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domingo, 30 de setembro de 2012

“Ninotchka” (1939). Ou: como fazer uma bolchevique render-se à Cidade-Luz.

O aniversário de 107 anos do nascimento de Greta Garbo, comemorado em 18 de setembro, pedia uma celebração à altura. Urgia rever algo da eterna “Divina”, da dama solitária, etérea, inatingível. “Ninotchka”, só poderia ser “Ninotchka”! Que filme mais condizente com um festejo de aniversário, mais high-spirited, mais esvoaçante do que o conto da bolchevique convertida às plumas e paetês do capitalismo pelas mãos do francês bon vivant Leon? Garbo está tão brilhante nesta comédia de Lengyel, Reisch, Brackett, Wilder e Lubitsch, encontra-se tanto nela, que pouco nos damos conta de que este é o filme no qual ela menos foi Garbo...
em "Mata Hari"
O que não se deu por acaso. O fim da década de 1930 via a saturação dos tipos criados por Hollywood a partir de meados de 1910. Pelo espaço de 10 anos a atriz experimentara sucesso inaudito pelas variantes de vamp que levou à cena: a Mata Hari (do filme homônimo de 32), a Felicitas (de “Flesh and the Devil”, 1927), a tentadora Elena (de The Temptress, 1926), a misteriosa Tânia Fedorova (de “The Mysterios Lady”, 1928). Mulheres perigosas, porque distantes léguas da criatura passiva tida naquele tempo como modelo de esposa ideal. Mulheres que misturavam androginia, liberalidade e romantismo num grau demasiado temerário para a sociedade machista onde viviam; daí a pagarem por suas escolhas desviantes com a morte ou a solidão. 
Os desenlaces dos filmes de Garbo apresentam quase que unicamente o desfile de entes infelizes. Pobre bailarina Crusinskaya, que em tão breve período descobre o amor e a perda (“Grande Hotel”, 1932). E Camille, que sucumbe após ser obrigada a deixar seu querido Armand (“A Dama das Camélias”, 1936)? E a Rainha Cristina (do filme de 1933), que abdica da coroa para imediatamente depois descobrir que o amado morrera em combate? E Elena, pobre ébria a vagar pelos botequins da vida, sem perceber que o homem que lhe dá esmola é seu grande amor, e a confundir o mendigo com Jesus Cristo!? A máxima hollywoodiana do happy ending sistematicamente poupou Greta Garbo. 

