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terça-feira, 4 de abril de 2017

A loja da esquina (1940) e Mensagem pra você (1998): o encontro de duas eras

Hollywood vive de se reinventar. A loja da esquina (1940) e Mensagem pra você (1998) são exemplos claros disso. Nos últimos dias, fiz o exercício assisti-los um depois do outro, a versão depois da obra original. O resultado foi uma mistura curiosa de nostalgia e de descoberta. Produtos fechados – put it in the can é uma das máximas da indústria –, os filmes reverberam, ecoam, renascem em nós como se fossem feitos da matéria das sempre-vivas. Nós continuamos a existir e, ao entregarmo-nos de tempos em tempos a eles, os ressignificamos. 
Mensagem pra você (You’ve got mail, Nora Ephron, 1998) tem como cenário o Upper West Side nova-iorquino. Já A loja da esquina (The shop around the corner, Ernst Lubitsch, 1940) tem ambiência e diretor estrangeiros – passa-se em Budapeste e é dirigido por um diretor alemão. Ambos, todavia, cruzam-se muito mais do que se separam, a despeito das críticas tecidas à versão moderna, à época de sua estreia. No final das contas, os dois brotam de Hollywood, reproduzindo as estéticas das comédias românticas sacramentadas em ambas as décadas. E dialogam muito de perto com as sociedades de onde brotam, num e noutro tempo. 
A loja da esquina é rodada no princípio da Segunda Grande Guerra e respinga a melancolia, os sonhos deixados em suspenso, o temor ante a volatilidade da vida próprios desses tempos – a sua dessemelhança com relação às patriotadas rodadas em momentos análogos surpreende. Ali, as existências dos apaixonados correspondentes anônimos Klara Novak (Margareth Sullavan) e Alfred Kralik (James Stewart), protagonistas da história, mistura-se àquelas dos demais funcionários da loja do patrão abusivo Hugo Matuschek, onde a história se passa. Se o filme se divide em duas partes, deslizando em curva ascensional das amarguras até os estertores da felicidade – como corresponde ao cinema standard da “Era de Ouro” de Hollywood –, o que remanesce é o sentimento oriundo à primeira parte: a demissão injustificada da personagem de James Stewart reverbera séculos de exploração lavoral, um mal ainda hoje insolúvel . 
O filme é uma pequena obra-prima porque o mestre Lubitsch baixa o tom de todo o elenco, convidando o espectador a testemunhar as histórias narradas a meia-voz, entre os atendimentos dos fregueses da loja de presentes e as intervenções do Sr. Matuschek. Vertido de uma peça teatral, o roteiro não nega a sua procedência. Praticamente tudo se passa entre o interior da loja e as esquinas onde ela se situa, o suspense sendo criado por meio dos travellings dos funcionários a circularem entre o salão, o estoque e a sala do patrão. A partir dos cochichos de Alfred ao amigo, na tensão que preponderava naquele ambiente de trabalho, tomamos conhecimento do desabrochar de seu relacionamento com a dona da caixa de correio 236.
Mensagem pra você é, como o original de 1940, produto de seu tempo. Não apenas pela referência mais direta à World Wide Web, na aurora da qual ele foi rodado (é curioso observarmos que os modernos pombinhos navegam por meio da conexão discada, através da AOL, que faliria anos depois), mas pelo clima de otimismo geral no interior do qual o desenvolvimento tecnológico é apresentado. A história se passa numa Nova Iorque crescentemente mais segura, graças à atuação do prefeito Giuliani – citado textualmente –, coração cultural daquele país que marchava firme rumo ao século XXI, ignorante dos tempos lúgubres que se avizinhavam. O deslocamento temporal/geográfico se expressa bem pelo tom geral do filme, expansivo, e aqui não me refiro apenas às vozes das personagens, mas ao tom do discurso (a romantizar os grandes conglomerados, representados no filme por Tom Hanks, o carisma em pessoa), à seleção musical (uma polifonia que adere ao vintage, tão presente na memória coletiva – cristalizando-se entre o jazz efusivo e o idílio romântico), às cores cálidas (imperando a paleta do vermelho mesmo durante o mais agudo inverno nova-iorquino) e os sítios facilmente reconhecíveis de Manhattan (o cais, o Riverside Park, a Starbucks), a sublinharem o pitoresco da cidade devoradora, transformando-a numa variante do mundo de Oz. 
