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sábado, 11 de dezembro de 2010

Ser ou não ser, eis a questão...

Não, não estou em meio a uma crise existencial. Antes o contrário: depois de terminada a correria do semestre, deu-me uma vontade imensa que retomar um projeto de post sobre alguns usos que o cinema fez do famoso monólogo em que o torturado príncipe da Dinamarca, depois de assombrado pelo espectro do pai, faz desfilar seus fantasmas diante da audiência. A cena, que abre o terceiro ato e situa-se bem no meio de Hamlet, sublinha com maestria (e a partir de agora deixarei de lado os óbvios adjetivos elogiosos, desnecessários, já que falamos de Shakespeare) o desespero vivido pelo protagonista - cristão e político exemplar que almeja punir a mãe pela entrega sexual desta ao assassino do pai dele, o qual além de tudo era cunhado da mulher, ligação considerada incestuosa naquela corte. A célebre cena se sucede ao encontro entre a rainha, o novo rei e os dois amigos de infância de Hamlet, convocados à Dinamarca pelo rei para que pusessem um freio na loucura cada vez mais flagrante do herdeiro do trono. Na cena, Hamlet examina dialeticamente, sob a ótica cristã, o porquê de os sofredores não colocarem fim às suas vidas:

Morrer - dormir -
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!
Os sonhos que hão de vir no sono da morte
Quando tivermos escapado ao tumulto vital
Nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão
Que dá à desventura uma vida tão longa.
(tradução de Millôr Fernandes)

E paramos por aí na citação porque o solilóquio já é bem conhecido, se não por meio da peça, por meio das dezenas (literalmente) de versões cinematográficas dela rodadas desde que, em 1889, a diva Sarah Bernhardt aceitou a incumbência de desempenhar defronte de uma câmera da Pathé o duelo final entre Hamlet e Cláudio. As versões mais conhecidas da tragédia são a de 1948 e a de 1990, protagonizadas, respectivamente, por Laurence Olivier e Mel Gibson. Ainda que a primeira seja, sem dúvida, a melhor (dando ao talentoso ator-diretor o Oscar de melhor performance, além de outros três prêmios da academia, de melhor filme, direção de arte e figurino), não consigo gostar tanto dela quanto gosto da peça - talvez porque lhe falte aquele quê explosivo que torna as palavras impressas em cada página da peça mais resplandecentes que a tradução visual delas na película. E olhem que sou bastante adepta de adaptações de obras literárias ao cinema... Talvez seja esse desconforto que me faz preferir as leituras paródicas da cena. Por isso, e porque eu estou contagiada pela alegria de final de semestre e da aproximação do Natal, vou passar por duas dessas paródias a partir de agora.

*

Comecemos pela screwball comedy "Ser ou não ser" (To be or not to be, 1942), dirigida pelo alemão Ernst Lubitsch. A comédia ocupa com razão posto em todas as listas dos 100 melhores filmes que eu conheço: ela não só é divertidíssima, com um elenco de afinação ímpar - encabeçado por dois grandes comediantes da época, Jack Benny e Carole Lombard -, mas também faz uma crítica incisiva ao Nazismo. O filme merece um post bem detido só para si, que trate dos incríveis trocadilhos a la Lubitsch e demonstre como sua estrela estava bela e impecável na pele da atriz sedutora, mas como estou preguiçosa na mesma medida em que estou alegre, deixarei a tarefa para outro dia. Usarei esse espaço para recomendá-lo entusiasticamente àqueles que admiram "O grande ditador" (1940), "Bastardos inglórios" (2009) e "Vincere" (2009) - obra prima do cinema italiano que deu o ar da graça bastante rapidamente por aqui faz algumas semanas -, pois "Ser ou não ser" sem dúvida seguiu a linhagem fundada por Chaplin e inspirou muitas sátiras maravilhosas a malucos como Hitler e Mussollini.

Carole Lombard

Nesta película de Lubitsch, a crise existencial vivida por Hamlet ganha um plano muito mais palpável. O inimigo também apresenta-se na pele de um governante autoritário, mas mil vezes mais mortal: Hitler invade a Polônia, onde habita a troupe de teatro oficial - oficial mas, não obstante, extremamente canastrona... - chefiada pelo exibido Joseph Tura, interpretado por Benny. Por meio de sucessivos usos do teatro-dentro-do-teatro - estratégia tão querida por Shakespeare e fundamental em Hamlet para que o príncipe se certifique de que o tio efetivamente matara-lhe o pai - Lubitsch faz sua troupe polonesa exercer papel fundamental na resistência ao nazismo e, por fim, escapar ilesa do país. O uso da representação dentro da representação é tão engenhoso na película que deixa o espectador de primeira viagem completamente perdido - o grupo atrapalhado personifica tão bem o alto escalão nazista que torna difícil sabermos quem é o ator e quem não é, o que, em última instância, sublinha a crítica, já que, como bem mostrara Chaplin, os dois ditadores europeus, embora perigosos, não passavam de dois canastrões.
"Ser ou não ser", portanto, desce da esfera religiosa para empunhar as armas na luta pela liberdade individual - armas que são, neste contexto, o mise-en-scène e as interpretações. O Shakespeare é aqui modernizado não apenas para saciar o gosto do público mas para atender a um anseio do momento histórico. O famigerado monólogo, dito textualmente por Tura, salienta o fato ainda uma vez, já que apenas tem como utilidade servir de deixa para que os apaixonados de sua esposa deixem a plateia para irem se encontrar com ela. Vejamos a sequência, deixando de lado a ironia trágica que o filme encerra - já que foi o último rodado por Carole Lombard, morta no auge do talento e da juventude quando o avião onde viajava foi abatido pelo mesmo inimigo contra o qual "Ser ou não ser" se bateu.



