha mais nova de Cary, garota que tem Freud na ponta da língua, mas se revela uma puritana de marca maior, no que toca à aceitação da sexualidade da mãe. A senhora naturalmente deveria se acomodar com um homem mais velho, um companheiro (e não um amante), alguém de sua estirpe social, que ratificasse o lugar ocupado pela família naquela sociedade. O irmão segue-lhe de perto, presenteando a mãe com um aparelho de televisão, que acompanharia seus momentos solitários. Nem um, nem outro aceitam que a mãe desça do pedestal em que a sociedade a pusera, e se entregue ao desejo e ao amor romântico, nascido entre ela e um indivíduo muito diferente de si. 
Para caracterizar este novo tipo de mulher, nascida nos albores da revolução sexual, o diretor pende do melodrama à fábula. O homem é idealizado ao extremo: másculo, alto, tão belo de corpo e alma quanto as flores que cultiva. Cervos pastam alegremente em seu jardim; o fogo acolhedor crepita em sua lareira. Naturalmente não se discute como um simples jardineiro encontrou recursos para construir tão cintilante cenário. Por outro lado, na sociedade citadina corvejam ignominiosos abutres, com sede de manchar a reputação de Cary: salva por um homem cuja rusticidade é apenas pretensa, pois mais parece um cavaleiro andante. 
Assim marcha a cinematografia de Sirk, entre a manutenção de uns estereótipos e – felizmente –, a recusa heroica de outros; nesta tentativa de reproduzir em microcosmo o mundo, edulcorando-o para melhor exacerbar suas chagas.


domingo, 11 de março de 2012

Nunca houve filme de terror tão bom como "Os Inocentes" (1961)

por Chico Lopes

Uma constatação: entre todos os gêneros cinematográficos, talvez sejam os filmes de terror os que oferecem maior quantidade de produções ruins ou de lixo abaixo do desprezível. E, no entanto, esses filmes são produzidos com abundância, as locadoras estão cheias deles (assemelham-se em tudo, até nos títulos, como que indiferenciados pela apelação) e o público (sobretudo o adolescente) continua consumindo-os. Bons enredos, bons atores, boas direções, boa fotografia, nada disso está mais em questão: trata-se de uma espécie de vício, a repetição é cega, compulsiva, e os addicts pouco se importam com isso, mais interessados em conferir sustos e mortes sádicas. De vez em quando, produções como “O sexto sentido” (The sixth sense, 1999) e “Os outros” (The others, 2001) se destacam, e são sempre lembradas como modelos de sugestão e qualidade a seguir, mas as ideias mais felizes são diluídas e recicladas descaradamente em filmes que parecem ter um potencial interessante até certa altura e de repente despencam no total descrédito dos clichês mais abusivos. A publicidade intensa acaba favorecendo os mais... digamos, originais. Vamos vê-los na esperança de uma redenção, de uma direção excepcional, inteligente. Mas a originalidade é apenas uma distinção ligeiramente acima da média geral (que é muito baixa) e, na verdade, originalidade e comércio deslavado se casam muito mal: as concessões que têm que ser feitas a um público imbecilizado fazem sempre com que o comércio vença.

"Os outros" (2001)