A escala dos conflitos também é ampliada. Meg e Tom, que se conhecem graças não mais às cartas, mas aos e-mails, são agora dois adversários nos negócios – ela, proprietária de uma pequena loja de livros infantis; ele, de uma rede de grandes livrarias em franca expansão, a Fox Books. Porque não o oposto? O filme reproduz o status quo social, resvalado ao cinema industrial, de que a suavidade pertence ao âmbito feminino, e a assertividade nos negócios ao masculino. Não por outro motivo as flores preferidas da moça são as frágeis e frescas margaridas. Neste quesito, Mensagem pra você retrocede no tempo quando comparado à Loja da Esquina, no qual a agudeza é característica preponderante da mulher, e a delicadeza, do homem. Mas Lubisch era um diretor muito a frente de seu tempo. 
Meg Ryan reverbera no filme a faceta principal de sua persona cinematográfica, a fragilidade; característica que a fizera amada pelas plateias dos anos 90. Com Tom Hanks ela fizera anos antes Sintonia do Amor (Sleepless in Seatle, 1993), variedade moderna de outro clássico americano, Tarde demais para esquecer (An affair to remember, 1957), e ali também ela estava distante da determinação da personagem original, levada à cena por Deborah Kerr. Os olhos verdes e os longos cabelos louros da atriz – embora mais curtos em Mensagem pra você – talhavam-na às heroínas romanescas típicas, o que Hollywood, ao invés de subverter, exaltou. Revi-a recentemente em Kate e Leopold (de James Mangold, 2001) e a sua mulher de negócios, teoricamente uma "devoradora de homens", parece a todo o momento prestes a cair em prantos, como se fosse receptáculo de todas as dores do mundo. Esta é a Meg Ryan inventada e destruída por Hollywood tão logo a idade a impediu de continuar reproduzindo o tipo. Certas coisas nunca mudam. 
Voltemos à Loja da Esquina. A obra de Lubitsch tem uma vocação inegável ao teatro, da qual ela se originou. O húngaro Miklós László, autor da peça que se transformaria em filme, chega mesmo a ser explicitamente mencionado, em forma de chiste: certo funcionário da loja comemora com a esposa o fato de ele precisar fazer hora extra e ser, portanto, felizmente desincumbido de ir jantar com “os Lászlós”. O filme é um manancial de ditos espirituosos, alguns transpostos textualmente à Mensagem pra você, a exemplo de “Você tem no peito uma caixa registradora ao invés de um coração.” ou “Você não passa de um terno.” Por isso, acusaram a versão dos anos 90 de ser demasiado derivativa. 
Vendo Mensagem pra você do distanciamento temporal – afinal, vão quase 20 anos desde o seu lançamento – conseguimos ressaltar o que ele tem de original e mesmo (na falta de melhor palavra) de profético. O filme traz num segundo plano um debate sobre o status dos relacionamentos interpessoais no princípio da massificação do ambiente virtual. É curioso revê-lo nesses nossos dias permeados pelas redes sociais, quando as compras pela internet ameaçam a existência de conglomerados como o de Tom Hanks, o grande vitorioso da contenda entre a “tradição” e o “progresso” encenada no filme. A diretora Nora Ephron não era boba, e redige (com Delia Ephron) um roteiro repleto de alusões cinematográficas contemporâneas e posteriores a Shop around the corner – daí a intitular a lojinha de Meg segundo o título do filme de Lubitsch, ou a inserir nele inúmeras referências à trilogia do Poderoso Chefão, perfeitas ao ambiente masculino/mafioso onde circula a personagem de Tom – a quem o sobrenome “Fox”, “Raposa”, tão bem define. 
Nora tinha um desvelo quase que religioso pelos clássicos (é também dela a direção e o roteiro de Sintonia do Amor, escrito em co-autoria) dos quais depreendia não apenas os temas como a atmosfera de suas tramas. Os passeios pelas ruas de Nova Iorque, que ela soube tão bem roteirizar (outro bem acabado exemplo disso é a obra-prima Harry e Sally, também com Meg Ryan, dirigido por Rob Reiner em 1989), permeados pelo cancioneiro norte-americano, nos dão, nesses tempos espinhentos, uma saudade imensa da cidade inventada à medida dos corações nostálgicos. Mensagem pra você sustenta-se hoje como justa homenagem ao cinema clássico americano. Visto em paralelo à Loja da Esquina, explicita quão grande foi a influência da “Era de Ouro” do cinema no burilamento da produção cinematográfica de todo o século XX. E sem saber, testemunha os estertores do gênero “comédia romântica”, e o charme inescapável dos ídolos por ele criados – não apenas de Meg Ryan, minha musa absoluta da adolescência.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Hobart Bosworth, “Behind the door” e o herói partido ao meio