Por isso, “Ninotchka” marca uma ruptura na carreira da atriz. Por ser a primeira comédia de uma filmografia que remontava a 1924 e porque marca a redefinição da persona que a tornara notória e que deixara de apetecer o público. Sorte de Garbo – e nossa – foi que tal redefinição tenha se dado por meio de veículo tão primoroso. “Ninotchka” é uma obra-prima de comédia, brilhantemente escrita, desempenhada e dirigida. 
Quem conduz a batuta aqui é Ernst Lubitsch, alemão que nasceu artisticamente junto com o longa metragem, em meados dos anos de 1910. Foi um dos grandes artífices da sétima arte; homem de timing perfeito para o que quer que fosse: a comédia sofisticada silenciosa (“Lady Windermere’s Fan”, 1925); o musical (“Alvorada do Amor”, 1929, apresentação do eterno par romântico Jeanette MacDonald/Maurice Chevalier); a screwball comedy (“To be or not to be”, de 1942 e “A loja da esquina”, de 1940 são duas obras-primas do gênero)... 
Lubitsch, Garbo e Melvyn Douglas
No que concerne a “Ninotchka”, Lubitsch soma o trabalho de direção ao de escrita do roteiro. Segundo Mark Vieira, soluções fundamentais à história foram criadas pela pena do diretor. Soluções cinematográficas, que claramente faziam emergir o Lubitsch touch, como as cenas em que figura o chapeuzinho tipicamente parisiense, a relação de Ninotchka com o adorno servindo de metáfora à sua paulatina aceitação dos modos de vida da Cidade-Luz. Mark Vieira ainda sublinha a importância de Lubitsch no sentido de ajudar sua protagonista a encontrar o caminho da personagem – Garbo estaria insegura e amedrontada por retornar à cena numa personagem tão diversa daquelas que costumava interpretar. 
Notória por personificar mulheres cada vez mais distantes, Garbo via-se arrastada a terra. “Garbo laughs”: a expressão que surgira antes do roteiro, no departamento de marketing da MGM, deixava claro o intuito de dessacralizar a persona da “Divina”. O roteiro primoroso segue fiel o intuito, efetuando a humanização da diva por meio de um delicioso exercício metalinguístico, que todo o tempo questiona e rasga a roupagem que o star system atrelara à atriz. 
Garbo é Ninotchka, enviada especial da Rússia comunista à luminosa Paris de um tempo nostalgicamente referido no prólogo como “aqueles dias maravilhosos em que uma sirene era uma morena e não um alarme – e se um francês apagava a luz, não era por conta de alguma ameaça aérea!”. O tempo histórico da rodagem da película era, efetivamente, bem mais conturbado: em 1939, Hitler já havia anexado a Áustria, declarado Guerra aos Aliados e assinado um tratado de não-agressão com a Rússia. O filme caminha entre a história e a fantasia: saíra da máquina de fazer sonhos que, no entanto, durante a guerra aceitava cada vez mais discutir a realidade. Por isso, Ninotchka é num só tempo a bolchevique pragmática que viaja à Paris incumbida de vender as joias outrora pertencentes à Rússia czarista, e a borralheira tornada cinderela depois que a cidade a enfeitiça. 
A reconstrução da imagem de Garbo se dá desde o primeiro plano em que ela aparece. Ninotchka aporta numa estação de trem de Paris: Garbo está sem maquiagem. Aparece despida do mistério que, em filmes anteriores, lhe emprestavam o figurino, a maquiagem e a fumaça das locomotivas. Surpresos pelo fato de o enviado especial ser uma mulher, os três russos que a esperavam na estação recebem dela a resposta: “Don’t make an issue of my womanhood.” Está aí um exemplo de como funciona esta máquina de ditos certeiros que é o filme. 
Lubitsch e companhia criaram para Garbo uma personagem bastante coesa. Ela é uma tipificação anedótica da Rússia vermelha, dirão os críticos. Certamente, mas, o que é a comédia se não a restrição dos indivíduos aos tipos sociais? O que vale é que o filme diverte imenso, e Greta está tão absolutamente hilária que quem o vir se lastimará por ela ter abandonado a carreira tão cedo, dedicando-se tão pouco a este gênero. A pragmática Ninotchka, exemplar de uma Rússia que pouco tempo antes dera adeus a convenções como o casamento, repudiando o lastro burguês dele e de seus congêneres, como o amor romântico, toma a relação homem-mulher como uma atração de cunho biológico. Surpreendente é que diálogos como o abaixo tenham passado incólumes pela censura da época (Mark Vieira argumenta como isso se deu no imperdível Greta Garbo: a cinematic legacy, minha bíblia da atriz): 

Ninotchka: Love is a romantic designation for a most ordinary biological... or shall we say “chemical” process. A lot of nonsense is talked and written about it. 
Leon: I see. What do you use instead? 
Ninotchka: I acknowledge the existence of a natural impulse common to all. 
Leon: What can I possibly do to encourage such an impulse in you? 
Ninotchka: You don't have to do a thing. Chemically, we are already quite sympathetic.
Leon: You are the most incredible creature I’ve ever met. Ninotchka. 
Ninotchka: You repeat yourself. 
Leon: Yes, I’d like to say it 1,000 times. You must forgive me if I seem a little old-fashioned. After all, I’m just a poor bourgeois. 
Ninotchka: It's never too late to change. I used to belong to the petite bourgeoisie myself.

Aliás, as declarações de amor de Ninotchka a Leon são das minhas all time favourites... 

Leon: Ninotchka... do you like me just a little bit? 
Ninotchka: Your general appearance is not distasteful. 
Leon: Thank you. 
Ninotchka: The whites of your eyes are clear. Your cornea is excellent. 
Leon: Your cornea is terrific; 

ou 

Ninotchka: As basic material, you may not be bad. But you are the unfortunate product of a doomed culture. I feel very sorry for you; 

ou 

Ninotchka: And what do you do for mankind? 
Leon: For mankind? 
Ninotchka: Yes. 
Leon: Not so much for mankind. But for womankind, my record isn’t quite so bleak.
Ninotchka: You are something we do not have in Russia. 
Leon: Thank you. Glad you told me. 
Ninotchka: That’s why I believe in the future of my country. 

