Mostrando postagens com marcador King Vidor. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador King Vidor. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2024: parte 8

“La Bohème” (1926)

Por fim, o programa Il canone rivisitato/The canon revisited [O cânone revisitado] abordou obras no geral já conhecidas do público amante do cinema silencioso. De novo, destaques são a qualidade da cópia disponível, a possibilidade de vê-la na tela grande, ou ainda a inventividade do acompanhamento musical. ´
Este último caso aplica-se à deliciosa obra alemã “Saxophon-Susi” (1928), de Carl/Karel Lamač, que respinga, em sua temática e em sua montagem, a sinuosidade do jazz, mimetizada maravilhosamente pelo trio Neil Brand, no piano, Frank Bockius, na bateria, e Francesco Bearzatti tecendo o leitmotif de Susi no saxofone. 

Desempenhada por Anny Ondra, a protagonista é uma jovenzinha da elite econômica que, por muito amar o jazz e o teatro ligeiro, seu palco principal de expressão, acaba trocando de lugar com a amiga pobre, juntando-se a uma companhia teatral mambembe, enquanto a amiga é internada numa escola de boas-maneiras – local contrapontístico à vivacidade que poreja da trupe alimentada por este gênero musical que então era considerado o epítome da modernidade. Susi torna-se, às barbas da família, dançarina e saxofonista da moda. 
Uma cena impagável é quando a jovem, retornando à sisuda casa onde crescera, é convencida pelos pais a convidar as amigas da suposta escola de boas-maneiras para um chá, e alguns acordes da música da moda – não por acaso, tocada por Susi – soam no gramofone da família, levando todo o grupo a abandonar-se aos irresistíveis requebros do jazz, sob os olhares perplexos dos pais da jovem e de toda a ancestralidade que preenche as paredes do local. 
Mas o “cânone revisitado” em Pordenone este ano foi sobretudo o dramático. A começar pelo dinamarquês “Blade af Satans Bog” (Leaves from Satan’s Book, 1920), de Carl Th. Dreyer, rodado pela afamada Nordisk – longo, porém, também belo, no esforço enciclopédico comum àqueles tempos de englobar toda a história do mundo no espaço de uma película. 
Nele, quatro episódios separados são atravessados pela personagem de Satanás, anjo caído que recebe de Deus a condenação de tentar os humanos. O filme cobre os últimos momentos de Jesus, depois da traição de Judas, a inquisição espanhola, a Revolução francesa e, finalmente, a guerra civil finlandesa, no ano de 1918. Neste último episódio, uma jovem funcionária do telégrafo é tentada a cometer um ato de traição. A resistência da moça faz com que o ciclo fatal se quebre. 
Da Dinamarca de 1921 para a Itália de 1917. A obra em questão é “Rapsodia Satanica”, de Nino Oxilia, rodado pela Cines e protagonizado por esse epítome de diva que foi Lyda Borelli; filme sobre o qual já tive a oportunidade de escrever no início de 2021. Naquele momento eu o havia visto num canal num link do Youtube, numa versão que passou pelo crivo do laboratório bolonhês L’Immagine Ritrovata – o qual devolveu toda a pujança original deste filme feito com as mais diversas técnicas de coloração da imagem. Vê-lo na tela grande, numa experiência tão próxima àquela vivenciada pelo público de cem anos atrás, foi uma experiência inesquecível. Borelli, Oxilia e a Cines concorrem para criar, de forma absolutamente sedutora, um veículo para a exacerbação dos dotes físicos (e metafísicos) de sua estrela, mulher feita de luz. “Rapsodia Satanica” coloca exemplarmente à baila o funcionamento do star system. O fio de enredo que o sustenta é mera desculpa para o desfile da diva em cena, tingida pelas cores as mais estupefacientes. 
E, enfim, esta revisita do cânone brindou-nos com uma obra maior da maior de todas as atrizes do cinema silencioso: a película norte-americana “La Bohème” (1926), protagonizada por uma Lillian Gish em estado de graça, e pelo sempre satisfatório galã John Gilbert. Dirigida pelo grande King Vidor, a obra é menos baseada na ópera de Puccini que no romance “La Bohème: scenes de la vie de Bohème”, de Henri Murger. 
Enquanto a obra operística apressa o idílio amoroso e o interrompe bruscamente, no filme a história caminha mais a passo, e tecem-se de forma detalhada não apenas a boemia dos rapazes de vida airada do Quartier Latin, mas a vida de labor da bordadeira Mimi – leitura, aliás, que desce às raias do realismo neste último caso, pela interpretação cuidadosa, pormenorizada, realmente inacreditável de Lillian Gish. Atriz inteligente, Gish constrói a sua personagem como um ser etéreo, quase que descolado deste mundo, mesmo quando ela, vestindo seu vestido de gaze primaveril, corre feliz pelos campos, ao lado do amado Rodolphe, ou narra com vivacidade, a um possível investidor do namorado, os episódios da peça de teatro que ele estava escrevendo. 
Marcada pelo signo da abnegação, como tantas mulheres, caberá a Mimi o paulatino esvaecimento, até que uma carruagem a arrasta como trapo ao reduto dos boêmios, onde ela morrerá nos braços dos seus. Que honra vê-la na tela grande, com os acordes da amada “Bohème” pucciniana vez por outra atravessando o acompanhamento que Donald Sosin realizou para a obra!