O cinema clássico teve um poderoso aliado no Melodrama, gênero que perfazia o ideal de sanidade de corpo e espírito clamado pelas ligas de moralidade do redor do mundo. Sua ética, embora secular, mimetiza a cristã: como no cristianismo o percurso pedregoso da vida prepara o corpo para a bem-aventurança eterna, na estética melodramática a aceitação humilde dos revezes do destino conduz à ascensão, não apenas celestial, mas moral – e, em não raros casos, social. “Senhor, dê maturidade à minha alma, antes de ela desencarnar”, ouve-se da boca do padre da Carruagem Fantasma (de 1921). Victor Seastrom, o ator e protagonista da obra-prima sueca, dá de ombros ao dito bíblico, recebendo como paga por uma vida de esbórnia a árdua missão de conduzir as almas dos mortos ao longo de todo um ano. O cinema standard era uma religião sisuda: punia severamente aqueles que se distanciavam de seus ditames. 
Por isso, a rodagem de um filme como o norte-americano Behind the door (de Irvin Willat), no recuado ano de 1919, é algo que se anotar. A obra conta a história de Oscar Krug, americano de meia-idade, de rosto severo e ascendência alemã que, por amor da jovem e primaveril Alice Morse, deixa o ofício na marinha e passa a tocar uma loja de brinquedos, nas redondezas de onde ela vive. Vemo-lo debruçado, a sonhar, ao balcão de seu hospital de brinquedos; a curar, com suavidade, a bonequinha que acabara de ser atropelada... Apenas esses contornos anunciam matizes desusados à produção cinematográfica da época. Os Estados Unidos recém-saídos da Primeira Grande Guerra devolviam, neste filme, o status de humanidade ao povo alemão – lembremo-nos que, neste mesmo 1919, o seriado The Perils of Pauline é remontado pela Pathé europeia e o seu vilão rebatizado com um nome germânico. Mais ainda, misturavam-no simbolicamente com a sua carne, construindo um protagonista que, embora oriundo de família alemã, recebe explicitamente o rótulo de “norte-americano”. 
A trama comandada por Irvin Willat entrelaça duas temporalidades: o ano de 1917 e “cinco anos mais tarde”. Ao mesmo tempo em que remete ao momento em que os EUA aderiram ao conflito, acena para um futuro que supera o momento histórico do filme. O passado pinta em tons pastéis o idílio amoroso do casal, malgrado a rejeição do pai da jovem, que quer o homem maduro fora da cidade. Willat conduz uma firme crítica à xenofobia – que avultara durante a Guerra, mas ainda se fazia sentir. Para provar-se um verdadeiro “americano” e, enfim, poder servir a pátria que seus ascendentes escolheram para si, Krug precisa meter-se em duelo com os cidadãos locais. O conflito em microcosmo não apenas prenuncia a envergadura física e moral do personagem – que, sozinho, vence um grupo numeroso – como os contornos mais negros de sua alma, e do filme como um todo. Os oponentes reconhecem-no logo um igual e o abraçam. Mas, o sangue no qual ele está banhado sujará o lencinho alvo da bela Alice (Jane Novak, que tem o tipo físico de Pearl White). Efetivamente, tampouco o destino da moça se revelará suave. 
Ambos se casam e Krug recebe como atribuição o comando de um navio de guerra da frota norte-americana. Expulsa de casa, a jovem irá ter com o marido. Impedida, por força das regras, de estar no navio, esconde-se, até que um torpedo inimigo lança-a ao mar junto do marido e de toda a equipagem. Behind the door atrás da porta – abre de forma lúgubre, com um amaríssimo Krug chegando do mar rumo à sua loja de brinquedos, encontrando-a em ruínas e, depois de pôr os olhos no lenço ensanguentado da amada Alice – espólio daquele dia de litígio –, rememorando os fatos que haviam sucedido ao longo daqueles anos. Quando vê Kate ao mar, o público sabe, portanto, que algo de muito ruim lhe acontecerá. Todavia, nada – nenhuma narrativa anterior, ao menos que eu tenha notícia – prepara o espectador para o teor dos acontecimentos que se desdobrarão. A jovem acaba tornando-se, com o marido, a única sobrevivente do naufrágio, apenas para terminar, sozinha, nas mãos da tripulação de um submarino alemão. Seu destino apenas será conhecido nos desdobramentos finais da trama, quando o marido, que jurou vingança, está prostrado diante do algoz da jovem – o qual desta vez ele resgatara do mar. 
É fundamental, agora, que eu fale de Hobart Bosworth – um ilustre desconhecido para mim até a Giornate del Cinema Muto deste ano, quando o vi, e vi esta obra magistral, pela primeira vez. Ao vê-lo, pensei numa versão muda do James Stewart de Vertigo, embora a semelhança talvez esteja menos nos dois homens que nas duas tramas, ambas a rescenderem a mais dolorosa desolação, malgrado – ou, talvez, justamente por isso – mergulhem de olhos fechados no mais desabrido amor-romântico. É um misto de ódio e desespero o rosto de Hobart Bosworth, ao perceber que o submarino que encontrara o casal pertencia ao inimigo. Sua contenção ao se encontrar novamente com o algoz, e falsear para descobrir a verdade, caminha na contracorrente da tipificação do cinema clássico. 
Temos aí uma personagem que revela, na superfície, uma alma cheia de densidade. Ao descobrir, com o público, o que ocorreu à jovem – ela fora violentada por toda a tripulação e depois, morta, atirada ao mar –, torna-se um moderno Orestes, cometendo a mais lúgubre das vinganças distante dos olhos do público; “atrás da porta” que dá título ao filme. Behind the door despede-se do Melodrama para enveredar pelo Drama Romântico – tormentoso, avesso à ética cristã – ou pela Tragédia. A vingança parece ser, ali, clamor dos deuses, como na Electra de Eurípedes. Tanto que o perecimento final do protagonista – sobre o balcão da loja de brinquedos, onde ele fora tão feliz – o leva ao encontro da esposa, rumo a um céu que não é nem o do Melodrama, nem o do cinema clássico; daí talvez o porquê de o filme ter ficado no limbo por quase cem anos, até ressurgir glorioso em Pordenone.