O roteiro genial é sublinhado por uma obra-prima de interpretação. Com sua voz profunda, seu sotaque estrangeiro e seu cabedal de vamps, Garbo torna único um papel que, malgrado a tipificação, é originalíssimo. Impossível vermos “Ninotchka” sem colocá-lo em contraponto com tudo o que ela fizera antes. O próprio roteiro não deixa: “Go to bed, little father. We want to be alone.”, diz Ninotchka ao velho mordomo de Leon, claramente dialogando com a expressão que até então a definia em Hollywood. 
“Ninotchka” faz mofa do comunismo, mas não poupa o capitalismo. A jovem irrita-se com a injustiça social presentificada pelo carregador de malas da estação. “Injustiça? Depende da gorjeta.”, o moço replica. “Repilo O Capital como repilo a poeira.”, diz o papaizinho mordomo de Leon. “Mas você não está interessado na igualdade? Você é um reacionário!”, Leon lhe diz. “Tudo bem que não sou pago faz dois meses. Mas ter de dividir com o senhor as economias de minha vida inteira já é demais.”, responde o velho... Por outro lado, essa definição que Leon dá para o rádio cairia como uma luva ainda hoje como explicação da sanha de consumo capitalista: “Rádio é uma caixinha que você compra no plano de instalação, e antes de ligá-lo descobre que há um novo modelo no mercado.”... 
Aliás, a personagem impagável de Garbo só funciona porque tem um leading man à altura. Melvyn Douglas já contracenara com ela no ótimo “As you desire me” (1932) e ainda seria seu galã no malfadado “The two faced woman” (1942), filme com que ela se despede das telas. Aqui ele é o parisiense arquetípico, que Maurice Chevalier tão bem apresentara anos antes: galanteador, charmoso. Este perfeito exemplar da luminosa sociedade capitalista acabará por encantar a bolchevique obstinada, claro. No entanto, embora eu prefira a Garbo borralheira da primeira parte do filme, não consigo negar seu charme quando ela se deixa impregnar do romantismo daquela sociedade “brilhante e condenada” – como tão bem a define Leon. 
Porém, mesmo os chavões românticos são envoltos pelo roteiro numa aura de eternidade: observem-se a reação de Ninotchka quando recebe as flores e o leite de cabra que Leon lhe mandara, sabendo já naquele momento que deveria deixá-lo; o fuzilamento simbólico da bolchevique em honra das “massas”; ou toda a sequência em que Ninotchka e os companheiros, já em Moscou, decantam nostálgicos sua temporada parisiense. 
“Ninotchka” é, efetivamente, um ótimo modo de se celebrar Greta Garbo. Porque, pensando bem, o filme nem rompe tanto assim com a imagem que consolidara no écran esta mulher que, mesmo terrena, soube como continuar divina.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

O filme mais belo do mundo: “Aurora” (1927)