Filmes de terror (especialmente americanos) são fenômenos mais para a área da sociologia e da psicologia que da cinefilia, de algum tempo para cá. Eu gosto do gênero, para minha infelicidade, e vejo muita coisa, sempre acreditando que de cada vez possa me surpreender com qualidade debaixo de um título menos conhecido. Qual! Quebro a cara sem parar, e, no entanto, sigo vendo (gosto do senso se atmosfera que se instala, para ser arruinado daí a pouco). Acabo vendo só para constatar variantes em torno do mesmo tema: bandos de jovens adolescentes que vão a um acampamento ou se perdem numa estrada vicinal etc e se deparam com os Jasons da vida ou com cabanas onde demônios guardam seus mais terríveis segredos em livros cabalísticos que, claro, alguém vai decifrar para os personagens e para o público e contém ameaças horrendas. Os jovens vão morrendo um após outro (e é impossível lamentar as mortes, pela total cretinice dos tipos) e sempre resta um último para esticar a coisa e reservar um susto que já não assusta mais ninguém.
Filmes desse tipo parecem exorcizar medos adolescentes obsessivos, e por isso talvez sejam tão obsessivamente ruins e repetitivos – a neurose obsessiva que satisfazem precisa do mecanismo de repetição, sua mecânica é cega. Rendem-se à superstição e ao moralismo mais rígido e autoritário totalmente, como se um adolescente fosse uma criatura destinada ao desastre a menos que os pais, os mais velhos, professores, vizinhos respeitáveis, os mestres e feiticeiros com suas advertências extremamente conservadoras – “não se envolva com isso que o perigo é terrível” – o oriente. Naturalmente, o conselho só faz aguçar a curiosidade pela “coisa errada” e está pronto outro enredo de filme vagabundo. Esses filmes perpetuam tabus – desafiá-los acaba sendo ruim demais para os xeretas e desobedientes. Parecem servir à perfeição para, através do mistério, exercer irracionalidade e opressão sem questionamentos. O passado, a tradição, as regras que não devem ser ultrapassadas, têm neles um papel decisivo. Tudo que vendem é uma espécie de submissão assustada ao obscurantismo salvaguardado pelo medo – “viu só no que deu você ter me desobedecido?”, clama o adulto careta.
O modelo americano pegou no mundo todo – de repente, depara-se com filmes assim procedendo da Noruega, da Rússia e de outros cantos menos previsíveis, e os eternos adolescentes cretinos estão lá, a postos para uma excursão desastrada pelo terreno do Mal onde não deveriam penetrar. A onda de terror japonês fez entrar na coisa crianças esquisitas, mortos e fantasmas menos previsíveis, em produções que até teriam sua poesia se aproveitassem aquelas ideias em outras direções que não a do mais rasteiro e ofensivo clichê. Mas portas se entreabrindo, rangentes, noites de tempestade quando o clímax do drama se instala, gente correndo de mascarados com facas ou outras armas nas mãos, misteriosos farfalhares de mato em torno de acampamentos e olhos de monstros não vistos seguindo os incautos, isso nunca se acaba...