domingo, 30 de junho de 2013

Notas sobre a tomada de consciência política no cinema (e além): Mr. Smith goes to Washington, Metrópolis, M...

Brigitte Helm em Metrópolis (1927)
Dois dias depois da escrita do post anterior encontrei-me pela primeira vez com Metrópolis (1927), obra-prima de Fritz Lang. A demora em vê-lo é desculpável, afinal, se a gente só pode ver uma vez um grande filme pela primeira vez, melhor é fazê-lo depois de amadurecer. Melhor ainda é quando ele estabelece um diálogo absurdamente intenso com o contexto histórico contemporâneo – a grandeza de uma obra de arte se mede pelo fato de ela continuar aguda, independente de sua idade. 
Metrópolis é um cabal exemplo cinematográfico da humanidade desperdiçada imaginada por Machado de Assim nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, e aí imagino o escritor nonagenário colado à poltrona de um cinema da Cinelândia no Rio de fins dos anos 20, exclamando atônito “É isso, é isso”: porque na minha utopia o escritor que ainda cruzaria lépido o limiar de seu centenário seria com frequência encontrado numa das salas do complexo, a sorver a vida de luzes e sombras que vez por outra atingia a agudeza do seu gênio. 
Planos decupados das engrenagens do maquinário gigantesco sucedem-se na tela: o olhar ubíquo do cinema plasmando a ubiquidade do olhar do narrador delirante de Machado. Ao corpo da máquina sucedem-se planos do corpo social cindido. Em fila, operários sem rostos caminham rumo ao subsolo da máquina, à hora da troca de turnos. No plano superior, os bem-nascidos vivem num Éden artificial: douram seus corpos ao sol, brincam com as donzelas de sua escolha em jardins bem cuidados. 
A metáfora é de claro entendimento: os operários vivem no inferno, os bem-nascidos no céu, e todos são igualmente ludibriados pelos poderes superiores. A máquina-cinema dá ao espectador uma consciência análoga à da máquina que, no filme, domina ricos e pobres. E testemunhará quando esses últimos tomam consciência de sua eterna espoliação e assumem o poder. A ironia é quando isso acontece: os discursos de tintas cristãs da angelical Brigitte Helm (uma das cenas mais geniais do cinema é, para mim, aquela em que ela sobe ao plano superior com crianças maltrapilhas e, apontando-lhes os bem-nascidos, diz cheia de ira “Olhem, são seus irmãos.”) podem muito menos que a fala inflamada de sua clone má, feita dos mesmos fios que alimentam a exploração na Metrópolis. 
Metrópolis acaba destruída pela sanha coletiva; as crianças abandonadas em prol de uma revolta movida primeiro (somente?) pela paixão: a faceta má da brilhante Brigitte Helm mostrara-se uma Salomé cenas antes, levando à combustão aqueles que observavam a sua dança. A entrega apaixonada e acrítica que ela induz leva a multidão a transformar a já viciada Metrópolis na Babilônia da qual, não fosse pela Helm feita virgem Maria (mesmo o nome da mocinha é alusiva à mãe da igreja), não se salvariam nem as crianças, o futuro da cidade. 
Impossível não notar o quanto de visionário há nessa obra de Lang, vendo-a nesse momento de intensa conflagração social que vivemos. Fica claro que na megalópole de Lang a religião tem papel preponderante, exercendo controle cujo fim é o bem-estar social. O conservadorismo da conclusão não nos permite, todavia, apagar o percurso, deixar de lado os elementos que põem em contato a sociedade imaginada pelo criador austríaco e a nossa.
Quatro anos após Metrópolis, outro grande Lang dará voz à massa. Em M., o vampiro de Dusseldorf, um grupo de criminosos altamente organizado assume por conta própria o papel da polícia inapta, persegue e apreende o assassino de crianças Peter Lorre. Os mesmos bandidos submetem-no ao julgamento sumário cujo desfecho será o seu extermínio, ali mesmo, no porão feito tribunal/patíbulo. Antes de receber o veredito, o psicopata desesperado desenha aos algozes o terror que é não conseguir controlar suas paixões. Depois de ser considerado culpado, clamará pela polícia e, portanto, pelo amparo do Estado, da democracia, da constituição, dentro de cuja configuração deseja responder pelos seus atos. 
Peter Lorre em M. (1931)
Lang fala a partir de um tempo em que estavam em alta estudos sobre a psicologia das massas. O povo, unido, ganharia uma alma coletiva que apagava as individualidades e o que de controle elas implicitavam. 
A força das multidões está sendo observada nitidamente nas ruas, nestes últimas semanas, no que elas têm de bom e ruim. Compelida por elas, a governança viu-se obrigada não apenas ao assentimento protocolar, mas à tomada objetiva de decisões (e daí a diminuição do valor das passagens de transporte coletivo, a abertura de um canal democrático de comunicação, por meio de um possível plebiscito, a punição exemplar da bandidagem de colarinho branco). 
Cenas de M.
Igualmente, decisões afobadas denunciam intuitos populistas – reescrever a constituição do dia pra noite não pode dar em boa coisa. No que toca aos populares, pessoas exercendo o salutar direito de gritar por mudanças acaba misturada a uma minoria de bandidos; quando não o tal éthos de massa toma o sujeito, e aí vemos, por exemplo, gente formada, empregada e aparentemente encaminhada imiscuída “não sabe como” no grupo que assalta certa joalheria. 
O Lang de Metrópolis e M. vê com descrença a tomada de poder das massas. Tanto que são as instituições estabelecidas que retomam a ordem, a igreja no primeiro, o Estado no segundo. 
Da distância que eu decidi tomar – já que nenhuma vez saí pra rua, coisa que de modo algum me honra –, vejo tudo com curiosidade, esperança, mas também uma ponta de temor. Porque minha atual religião é o cinema, observo nos exemplos vividos ou sonhados pela sétima arte o quanto pode o povo unido. O análogo do poder paralelo de M. descambou, na Alemanha, no nazismo – que depois ascendeu legalmente ao poder, cometendo atrocidades de forma idem. 
James Stewart em Mr. Smith goes to Washington (1939)
Mas quem me conhece bem sabe que estou mais pra mocinha desbirocada do otimista Frank Capra que pra personagem de distopia de Lang. Os heróis de Capra são sempre demasiado americanos, seus filmes de temática política invariavelmente fecham com discursos embandeirados, mas ainda assim eu me identifico mais com eles que com qualquer outra cinematografia. Meu inesquecível herói do diretor é o James Stewart de Mr. Smith goes to Washington (A mulher faz o homem, 1939), porque de todos os seus otimistas ele é o que mais me parece verossímil. 
Stewart e Jean Arthur em Mr. Smith...
Jimmy ascende ao senado estadunidense sem qualquer know-how de política, simples títere de uma corja corrupta. Para calarem sua boca, os membros do partido o incentivam a apresentar um projeto qualquer. Ele escolhe a desapropriação de certa área no meio do nada, no entanto, fundamental para melhorar as condições de vida de certa população do Estado que representa. Acaba que tal lugar é estratégico também para o bando construir uma represa e forrar as burras de dinheiro. E aí, o Zé-ninguém vira inimigo perigoso do sistema imposto. 
Porém, a História mostra que os grandes movimentos são alavancados por acontecimentos banais. No filme de Capra, James Stewart defende desesperadamente seu projeto, recebendo em troca o desdém dos políticos e a violência de seu partido aos seus correligionários. Nas ruas de São Paulo, a polícia mete bala no povo que participa de um protesto pouco numeroso e pacífico. Quando Jimmy não consegue sustentar mais que um fio de voz, caixas e mais caixas de mensagens telegráficas de apoio inundam o Senado. Twittes invadem a web em apoio aos manifestantes paulistanos desbaratados com violência; fotografias do ocorrido são espalhadas via Facebook. Dias depois, milhões saem às ruas.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Núpcias de Escândalo (The Philadelphia Story, 1940)