Na história do cinema, pouca gente esteve tão inspirada quanto Murnau quando ele rodou “Sunrise: a song of two humans”, inconteste obra-prima da Sétima Arte e, na opinião abalizada de Truffaut, “o filme mais belo do mundo”. 
F. W. Murnau nasceu na Alemanha, onde erigiu praticamente toda a sua carreira. Lá criou o legendário “Nosferatu” (1922), filme de terror que faz competente uso da estética expressionista. Lá dirigiu o grande Emil Jannings (o leitor lembrará dele na pele do sisudo professor de colégio enredado por Marlene Dietrich no “Anjo Azul”, de 1930) em outros dois clássicos, “A última gargalhada” (1924) e “O Tartufo” (1925), impondo-se entre público e crítica por sua grande capacidade criativa – “A última gargalhada” foi sucesso de bilheteria, malgrado toda a inovação técnica que arrolava. O êxito na terra natal abriu-lhe as portas da cinematografia norte-americana, que à época caçava talentos ao redor do mundo, pagando-lhes regiamente. “Aurora” foi o primeiro filme do artista rodado na “Meca do Cinema”.
Em Hollywood, Murnau teve liberdade como poucos diretores de seu tempo. Mais ainda, pôde usar como protagonista o rosto mais emblemático da cinematografia norte-americana, Janet Gaynor, se não a atriz mais bela, ao menos aquela que mais perfeitamente simbolizava os ideais americanos de pureza, bondade e amor desinteressado. A principal personagem masculina do filme é George O’Brien, que fizera fama como protagonista de westerns de John Ford e acabara de co-protagonizar com Gaynor “The Blue Eagle” (1926). O roteiro foi produzido a partir de história de Hermann Sudermann, que também em 1926 vira o sucesso estrondoso de “Flesh and the Devil", adaptação protagonizada por Greta Garbo e John Gilbert de sua novela “The undying past”. A empreitada, que estava fadada ao sucesso, experimentou reações frias por parte da crítica e do público. Mas isso não é de se estranhar. O filme era bom demais para o espectador da época.  
“Aurora” é, ainda hoje, bom demais pra ser verdade. O que mais me surpreende na obra – ela toda surpreendente – é a genialidade com que o diretor conseguiu trabalhar o gênero melodramático. Desde “A última gargalhada”, Murnau provara a capacidade de trabalhar com originalidade o melodrama. Aquele filme entraria para a História desta arte como o primeiro feature (quase) sem intertítulos, o primeiro a conseguir, segundo a crítica contemporânea, contar uma história sem precisar recorrer a outros gêneros artísticos, como a literatura ou o teatro. O que a crítica não viu - ou pelo menos até onde eu sei não viu -, é como o enredo de “A última gargalhada” está impregnado de literatura e teatro. A câmera fluida de Murnau e sua decupagem cuidadosa só conseguem se fazer compreensíveis porque a história daquele velho porteiro de hotel, tão cioso de si a ponto de experimentar o declínio moral e físico depois de se ver destituído do emprego e, portanto, do uniforme que lhe conferia prestígio entre os visinhos, já fora tomado como tema por escritores do calibre de Gogol (O Capote) e Machado de Assis (O Espelho). 
Antes do cinema, coube não só à literatura dar carne aos fantasmas do homem, como também ao teatro. Se algo competiu com o cinema no que toca ao amor das plateias, foi o melodrama teatral, popular por natureza no que toca à temática e à preocupação social. Os personagens de “A última gargalhada” dividem-se em polos positivos e negativos: o velho porteiro, magnificamente composto por Jannings como um misto de bondade, simpatia, hombridade e amor paternal, perde injustamente o emprego e com ele o respeito dos amigos, e ao final, depois de ter de volta um posto de honra na sociedade, enceta uma cena catártica de glutonaria – em que metaforicamente reingere, com a comida, o respeito outrora perdido. Os episódios encenados pertencem também à poética do melodrama: o homem que luta para sobreviver às imposições da ordem social; a bela e frágil mocinha casadoira, que periga ser carregada de trambolhão para a sarjeta, junto do pai, quando os conhecidos descobrem que ele virou um zé-ninguém. A originalidade de Murnau está não em ter escapado ao gênero, nas em ter conseguido encontrar soluções cinematográficas para esse feixe de temas, reduzindo o texto escrito ao mínimo. 
Elenco e equipe artística de "Aurora". Murnau está sentado à direita, ao lado de Janet Gaynor.
Revista Cinearte, Rio de Janeiro, 4 mai. 1927

O diretor continua a perseguir esses mesmos objetivos nos Estados Unidos, onde o orçamento da Fox Films lhe permite depurá-los à perfeição. Sua inclinação ao melodrama subsiste em “Aurora”. Mas naquele mundo em que dramalhões multiplicavam-se, sua obra brilha como joia lapidada em meio à bijuteria barata. É verdade que o ano de 1927 viu nascer grandes filmes, mas boa parte do que a indústria do cinema produzia entrava no esquema “boy meets girl/ boy faces danger/ boy gets girl”. Murnau chacoalha a estrutura consolidada (ordem social estabelecida  rompimento na ordem — reestabelecimento da ordem) e bota em choque episódios da vida de um casal: 
This song of the Man and his Wife 
is of no place and every place: 
you might hear it anywhere at any time. 
For wherever the sun rises 
and sets in the city's turmoil or 
under the open sky on the farm 
life is much the same: 
sometimes bitter, sometimes sweet 