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

A New York devoradora de King Vidor: The Crowd (1928) e Street Scene (1931)



Do final dos anos de 1920 ao início dos 30, a jovem Sétima Arte cantou New York das mais diversas formas. Sobre as odes compostas à cidade eu já falei aqui em “Manhattan: 1921, 1925, 1979, 2011...”. Detenho-me hoje nas tragédias. Em duas especificamente, “The Crowd” (A Turba) e “Street Scene” (No Turbilhão da Metrópole), conduzidas pela batuta de um dos grandes da época: King Vidor. Nestas duas obras, como naquelas, a metrópole aparece em toda a sua dimensão esmagadora: Desmesurada em seu tamanho, assustadora no seu papel de cadinho cultural. Síntese da sociedade capitalista em sua forma mais estrita, em tudo o que ela representa de sede de consumo e abismo social. De ambas emerge a cidade-autômato, simbiose dos homens que nela reinam: meio homem, meio máquina. 
Curioso é que as New Yorks de “A Turba” e “No Turbilhão da Metrópole” – finalmente duas traduções fortes e apropriadas a títulos estrangeiros – tenham sido moldadas pelas mãos de um mesmo homem. Duas visadas céticas à tão louvada metrópole compostas num espaço tão curto de tempo... Uma silenciosa, outra falada – seria a retomada do tema o desejo de traduzir em palavras o que as imagens já diziam de modo tão contundente, de modo a sublinhar-se a crítica social? Mas esta questão eu apenas registro en passant, para que o leitor curioso levante hipóteses que a respondam – o post é rápido, porque o tempo está tão curto... 

“The Crowd” abre nos cinemas estadunidenses em fevereiro de 1928, um ano antes da quebra de Wall Street (e do resto do mundo). Principia registrando a avalanche humana que toma as ilhas de New York vindas de balsa, para povoar seu centro financeiro. A interlocução é clara: a Manhatta de Paul Strend e Charles Sheeler (1921) surge orgulhosa na frente da câmera, que registra o formigueiro humano e deslinda os arranha-céus em movimentos por meio de contra-plongées – como que a simular o olhar embasbacado do homem ao fruto do trabalho do próprio homem. É numa dessas construções que a câmera de King Vidor mergulhará logo no segundo momento do filme. Do geral ao particular, do vasto salão repleto de trabalhadores ao protagonista “John Sims – 137” – ele mesmo meio homem e meio robô, mera peça da engrenagem social. 
 Como referimo-nos a King Vidor, já diretor da obra-prima “The Big Parade” (1925) – sóbrio drama sobre as inúteis perdas da Guerra –, veremos, a partir de então, desenrolado um drama humano. 
John (James Murray) antecede o personagem sem nome de Chaplin nos “Tempos Modernos” (1936) – não é à toa que o termo usado nos Estados Unidos para designar os mortos sem identidade é “John Doe”. E como no filme de Carlitos, também em “The Crowd” é nesse João-ninguém que paradoxalmente a câmera vai dali em diante se deter – desvio agudo com relação ao que se fazia em sinfonias metropolitanas como Manhatta, em que importava sobretudo louvar-se o progresso técnico: 
Conhecemos o sonhador John menino, a construir castelos no ar, a despeito das tentativas do pai de porem-no em terra firme. A realidade do John crescido será dura, como prenuncia o velho: “You’ve gotta be good in that town if you want to beat the crowd.” Num filme qualquer da Fábrica dos Sonhos, o sofrimento conduziria a um apoteótico final, em que o homem-número destaca-se da turba e ascende ao sonhado sucesso, clímax do capitalismo. Mas King Vidor é sóbrio. “The Crowd” desenha com realismo o percurso do homem comum, membro da multidão e abatido por ela. John casa-se com a mocinha que conheceu num parque de diversões. Mas a Mary (outro nome simbólico) de Eleanor Boardman tem muito pouco da It girl Clara Bow, que enreda o patrão em Connie Island: depois do breve idílio ambos se veem com um par de filhos, com contas que não podem pagar e com sonhos infinitos, todos insaciáveis. 
O percurso de John e Mary é doloroso porque ele é o da maioria de nós. Sabemos que a luta travada na sociedade moderna é inglória. Vidor também o sabia, por isso bravamente faz sua máquina de sonhos destruir os castelinhos de John. Ele deixa o emprego atrás de uma ilusão. Não encontra outro. O filme intui o descalabro financeiro que já se anunciava – é vidente, como toda grande obra o é. Uma pálida alegria – a compra de brinquedos para os filhos – converte-se em trágica fatalidade: a menininha é pega pelo automóvel e morre. 
Mas a chaga é aos poucos suturada no coração dos pais, como antes fora no coração da Maria cristã. Porque, a despeito do sofrimento, é preciso continuar a viver. Ingressos para o teatro devolvem o riso aos rostos da família. No desfecho, vemo-los únicos, enquadrados num plano médio na plateia do espetáculo de variedades. Divertem-se a valer, malgrado estejam vendo tudo da distância, novamente imersos na turba da qual eles – como tantos outros – jamais vão sair, como rapidamente nos comprovará a câmera que se distancia. 