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E agora, paremos um pouco em "O filho da noiva" (2001), do argentino Juan José Campanella - uma de minhas mais novas paixões.
Quando escrevi sobre "O Segredo de seus olhos" (2009), esbocei minha impressão de que seu diretor fora influenciado pelas screwball comedies. Depois de passear por sua filmografia, acho que posso transformar minha suspeita em certeza.
"O filho da noiva" não deixa nem um pouco a desejar quando comparado àquele que lhe deu o Oscar. Campanella aproveita-se mais uma vez da versatilidade de Ricardo Darín, que, se no "Segredo..." está um galã que nada deve a Clark Gable, aqui está magistral como o homem comum que luta para administrar uma ex-mulher, uma filha pré-adolescente, um restaurante e uma mãe cuja memória se esvai devido ao Alzheimer.
O filme abre num flashback nostálgico da infância do menino Rafael, na época em que ele era um Zorro de brinquedo e a mãe era sua heroína. Uma brusca viagem ao presente mostra uma mãe já num estado de avançada senilidade e um filho esquivo que em nada lembra o herói que fora em criança. A situação se agrava quando seu pai, um romântico à moda antiga, decide expor sua esposa aos olhos dos conhecidos, já que quer casar-se com ela na igreja e, assim, realizar o sonho de juventude da mulher.
O enredo, que daria um dramalhão bem ao gosto das películas de Carlos Gardel, dá as mãos à comédia devido à perícia com que Campanella conduz seu elenco amparado no excelente roteiro do qual foi um dos responsáveis.
O filme está recheado de saborosos diálogos e situações, os quais muito se aproximam daqueles que mestres do gênero criaram nos Estados Unidos entre 1930 e 1960 (o trecho que upei de "To be or not to be" oferece-nos exemplo cabal do quão bem aproveitado foi esse gênero). A réplica da ex-mulher de Rafael à afirmação dele que desejava mudar-se para o México e levar a filha consigo é impagável: "E quem vai dar aulas pra ela? O professor Girafales?". A sequência do casamento do velho casal é uma das melhores que já vi - nela, humor e poesia entremeiam-se de um modo como eu apenas vi antes em obras-primas da comédia amalucada: como a sequência de "Midnight" (1939) em que Don Ameche descobre o esconderijo de Claudette Colbert e, enquanto ambos trocam farpas, descobrimos que foram feitos um para o outro; ou a sequência do casamento de Tracy Loyd e C. K. Dexter Haven em "Núpcias de Escândalo" (1940). Como Mitchell Leisen e George Cukor, Campanella consegue criar situações cômicas extremamente humanas - o que é, como os mestres do ofício não me deixam mentir, o caminho seguro para a atemporalidade.
Agora, pararei de falar antes de inserir aqui mais algum spoiler - esse filme merece a visita do leitor e eu não tenho o direito de estragar sua fruição.
Porém, antes de tudo, Shakespeare: ele aqui surge na sequência mais hilária da película, quando o ator figurante Nino Belvedere (ótima performance de Héctor Altério), amigo do protagonista, conta-lhe que está apaixonado pela namorada daquele. O monólogo de Hamlet é declamado em primeiro plano, numa sequência deliciosamente estapafúdia que ganha ainda mais irrealidade na medida em que, em segundo plano, os amigos engendram um arranca-rabo que muito se aproxima daquelas loucuras dirigidas por Blake Edwards (diretor de Hollywood que melhor trabalha a relação entre primeiro plano e plano de fundo no gênero cômico, penso eu) entre os anos 60 e 80, como "Um convidado bem trapalhão" (1968). Como bem fizera Lubitsch no inicio dos anos 40, Campanella inverte aqui os ponteiros, transformando a mais viceral tragédia na mais arrematada comédia - comédia que não deixa de trazer consigo o gosto daqueles passionais - e belos - tangos argentinos cantados por Gardel, Hector Varella e pelo próprio Nino Belvedere quando este descreve ao amigo a fossa em que mergulhara quando perdeu esposa e filha. E, por falar em tango, alguém está se lembrando de Billy Wilder, de "Quanto mais quente melhor", do Jack Lemmon e do gabiru?