O homem e a mulher não têm nome: dão corpo a todos os indivíduos cujas alegrias e tristezas desenrolam-se sob o sol. O sol que se põe abre a narrativa, que se fechará quando ele novamente nascer. A poética do melodrama dá aqui mãos à da tragédia. Uma vamp – algo tão Sudermann e tão anos 20... – é responsável pelo rompimento da ordem. Ela é uma das variantes da Felicitas de Garbo: enreda o homem indefeso, prende-o em suas garras. A esposa, na sua fragilidade de mulher-menina, é impotente frente à ordem das coisas. Melodrama, mas também tragédia: a mão do marido (= o chefe de família, o todo-poderoso) aparece de certa forma atrelada aqui à mão do destino – a mulher fatal arquetípica é antes de tudo uma força da natureza, indomável. E, porque não? A própria sociedade patriarcal não era o destino da mulher daquele tempo – ainda mais da mocinha camponesa, casada quase menina? A vamp induzirá seu homem ao crime para que ela o tenha inteiro. A jovem esposa nada pode fazer além de implorar pela vida. É desse percurso da fuga da ordem ao seu reestabelecimento que trata o filme. 
Porém, ao preferir concentrar-se em episódios ao invés de desenrolar uma narrativa convencional, “Aurora” consegue um poder de concentração raro na época. A escolha de Murnau foi vista de modo controvertido pela crítica, acostumada demais à estrutura realista para se deixar prender às reviravoltas surpreendentes encenadas no filme. O conflito entre pontos de vista foi encenado por aqui nas páginas da revista “O Fan” (1928), os membros do Chaplin-Club divididos entre o repúdio e o elogio irrestrito à obra. A leitura dos dois lados da contenda mostra coisas interessantes: de um lado, como a crítica cinematográfica estava desenvolvida naquele fim de anos 20; de outro, como as teorias dos cineastas russos foram tomados de modo enviesado entre nós. Em sua sede por enquadramentos originais e pela eliminação de intertítulos, os críticos deixaram de lado a própria materialidade do filme de Murnau. Não perceberam como, por exemplo, ele elevava o melodrama ao articulá-lo à música e à poesia. 