“Núpcias de Escândalo” é conhecido como o filme que salvou a carreira de Katharine Hepburn. Kate, que no início dos anos 30 fora considerada uma das maiores promessas de Hollywood (recebeu o Oscar de Melhor Atriz por uma de suas primeiras incursões na tela grande, quando interpretou a também atriz iniciante em “Morning Glory”, de 1933) teve, no fim da década, colada à sua imagem o rótulo de box office poison, o qual a obrigou ao exílio das telas e à dedicação ao teatro – retornando ao meio do qual ela se afastara no início da década, depois de uma série de produções mal-sucedidas.

Quis o acaso, no entanto, que a atriz subisse à cena guiada pelo texto primoroso de Philip Barry e secundada por dois sólidos atores, que o grande público conheceria bem nos anos subsequentes: Joseph Cotten (que pouco tempo depois seria apresentado por Orson Welles no “Cidadão Kane”) e Van Heflin (ao lado de quem Kate já havia atuado em “A woman rebels”, 1936). Acima de tudo, a atriz tinha nas mãos um papel que era um desdobramento de si, como ela faz questão de sublinhar no ótimo “Katharine Hepburn: um auto retrato” (que integra a versão dupla do DVD) – em que ela nostalgicamente guia o público pelos seus 60 anos de carreira. “Eu a entendia”, diz a atriz referindo-se à aristocrata mimada e intransigente Tracy Lord. Acompanhe o leitor as fugas de Miss Hepburn de repórteres bisbilhoteiros e seu desprezo pela maquinaria de Hollywood para perceber o quanto a atriz se aproximava da personagem.
O sucesso da peça na Broadway (foram 417 performances entre março de 1939 e março de 1940) fez com que a atriz arguta convencesse o bilionário Howard Hughes (essa fase da vida conjunta dos dois é narrada em “O Aviador”, 2004) a lhe comprar os direitos da peça; direitos que ela depois vende à Louis B. Mayer, obtendo em troca a garantia de que repetiria nas telas o papel que a consagrara no palco.
Dito e feito. Meses depois Kate dava vida novamente à Tracy Lord, desta vez secundada por Cary Grant e James Stewart e em frente às lentes de seu querido diretor George Cukor.
O resultado é antológico. A peça de Barry, adaptada à cena por Donald Ogden Stewart (vencedor do Oscar de melhor roteirista pelo trabalho), é brilhante. Mas é ainda um tanto quanto teatral, portanto, o sucesso da empreitada coube igualmente a George Cukor, cuja batuta competente fez com que o elenco baixasse o tom nalguns diálogos pomposos, o que só fez o filme ganhar em realismo e em poesia.
Kate, Cary e Jimmy usam bem o texto eloquente, com laivos de romantismo rasgado, mas isso também porque as palavras altissonantes recheiam ideias densas. Tracy reencontra o ex-marido e ex-bebedor convicto C.K. Dexter Haven (Cary Grant), um nome que derrama aristocracia, um dia antes de seu casamento com um novo-rico. Na superfície, o homem parece querer ir à forra: “Quando eu descobri que meu papel não seria de um marido amoroso, mas sim o de um alto sacerdote para uma deusa virgem, aí minhas bebedeiras começaram a ficar mais profundas e frequentes.” - eis o nivel da prosa.
Miss Lord (aristocrata também no nome), a "deusa pálida e fria" que, segundo o ex-marido, certa noite se embebedara e subira nua no telhado – “com os braços apontados para a lua, uivando”: “aquilo foi muito importante e revelador. A lua também é uma deusa... Casta e virginal.”, ele completa – surpreendentemente será degelada por um tipo pouco convencional: o cronista mundano e escritor sério nas horas vagas Macaulay Connor (James Stewart).
Connor vitupera seu ganha-pão. No entanto, movido pelas circunstâncias a cobrir o casamento da aristocrata, não demorará muito a descobrir que a armadura de frigidez empunhada pela moça encobre uma alma muito parecida com a dele. Tanto que, tocados pelo álcool, ambos protagonizam uma das cenas românticas mais sensacionais do cinema, com direito aos ditos mais grandiloquentes, que se tornariam uma patacoada se não estivessem envoltos num contexto tão arrebatador. Nos braços de Mike, Tracy se torna uma “mulher de ouro”, “de carne e osso”, “iluminada por dentro por labaredas e holocaustos”. A deusa de gelo finalmente é derretida – o fogo restante do incêndio será apagado pelos dois num banho de piscina...
Mas o filme é antes de tudo uma comédia – e talvez seja por isso que a censura não lhe tenha retalhado cenas como a acima. É um dos últimos exemplares das screwball comedies – filmes que conjugavam com maestria a agilidade dos diálogos, das ações e dos movimentos de câmera, sem deixar de lado a nobreza dos caracteres. Mesmo as sequências mais românticas são acenadas com piscadelas cômicas. E não só quando há o choque entre os caracteres e ways of life distintos: Mike e sua amiga fotógrafa bisbilhotando a casa da ricaça pela primeira vez (“Você não sabia que é preciso ser podre de rico pra morar numa bagunça dessas?”, diz a moça vendo os bibelôs da casa); Tracy fazendo pose de boa moça para impressionar o jornalista e a fotógrafa que ela é obrigada a receber; C.K. Dexter Haven fingindo-se de marido ofendido ao ver a ex-mulher nos braços do jornalista; Mike entoando canhestramente “Over the rainbow” para uma Tracy ébria e de roupão, sob os olhos do ex e do futuro marido da moça. Isso sem contar a inesquecível sequência inicial, flagrante jocoso dos momentos que antecedem o divórcio do casal, quando ambos resolvem sua diferença no braço e um taco de golfe leva a pior...
E enquanto romance e comédia se enlaçam do jeito mais delicioso possível, não é só Tracy que deixa a torre de marfim para encetar um corpo-a-corpo com o mundo errático: Mike reaprende a enxergar os endinheirados, tomando para si a lição do personagem de um dos contos que escrevera: “Sempre tenha paciência com os ricos e poderosos”. O único a passar incólume pelo dia de exceção é C.K. Dexter Haven, munido desde o princípio daquela sabedoria que só o sofrimento consegue construir. No final das contas, ele é quem melhor entende a jovem Tracy Lord, desde o princípio. Porém, ela precisará fazer logo sua escolha entre o novo-rico, o intelectualizado jornalista e o ex-marido. Os convidados já estão esperando.