Antes de ganhar as telas, “Street Scene” foi peça de sucesso na Broadway. Rendeu mais de 600 apresentações entre janeiro de 1929 e junho de 1930, antecedendo e imediatamente sucedendo a deflagração do crack da bolsa de N.Y. (out. 1929). Por motivos óbvios o drama não aborda o tema. Todavia, prefigura-o. 
Cartaz da peça
O “Street Scene” (1931) de King Vidor aproveita-se do mise-en-scène da peça de uma forma surpreendentemente eficaz – falamos de 1931, época em que o cinema recuperava-se do chacoalho que fora a incorporação dos diálogos verbais nas fitas. O “teatral” está todo posto no filme, porém, usado com grande coerência. Ele se concentra – como o fez Elmer Rice, autor da peça –, num único cenário, tomando certo prédio popular de apartamentos de New York como metáfora da população mista que disputava ombro a ombro o espaço na metrópole. A escolha não tolhe os movimentos da câmera de Vidor. Ela desliza pelas ruas, circunda o prédio, adentra o metrô situado à sua esquina, no entanto, não sobe os degraus que levam à intimidade dos lares. 
É uma tragédia que retorna ao uso clássico do gênero – passa-se na via pública daquela sociedade que como nunca abandonava o âmbito privado em prol do público – como o fizera a sociedade clássica grega, cujos assuntos comuns eram decididos no espaço da ágora. A ironia está no objeto de conversação do grupo. Os graves assuntos de Estado discutidos pelos antigos são suplantados pelas picuinhas de família, os conchavos, a fofoca sobre a vida alheia. 
Porém, nem só disso é feita esta “cena de rua”. Como caldeirão social que se propõe ser, a matrona fofoqueira coexiste com o marido atencioso; assim como o homem beberrão que põe ponto final à vida da esposa divide espaço com o jovem casal de namorados que luta para se firmar na vida antes de se casar. 
O enredo de “Street Scene” conduz o tema de modo muito moderno, mesmo passados 81 anos de sua rodagem. Porque evita de revolver a vida privada dos habitantes do prédio, contentando-se por colher o que eles jogam na via pública, consegue evitar o julgamento moralizante. É um filme dissolvente como raramente encontramos nos dias de hoje, em que cineastas ainda insistem em nos impingir suas verdades embaladas em fitas douradas, esperando que nós as compremos (estou pensando naquela chatura que é o recentíssimo "Até a Eternidade", mas o leitor certamente pensará em outros). 
Para comprová-lo, basta tomarmos como exemplo a mulher morta: pouco antes de ser pega pelo marido com o amante, ela preparava de comer à jovem convalescente do andar de cima. A construção matizada de seu caráter não cessa aí. Casada com um bêbado, lança na ágora moderna questões que devem ter levado muitas mulheres daquele tempo a pensar: Basta o homem ser provedor do lar, se não dá afeto à família? Vale a pena viver sem se sentir viva? Ela acha que não; leva às últimas consequências o desejo. Sim, morre pelas mãos do marido machão. Porém, morre saciada. 


Do mesmo matiz beneficia-se a personagem da protagonista Sílvia Sidney (ótima), filha da mulher assassinada; jovenzinha dividida entre a proposta tentadora do patrão e o encantamento do primeiro amor, entre o respeito paterno e o amor à mãe. É de todas a personagem mais trágica. Sua partida da cena e de N.Y., sozinha, tem algo da partida de Édipo da cidade de Tebas. “De certa forma eu sabia que isso aconteceria.”, ela diz. A diferença é que não temos aqui o infalível “Destino” prenunciado do personagem de Sófocles, mas sim o resultado de uma imposição mesquinha da sociedade machista. King Vidor sabia o que denunciava. Anos depois ele proporcionará à Barbara Stanwyck o papel de sua carreira: a mãe Stella Dallas, do filme homônimo (de 1937); um filme de sensibilidade toda feminina.