“Aurora” foi lançado um mês depois de “The Jazz Singer”, da Warner, o primeiro filme falado. É um filme silencioso, mas foi o primeiro da Fox a ter sua banda sonora em Movietone, ou seja, impressa junto à película. A música tem papel preponderante em “Aurora”, expresso desde seu subtítulo, não só por embeber a alma do espectador – papel usual da música no cinema, que o piano ao vivo já supria bem – mas também porque exerce função intelectual no filme. 
 A música tem em “Aurora” um papel dialético análogo ao da montagem. No plano sonoro, os leitmotiven apresentam e acompanham as personagens, aprofundando suas subjetividades: repare o leitor na riqueza da música do parque de diversões, em que o tema lírico mistura-se e se choca às canções da moda, ao som incidental e ao tema trágico, prenunciando-o. No plano imagético, é igualmente a noção de choque que impera nas montagens paralelas: a mulher-mãe que abraça a criança enquanto o homem-macho abraça a amante; a mulher-dona de casa alimenta as galinhas enquanto o homem sente as mãos da vamp a apertarem-no, impregnada que ela estava em seu corpo e alma. Murnau adere, assim, à mais literal noção de melodrama: “obra dramática cujo texto é acompanhado de música instrumental.” Ou neste caso, obra visual acompanhada de uma música instrumental que estende seus domínios às cenas e aos textos dos intertítulos. 
“Aurora” é todo ele musical. Dos poucos intertítulos do filme, apenas alguns são explicativos. Do mesmo modo como os enquadramentos e a decupagem multiplicam os pontos de vista, construindo em profundidade a alma atormentada do marido e o desespero da jovem esposa abandonada e daqueles que a amam, os intertítulos servem de eco à dor funda dos personagens e do narrador – que acaba impregnado da tristeza deles: 
 “They used to be like children, carefree... always happy and laughing... 
They used to be like children, carefree... always happy and laughing...” 
 “Don't be afraid of me! 
Don't be afraid of me!” 
Intertítulos como esses não ajudam a alavancar a ação. São uma espécie de mantra. E multiplicam-se: no plano da imagem, por meio do encadeamento das cenas, e no âmbito sonoro, pelo desenvolvimento dos temas. É o melodrama arquetípico, e do mais alto nível.
A repetição quase infantil de frases abre uma espécie de dimensão religiosa para a história, que se desenvolve nas analogias que a imagem traça entre a personagem da jovem mãe e a da Virgem Maria, a grande mãe do cristianismo. A analogia é explícita ao final, no primeiro plano daquele rosto comovente de Janet Gaynor, os cabelos louros envoltos num xale e banhada de claridade. Mas tais analogias aparecem ao longo do filme. Nos sinos, por exemplo, que entremeiam a oração da jovem no barco e o arrependimento do marido, conduzindo depois o casal já apaziguado para a igreja na qual, por meio de um processo de projeção, novamente tomarão a benção matrimonial. 
Murnau trabalha essa dimensão religiosa por meio da estética expressionista, na qual ele já se mostrara mestre. A divisão entre dia e noite ganha uma dimensão simbólica que será repetida nas sombras negras que abraçam o casal de amante e persegue o corpo do homem consumido pela culpa. A luz para a vida do casal será trazida pela mesma cidade grande de onde viera a vamp, ruptura com a dicotomia gasta que toma o campo como o lugar da paz e a cidade como o antro da perdição. A mesma cidade devoradora do princípio torna-se a cidade iluminada onde o amor transforma as ruas em campos floridos, prova de que a beleza está nos olhos e no coração de quem vê. 
Tragédia e melodrama convivem durante todo o tempo, mas é a lógica do melodrama que felizmente prevalece – felizmente para quem, como eu, se apaixonou pelas personagens. Pode-se dizer que com isso Murnau rendeu-se ao status quo? Acho que não. Cada vez que revejo o filme, acredito com mais força que na aparente simplicidade de sua trama esconde-se a sua eternidade. “A Mulher” e “O Homem” de Janet Gaynor e George O’Brien somos cada um de nós, obrigados a mastigar doçuras e amargores, esperando que no final prevaleça a aurora. 
Dois anos mais tarde, na primeira cerimônia de entrega do Oscar, “Sunrise: a song of two humans” receberia a justa aclamação da crítica. Ganhou o prêmio de “Melhor Cinematografia” e, pela única vez na história do cinema, o prêmio de “Melhor filme: produção única e artística”. Janet, que acumulou indicações por este filme e outros dois (“Seventh Heaven”, de 27, e “Street Angel”, de 28), foi a primeira atriz a levar para casa uma estatueta. Merecidíssima.

domingo, 22 de novembro de 2009

Greta Garbo e Alla Nazimova: duas vamps cinematográficas dos anos 20 e o estabelecimento do modelo de representação naturalista