domingo, 14 de março de 2010

Um corpo que cai (1958): o amor e a loucura segundo Hitchcock



Ontem revi o extraordinário "Vertigo", um dos grandes Hitchcocks, filme espantoso, que continua a impressionar depois de ser revisitado 10 vezes (eu que o diga...). Surpreende-me a sólida visão de conjunto que Hitchcock demonstra na maioria de seus filmes. Ele sabia o que queria, e raramente deixava de realizá-lo. Por isso, deixou-nos inúmeras obras-primas (desculpem-me o paradoxo), que têm a rara qualidade de interessar desde o espectador ingênuo até o mais exigente - coisa de mestre, que conhece a indústria do cinema tão perfeitamente ao ponto de saber que o valor artístico da película deve ser somado ao seu potencial mercadológico. "Vertigo"- que recebeu no Brasil o título de "Um corpo que cai" - é um dos meus preferidos.
Vemos nele um Hitchcock maduro, plenamente consciente de sua arte, que consegue levar a um alto grau de excelência elementos cinematográficos que ele ajudou a criar. A coerência do resultado final já se faz anunciar pelo título, que a horrível tradução brasileira escamoteou -Vertigo: medo de altura; vertigem; tonteira; sensação de desfalecimento; perda momentânea do auto-controle; desvario; loucura. Toda esta gama de significados é explorada em "Vertigo". A perseguição inicial do policial ao bandido, que leva a personagem de Jimmy a descobrir sua doença e culmina com a morte do policial que tentara salvá-lo e seu afastamento da Polícia é apenas o primeira deles.


À caça ao bandido - elemento recorrente nas histórias de suspense - se sucede o diálogo entre o então ex-policial John Ferguson e Midge Wood. A conversa é aparentemente frívola: o homem, enquanto vê a amiga desenhando roupas íntimas, não esboça mais que uma vaga preocupação com sua doença e quase nenhuma culpa pela morte do colega. Porém, o diálogo acaba por apresentar outros elementos de tensão. A câmera abandona o plano de conjunto em que focalizava Midge para tomá-la num primeiro plano no exato momento em que ela relembra ao amigo que fora sua noiva por "três semanas inteiras". John, testando sua saúde, sobe a escada que Midge lhe oferece e, olhando pela janela de vidro, percebe a altura que separa o apartamento do rés-do-chão, desfalecendo nos braços de Midge. Hitch faz aqui cinema puro - aquele em que o modo como imagens e sons se agrupam dizem mais sobre os personagens que o enredo. Sabemos que Midge é o elemento forte da relação, o que ampara, protege e ama o outro. John é sensível, frágil, por isso tende a fugir de compromissos e problemas. No entanto, a tonteira que derrubou-o da escada é prenúncio de vertigens mais avassaladoras.