ADAPTANDO HENRY JAMES

Acho, na verdade, que nunca vi melhor filme de terror que o clássico “Os inocentes” (The Innocents, 1961), de Jack Clayton, tanto que ele é modelo indireto para “Os outros” e é sempre citado como o clássico que todo diretor de terror respeitável precisa ver. Ainda que depois vá fazer, seguindo os ditames de produtores ávidos por dinheiro e modas entre adolescentes, mais uma porcaria a ser despejada nas locadoras. É ótimo citar fontes prestigiosas, mas ninguém quer perder dinheiro, ora...
Eis a situação do filme, produção inglesa de 1961: uma mulher jovem, solteira, filha de um pároco de um vicariato rural, vai a Londres atender a um anúncio em que se oferece emprego para uma preceptora. O tio de um casal de crianças órfãs, solteiro, bonitão e mundano, precisa de uma moça para cuidar dos pequenos, que são, para ele, um grande incômodo. O que ele exige? Que a moça que se dispuser ao trabalho vá para uma propriedade, Bly, no interior da Inglaterra, e fique lá, cuidando das crianças, sem aborrecê-lo de modo algum com os problemas, podendo – na verdade, devendo – resolver tudo sem que a vida brilhante dele em Londres seja perturbada. Ela rumará para a propriedade, fará amizade com uma servidora rude e confiável, descobrirá que as crianças são excepcionalmente inteligentes e belas. Até que certas verdades, nada agradáveis, começarão a aparecer. O casalzinho de crianças órfãs, lindíssimo, verdadeiramente angelical (Martin Stephens é Miles e Pamela Franklin é Flora), pode estar sendo vítima de possessão por um casal já morto, o estranho criado Peter Quint e a preceptora anterior, Miss Jessel.
Na novela original (muito conhecida no Brasil), “A volta do parafuso”, Henry James não deu nome à sua personagem. No filme ela tem – é Miss Giddens. E é interpretada por Deborah Kerr em estado de graça – não vi na carreira dela um papel em que seu tipo se ajustasse tão perfeitamente e em que ela fosse uma atriz tão visceral e convincente. O tio é vivido, só no início, por Michael Redgrave (fala-se que era para ser Cary Grant, mas ele achou o papel pequeno demais). Aparece apenas para jogar charme sobre a suscetível Miss Giddens, visivelmente uma solteirona reprimida para quem um homem daqueles, chique e mundano, seria um partido extraordinariamente desejável. Na verdade, ela só aceita a missão com sua estranha exigência porque sucumbiu ao charme do solteirão hedonista e espera tornar-se uma heroína aos olhos dele, cuidando das crianças e não o importunando. A primeira coisa que ouvimos dele é “a senhorita tem imaginação?”, ao que ela responde excitadamente que sim.
Tem mesmo, para sua desgraça. E, aliás, há, em torno da novela de James (de que fiz uma das traduções no Brasil, pela Editora Landmark, SP, em 2004), toda uma mística e uma incansável polêmica, porque James escrevia com tanta sutileza, em tantas camadas psicológicas dignas de desconfiança, que muita gente simplesmente acha que não havia fantasmas em Bly, que tudo era imaginação da preceptora. É preferível que o ângulo psicanalítico não seja enfatizado demais, no entanto, porque essa mistura de literatura e análise freudiana restringe muito o alcance da história. Embora a preceptora, uma figura vitoriana de mulher casta, reprimida, dotada de imaginação romântica como uma heroína de Charlotte Bronte, que “introjetou” todos os valores da época através de um pai sem dúvida repressor, seja um prato cheio para os Juquinhas que veem o dedo da sexualidade em tudo. E James, que foi um escritor sobretudo alusivo, semeie sugestões perversas (talvez involuntárias, reflexos de sua própria repressão) por toda a narrativa. Mas ele confessou que só quis fazer uma história de fantasmas, não mais.
Bem, o prodígio do filme é que ele adapta James melhor que qualquer outro filme já realizado (pelo menos dos que vi, embora confesse não ter visto “Tarde demais” (The Heiress, 1949), adaptado de “Washington Square”, dirigido por Wyler e com desempenho muito elogiado de Olivia de Havilland). É impressionante como, para um espectador que tenha passado primeiro pela leitura da novela, tudo estará lá: a atmosfera, o cenário escolhido (o lago é uma perfeição), a Bly imaginada por James, os fantasmas (Miss Jessel e Peter Quint são pavorosos, até porque mais sugeridos do que vistos claramente), a casa, seus cômodos imensos, escadarias e ornamentos vitorianos, a impecável Meg Jenkins como Mrs. Grose, uma criada analfabeta e dona de grande calor humano. A fotografia de Freddie Francis é um primor. Francis foi quem fez a fotografia de “O homem-elefante”, de David Lynch, por exemplo. É um artista consumado do preto e branco e, tivesse o filme sido feito a cores, teria perdido violentamente em nuances preciosas.
“Os inocentes” parece ser dessas poucas operações miraculosas que de vez em quando o Cinema faz com a Literatura, propiciando um par de dançarinos que nunca tropeçam um no outro, ajustam-se muito bem e saem valsando divinamente. Henry James, se tivesse vivido tanto para ver o cinema dos anos 60, não teria um só reparo a fazer. Nisso talvez haja dedo de um grande escritor, Truman Capote, que, junto com John Mortimer, usando diálogos de uma versão teatral do texto escrita por William Archibald, adicionou doses de sua conhecida malícia ao trabalho (e, em certos pontos, creio eu, exagerou um pouco). Mas o respeito à obra literária é mantido escrupulosamente e, sem fugir à fidelidade, o filme toma pequenas liberdades criativas (como a lágrima de Miss Jessel sobre uma escrivaninha) que só acrescentam. São liberdades a partir de possibilidades bastante verossímeis que estão na narrativa original.