Aconteceu nessa semana uma coisa bem especial: apresentei meu primeiro trabalho acadêmico a respeito da recepção do cinema no Brasil, assunto que estudarei no doutorado. Mais uma vez se efetivou aquele casamento entre trabalho e diversão sobre o qual falei ao comentar sobre o livro de Antônio Ferro e o filme "Alvorada do Amor"...
A ideia foi suscitada logo no primeiro mês de uma disciplina de pós que fiz como ouvinte no semestre passado, disciplina que se tornou a desculpa perfeita para que eu fugisse de minha dissertação ainda por terminar e mergulhasse na produção bibliográfica sobre o cinema e nas fontes primárias que o discutiram, dos anos de 1920.
A personagem da femme fatale começou a me perseguir logo que comecei a estudar uma peça teatral esquecida de Coelho Netto - "Pelo Amor!" (1897), um dos meus objetos de estudo do mestrado - ou melhor, logo que acabei de ver "A fool there was" (1915) e notei que o tipo desempenhado por Theda Bara muito se aproximava da Samla de Coelho Netto. A produção filmográfica dos anos de 1910 e 1920, que recebeu tantas influências do cinema, passou a me interessar sobremaneira: passei por Bébé Daniels, Gloria Swanson, Alla Nazimova e especialmente Greta Garbo, que conheci mais profundamente por meio do incrível site alemão Garboforever, o melhor que já vi, num só tempo enciclopédico e apaixonado. Acabei o mestrado saturada de Coelho Netto e almejando estudar como as personagens e características do teatro deslizaram para o cinema, eu também desejando deslizar para ele. E aí tive a oportunidade única de cursar uma disciplina sobre cinema na área de literatura - essas oportunidades só costumam aparecer quando a gente já cumpriu todos os créditos em cursos que nem de longe nos despertaram tanto interesse... - e pensar de modo mais sistemático na relação entre teatro e cinema e na personagem que me havia vampirizado.
Isso me levou a um livro de Ismail Xavier chamado O olhar e a cena, que, por sua vez, me pôs a pensar no contraponto entre duas vamps das telas. O estudioso toma Griffith e Hitchcock para demonstrar a efetivação de algo que os cineastas buscaram durante a primeira metade do século XX - a adoção da decupagem clássica e da representação naturalista em busca do que ele denomina uma "autonomia da cena". Isso fez com que ambos - e tantos outros diretores - se debruçassem em gêneros literários e teatrais como o melodrama, no qual não há nenhuma intervenção digamos, "externa" na obra (por exemplo, a intervenção de narradores intrusos), o que dá a ela um efeito de realidade muito maior. É, portanto, um cinema que esconde os mecanismos de criação da obra artística - sobre eles Hollywood principiaria a falar nos anos 30, na "Rua 42" (42nd Street) e em "Footlight Parade" (ambos de 1933) e em tantas outras películas que desvelam os bastidores teatrais ou cinematográficos.
Eu sabia alguma coisa sobre o quanto a interpretação sutil de Greta Garbo havia causado impacto entre o público e a crítica de meados de 1920. Sabia também que Alla Nazimova abriu falência depois de financiar "Salome", montagem vanguardista do drama homônimo de Oscar Wilde. Então, decidi averiguar até que ponto as montagens dos filmes tiveram alguma relação com a recepção deles nos Estados Unidos e especialmente no Brasil. O resultado da busca foi tão empolgante quanto minha viagem pelos microfilmes e páginas digitalizadas de jornais e revistas antigos.
sessão "Cinematografia" do jornal carioca A Noite, 1928.

Neles descobri que a Greta Garbo foi uma das atrizes sobre as quais os periódicos brasileiros mais falaram nos anos de 1927 e 1928. Não faltaram elogios à naturalidade da atriz, que parecia estar realmente vivendo os papéis que representava. Publicavam entrevistas supostamente feitas com ela - duvido que o fossem, pois naquele momento suas fugas dos jornalistas já eram célebres - nas quais ela afirmava que "Para que se possa realmente impressionar uma assistência, é necessário que todos os seus passos e movimentos sejam feitos com naturalidade, como se estivéssemos na vida real. (...) A única maneira de se poder sentir um beijo ao ser fotografado é se esquecer tudo e todos que nos avisinham e pensar-se que se está realmente, amando a pessoa que nos beija.". Na formulação, Miss Garbo rompe com a linha divisória que separa personagem e atriz, fazendo emergir aquilo que Walter Benjamin fala sobre a importância do ator representar-se a si mesmo. Esse foi um dos primeiros passos da construção da persona da atriz - fundamental naquela época de estabelecimento do star system, em que homens e mulheres que se dedicavam ao cinema tinham suas figuras moldadas para atraírem a atenção do público. "Flesh and the devil" (entre nós denominado "O Diabo e a Carne") tornou Greta Garbo uma das estrelas mais brilhantes da constelação hollywoodiana. As tórridas cenas apaixonadas que dividiu com John Gilbert - consideradas, não por acaso, deflagradoras de um relacionamento amoroso entre ambos - motivou reações exacerbadas pelo "realismo" que engendraram. Os ecos dos inúmeros beijos que trocaram foram sentidos no Brasil mais de um ano antes do filme ser apresentado por aqui, daí os fotogramas (alguns coloridos) da fita publicados nas revistas especializadas
A Scena Muda, 20 de outubro de 1927