Hitch apresenta em "Vertigo" um complexo triângulo amoroso que penso ser altamente tributário de Freud. Conheço pouco a teoria, portanto, não farei mais que indicar seus componentes mais flagrantes e o modo como eles se movem. Midge é uma jovem espirituosa e feminista mas, no fundo, tem uma amargura enorme por não ter se casado com John. Descobrimos que o impedimento ao casamento fora levantado por ela mesma, depois daquelas "três semanas inteiras de noivado". Por quê? Talvez devido à inversão de papéis da relação? A moça liberal, que se denomina a mãe do amigo - "Don't worry, John-O, mother is here", diz ela quando ele purga no manicômio a culpa pela morte de Madeleine -, queria na relação algo que ela nunca poderia ser - sim, porque ela era a castradora, não estava em sua personalidade ser o elemento passivo. John, débil e infantil, queria se ver livre da mãe-amiga, mas era demasiadamente frágil para tomar qualquer atitude - ora, é a moça que o deixa. Caberia à frágil e dependente Madeleine o papel de salvadora deste homem passivo? Caberia a ela devolver ao homem castrado a sua masculinidade? Cada vez mais me parece que sim. Todavia, embora John se transforme em homem para amparar Madeleine, ele continua detentor daquela personalidade sensível e romântica que, na tradição ocidental, cabe às mulheres. O romantismo exacerbado transforma-se num amor passional que, na segunda metade do filme, dará lugar aos excessos do homem apaixonado. Depois de morta Madeleine, ele tentará ressucitá-la na pele da sexy Judy, que parecia assemelhar-se à morta apenas na aparência - e, ainda assim, assemelhar-se vagamente. As cenas finais, em que John muda o guarda-roupa e os cabelos da mocinha banal até transformá-la na misteriosa e intangível Madeleine, parecem também simbolizar sua passagem de criança passiva a homem empreendedor - já que, até então, ele se mantinha quase que exclusivamente como o voyeur da situação. Aqui já não resta mais nada do homem pacato do princípio da história.

O desejo louco, a vertigem do amor - e aí cabem bem aquelas outras definições de "vertigo" - fazem com que ele some o que de mais intenso há nos dois sexos no que se refere ao relacionamento amoroso (estou tentando aqui pensar nas diferenças que havia nos anos 50) até simbolicamente matar Judy para novamente dar vida a Madeleine e, por fim, contribuir para que Judy/Madeleine literalmente morram. John, agora plenamente masculino e assertivo, quer legislar sobre a vida e a morte da identidade social de Judy. Mas já o pai de Héracles da tragédia homônima dizia que a moderação era necessária sobretudo àquele que tinha poder. Héracles não deu ouvidos ao pai e enlouqueceu. John é igualmente punido por desdenhar da voz da tradição.
A entrevista de Hitchcock a Truffaut - entrevista cuja versão definitiva a Companhia das Letras publicou por aqui faz alguns anos - dá a ver de modo fascinante a personalidade artística daquele que conduziu com pulso firme o enredo de "Vertigo" e de tantos outros clássicos.
Ao falar sobre o relacionamento amoroso tecido neste filme, um Hitch sem papas na língua alude ao que ele chama de "sexo psicológico": "é (...) a vontade que anima este homem de recriar uma imagem sexual impossível; para dizer as coisas simplesmente, esse homem quer se deitar com uma falecida, é pura necrofilia.". O diretor ainda aprofunda a explicação, motivando uma das poucas surpresas que Truffaut explicita ao longo da entrevista que faz com o diretor: "Todos os esforços de James Stewart para recriar a mulher são mostrados, cinematograficamente, como se ele procurasse despi-la em vez de vesti-la. E a cena que eu sentia mais profundamente era quanto a moça voltavam depois de ter tingido de louro o cabelo. James Stewart não fica totalmente satisfeito, porque ela não prendeu os cabelos num coque. O que isso significa? Significa que ela está quase nua diante dele mas ainda se nega a tirar a calcinha.".

As linhas deixam perceptível que a sexualidade não era algo tranquilo para Hitchcock. Aliás, a trivia hollywoodiana já apresenta inúmeros exemplos relacionados ao assunto: que Hitch teria se deitado com a esposa apenas uma vez; que ele havia se gabado por ter sido seduzido por Ingrid Bergman e se deitado com ela, etc. O diretor era um feixe de medos e complexos que daria trabalho a algum discípulo de Freud se ele resolvesse tentar se livrar deles. Não sei se ele chegou a frequentar um psicanalista. Felizmente, ele nunca deixou de ser perseguido por esses fantasmas que tomaram forma, de modo mais ou menos bem acabado, em toda a sua obra.
Hitchcock é pródigo ao dar à sociedade moderna uma visão complexa de seu psiquismo. Ele entra nos lares burgueses e mostra os anseios e as taras que subjazem ao exterior aparentemente são e pacífico. O relacionamento homem-mulher que culminava no casamento e na felicidade eterna - receita pregada no grosso dos filmes do período - era muito mais complexo do que parecia. Herança de Freud e tantos outros intelectuais que flagraram e explicaram a desfragmentação dos elementos que sustentavam o modo de vida ocidental - a igreja, o paternalismo, a ciência positivista -, Hitchcock mostrava que o homem podia não mais ser o indivíduo rijo responsável pelo sexo oposto. O diretor inglês é um dos indivíduos que mais bem compreendeu a sensibilidade moderna. Sua obra toda paga um tributo a ela.
"Vertigo" é seu mais arrematado exemplo e James Stewart, seu melhor porta-voz. A simplicidade e delicadeza com que James desempenha seus papéis me surpreende cada vez mais. Ele desempenhou um mesmo tipo durante décadas, porém, fê-los evoluir de acordo com as necessidades do diretor. Ele foi um dos primeiros stars do sexo masculino que chorou em frente das câmeras - numa época machista como os anos 30, bem se pode imaginar como isso não taxava negativamente os artistas. Os personagens que ele deu ao público nos anos 30 e 40 ajudaram a tornar verossímil não apenas John Fergusson mas todo o "Vertigo", que conhecemos em grande parte por seu próprio ponto de vista.
Vejamos as cenas em que ele conhece Madeleine e, a pedido de seu suposto esposo, passa a persegui-la. Vêmo-la primeiramente de costas (num plano de conjunto que toma todo o restaurante) e depois de perfil (num close-up). Ainda que se aproxime, ela continua a ser para John uma figura misteriosa - o que se deve em grande medida à imagem (mentirosa) que seu esposo pintou dela para John: ela estaria enlouquecendo, possuída pelo espírito da bisavó morta por amor. Uma imagem romântica...