O SUSTO COMO ARTE


Não pude ver o filme quando passou pelos cinemas em seu tempo porque era menino ainda, não tinha 14 anos (que era a censura da época), mas pessoas que o viram, na minha cidade natal, comentaram comigo, dizendo que uma aparição de Peter Quint lhes deu um susto tão violento que passaram uma semana sem dormir direito. Um amigo desenvolveu fobia a janelas, porque “Os inocentes”, naturalmente, não foge à gramática do gênero: tem muitas janelas com cortinas esvoaçando ao vento, e é numa janela que Quint enfia sua cara horrenda, sugerindo coisas que a gente só pode imaginar para a preceptora (ele jamais fala coisa alguma; é muito mais uma influência pairando na mansão de Bly do que um fantasma; e de Miss Jessel, sua companheira, só de vez em quando ouvimos a voz tristíssima e o pranto).
A razão pela qual um filme desses, tão pouco explícito em seu terror, parece mais assustador que qualquer outro, é digna de reflexão. Acredito que é porque o filme tomou o susto como uma forma de arte, como uma forma superior de compreensão da alma humana e suas desolações. Há nele uma espécie de solidão pungente, um abismo de classes (bem, se trata da esnobe Inglaterra) e uma dose de sofrimento moral e afetivo (tanto nos fantasmas quanto nas crianças) que acaba por nos impressionar, em revisões. Evidente que Quint e Miss Jessel tinham uma relação escabrosa, sado-masoquista, da qual ficamos sabendo pelas alusões cautelosas e envergonhadas da criada Mrs. Grose. O casal de órfãos, com sua beleza e vulnerabilidade, é de fazer pena, pela solidão, pelo egoísmo do tio, e a gente os imagina tão sozinhos em suas brincadeiras que não tinham por que recusar a influência dos mortos que haviam conhecido em vida (na verdade, é como se Quint e Miss Jessel simplesmente houvessem continuado a brincar com eles, na condição de espectros). O momento em que o garoto Miles declama um poema (que é abertamente um convite a que o espectro venha vê-lo) é de uma enorme beleza. Flora dançando no quiosque junto ao lago, invocando a presença de Miss Jessel, que surge do outro lado, pouco vista, mas terrível em seu luto e sua desolação, é outra cena de uma beleza extraordinária. Lição: filme de terror pode ser grande arte (o que hoje em dia parece impraticável).
“Os inocentes” também tem outra lição: é um filme de ruídos conscientemente muito elaborados, começando pelo início quando, em tela totalmente negra, ouve-se pássaros cantando, e vão surgindo as mãos crispadas da preceptora. E, numa voz infantil de menina, ouvimos uma musiquinha doce que, no entanto, está recheada de desolação e sexualidade de tal modo que entendemos que ela sintetiza a relação de Quint e Miss Jessel. Foi composta por Georges Auric, autor da bela trilha sonora do filme, e tem letra de Paul Dehn (aí está, pra quem quiser conhecer o filme):

We lay my love and I beneath the weeping willow.
But now alone I lie and weep beside the tree.

Singing "Oh willow waly" by the tree that weeps with me.
Singing "Oh willow waly" till my lover return to me.

We lay my love and I beneath the weeping willow.
A broken heart have I. Oh willow I die, oh willow I die
.

Afora esta cançoneta doce e sinistra, insistente, retomada em vários momentos dramáticos e tocada numa caixinha de música, os sons (de pombos destroncados, gritos, sussurros, ventania, ruídos ainda mais furtivos e imprecisos) em torno de Bly fazem com que o filme ganhe uma eloquência envolvente, que pode matar de susto algum incauto que se deixe levar profundamente por ele (isso sim é terror: alusões, matérias-primas obscuras para a imaginação, a paranoia e o desespero).
Outros achados: o quarto de brinquedos do filme parece uma ideia reaproveitada por Ridley Scott muitos anos depois em “Blade Runner” (1992) e há algo do posterior “Veludo Azul” (Blue Velvet, 1986) no inseto que sai da boca de um querubim no jardim, assustando a preceptora. Também as tomadas de voos de pombos levam diretamente a lembranças de “Blade Runner”. A influência de “Os inocentes” se espalhou por outros gêneros. É de fato terror, e terror da mais pura espécie – elegante e peçonhento. Quanto a essa influência, no entanto, lembrar que ela teve frutos um pouco bastardos, como o filme “Os que chegam com a noite”, de Michael Winner, realizado em 1972. Winner, cineasta muito inferior ao diretor Jack Clayton, especula sobre a relação entre Quint e Miss Jessel falando do que teria acontecido antes de suas mortes, tendo Marlon Brando e Stephanie Beecham no papel do casal. O filme é de uma fase em que a carreira de Brando estava em total decadência e não faz falta nenhuma.
O fundamental, mais que ver uma vez, é ter “Os inocentes” para vê-lo e revê-lo muitas vezes, por cinefilia. O DVD está no mercado pela distribuidora Oregon, sem extras, mas com uma cópia muito bonita, com todo o esplendor do preto e branco de Freddie Francis.