e as inúmeras notas publicadas sobre ela e seu elenco: algumas risíveis, como a remissão do jornal A Noite a certa pesquisa feita com moças, monitoradas enquanto assistiam às cenas quentes do filme. O resultado já é apontado no título da notícia: "Alegrem-se as morenas!", pois eram as mais sensíveis ao conteúdo erótico do filme. Quem se lembrar daquelas cenas em primeiros planos do casal vai entender a reação das meninas - sabe-se da força que tem o primeiro plano para carregar o espectador para dentro da tela, tornando-o participante de um menage a trois, como diz o Hitch ao dissertar sobre o legendário beijo entre Ingrid e Cary Grant em "Interlúdio" (Notorious, 1946). Aliás, o enredo melodramático do filme não raro faz com que os periódicos estabeleçam um intercâmbio entre ficção e realidade: "O romance d’esses dous astros [Greta Garbo e John Gilbert] está se tornando um verdadeiro filme no qual o diretor Maurice Stiller pretendeu tomar parte principal e... ficou com a pior.", diz a revista A Scena Muda. A revista constata, num tom picante, que a terceira ponta do triângulo amoroso era o diretor sueco que deu a Miss Garbo o primeiro papel importante de sua carreira. A leitura da recepção do filme nos anos 20 demonstra como o gênero melodramático, aliado à decupagem clássica e à naturalidade em cena foi responsável pelo estabelecimento de Greta Garbo como uma das grandes atrizes do século XX, admirada até hoje por uma legião de garbomaniacs de todo o mundo, que a seguem com uma devoção que beira a idolatria. Não é um acaso, aliás, que meu post sobre a última fotografia da atriz seja de longe o mais lido deste blog.

A Scena Muda, 15 de março de 1928

O mais claro contraponto a ela talvez seja outra grande atriz das primeiras décadas do século, a russa Alla Nazimova, sobre a qual meu amigo Ricardo escreveu um post fascinante, repleto de informações bibliográficas e de uma arguta análise sobre suas películas mais controversas, "A Dama das Camélias" (1921) e "Salomé" (1923). Ricardo faz apontamentos interessantes e que merecem ser lidos sobre a montagem vanguardista do drama de Wilde - eu lamento não tê-las lido antes, pois me ajudariam muito na escrita do trabalho de final da disciplina. Os cenários art nouveau, estética que tanto influenciou Wilde e o ilustrador do volume de "Salomé", Aubrey Beardsley, casam-se perfeitamente com a atmosfera do drama. O desempenho do elenco é lento e teatral.
A Scena Muda, 10 de março de 1927

Nada da naturalidade de Garbo, o que há aqui é um erotismo nervoso e fatalista muito semelhante àquele que se nota no drama simbolista de Oscar Wilde, no qual a lua misteriosa parece influir nos caracteres, moldando suas ações. A lua é elemento fundamental tanto no drama quanto na ilustração dele e no filme. Ao fim da postagem há uma edição da película feita por mim, na qual isso pode ser notado.

"The woman in the moon", ilustração de Aubey Beardsley para "Salome" (edição de 1907)

A montagem tão influenciada pelo simbolismo teatral e a estética art nouveau era novidade na cinematografia da época. Por meio de long shots, ela toma um distanciamento do público e cobra dele uma leitura muito mais analítica - não o convida a compartilhar a ação e a dissolver-se nela, e sim a entender os mecanismos que a criaram. Isso, suponho, tenha levado a crítica - ao menos a brasileira - a olhar o filme de modo ressabiado. Uma das poucas resenhas que encontrei sobre ele demonstram a incompreensão da crítica, que se perdeu em detalhes como a idade avançada de Alla Nazimova para interpretar o papel de Salomé (a mesma crítica que não fazia nenhuma reserva aos papéis de crianças interpretadas por uma Mary Pickford já madura) e terminou por achar o filme "estranho" e lhe atribuir uma notinha bem baixa.
O semestre passado foi um dos mais proveitosos da minha vida acadêmica. Quantas coisas eu aprendi ao longo dele! Agora sei, por exemplo, porque o vampiro bonitão de "Crepúsculo" arranca suspiro das mocinhas de todo o mundo, fazendo com que muitas queiram estabelecer um relacionamento amoroso com alguém desta espécie - conforme conta minha tia, secretária de uma escola de Ensino Fundamental. Se muita coisa dos anos 20 envelheceu, uma continua novíssima: a forma de montagem e o gênero cinematográfico melodramático, que arrebatam o público para dentro da tela e o fazem enxergar o mundo como um grande filme ...



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O artigo contendo a pesquisa completa acabou de ser publicado na revista Todas as Musas. Aqueles que quiserem acessá-lo, por favor, cliquem aqui. (3/2/11)