O mistério que emana da mulher é, ironicamente, maior do que se supõe a princípio. Madeleine não é apenas uma mulher fugidia, ela é uma mulher que não existe (para perceber isso logo do princípio, o espectador precisa ver o filme uma segunda vez). É personagem ficcional, saída da imaginação de um homem calculista que, para matar a esposa, precisa de uma cúmplice (Judy/Madeleine) e de um bode espiatório (John). Ela é literatura (ou então, cinema). O modo como o homem apaixonado a vê em grande medida recupera-a como objeto de arte. Ela às vezes se assemelha às estátuas gregas (como no fotograma acima). Às vezes, a um quadro (como na fascinante cena da floricultura, em que o ambiente cinza ao redor de Jimmy só faz intensificar a explosão de cores em que a moça está mergulhada, emoldurando-a).



Depois de enquadrada, John vê Madeleine observar o quadro de sua ascendente. A linha que divide realidade e ficção parece desaparecer.


Hitchcock dá a ver o artífice competente que é, criando em "Vertigo" leitmotivs que perpassam todo o filme. O modo como Madeleine observa sua bisavó é semelhante ao modo como John Ferguson observa Madeleine - e é o ramalhete de rosas que levará John casualmente a encontrar Judy.
Madeleine olha o quadro; John a olha; nós os olhamos. Para esse voyerismo multiplicado há a excelente expressão francesa mise en abyme, (mal) traduzida entre nós por metalinguagem, e que literalmente significa “posto no abismo”, aquele efeito obtido por dois espelhos: quando uma imagem contém uma cópia menor dela, e assim sucessivamente. Ao fim e ao cabo, o público é tão ludibriado quando o protagonista pela cena que se oferece diante de si como espetáculo. Esta imagem que o filme constrói é, aliás, oriunda do mesmo campo semântico do redemoinho que se insinua primeiro nos créditos, repetindo-se no decorrer da obra no intuito de glosar a sensação de entontecimento, de falta de chão, de desvario do protagonista. (Este parágrafo só nasceu hoje, 29 jan. 2014, depois de dois meses de minha revisita ao filme, desta vez na telona do paulistano Espaço Unibanco-Augusta...). 

O tom esverdeado que circunda Madeleine quando ela caminha pelo cemitério repete-se nas luzes artificiais que envolvem Judy - tornada Madeleine -, no quarto barato de hotel. Hitchcock fala sobre esses dois usos do verde na entrevista a Truffaut, mas nada diz sobre a abundância de verdes que envolve a personagem de Kim Novac (o carro de Madeleine, o vestido de noite que ela usa quando John a vê pela primeira vez, o gramado em frente ao museu, a saia de Judy). O elemento verde é reiterado ad nauseam ao longo de "Vertigo", inebriando o ex-policial ao ponto de levar a mente até certo ponto cartesiana que cabe aos indivíduos de sua profissão a acreditar na história suspeita contada pelo amigo. Sem falar no leitmotif musical criado por Bernard Hermann, já que os violinos glosam, no plano sonoro, a paixão crescente de John por Madeleine.
"Vertigo" é uma obra de ficção que, enquanto explicita a filosofia de Hitchcock - alguns filmes são fatias de vida; os meus são fatias de bolo - trás à baila questões pungentes da sociedade contemporânea. Vemos desfilar um belo concerto criado pelos olhos apaixonados de John, mas também conhecemos o poder terrível que pode ter a ficção. Monroe (do O último Magnata, de Scott Fitzgerald), que amadureceu no mundo do cinema e ajudou a delinear as fronteiras do medium, descreve a aparição de Kathleen de modo muito semelhante ao que faz o John Fergusson criado por Hitchcock - e ambos acabam por perder a única mulher que poderia salvá-los, mulher que eles mesmos criaram. Porém, as respostas não são simples, se pensarmos que, com a crise da religião, a arte aparecia como o único elemento capaz de dar sentido à vivência cotidiana.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Da celuloide para a televisão e as ondas do rádio: Hollywood estende os tentáculos



"— Sabe de uma coisa?
— O quê?
Eu te amo.
— Eu sei.
— Beije-me como só você sabe.
Danado."

Planejei um começo todo diferente para esse post, mas, depois de ter acabado de ver "Annie" (1982), uma das coisas mais cativantes e inspiradas que já vi, sinto-me obrigada a mudá-lo. Mas como isso aqui não é uma tese (ainda bem), então não preciso me desculpar e posso logo continuar, por meio dessas linhas, a divertir-me com a carente e exuberante Miss Hanningan enquanto ela abre seu coração desdenhado para o galã de uma rádio-novela, recebendo emocionada as palavras que ele dirige à heroína.
Na verdade, este desvio não me leva para muito longe da estrada principal. Mesmo assim, retomemos o nosso rumo anterior. Mais tarde Miss Hannigan retornará.
...

No feriado carnavalesco, enquanto dava boas risadas vendo o trio Julie Andrews/ Mary Poppins e Eliza Dollittle cantando em uníssono o Supercalifragilisticexpialidocious no "The Julie Andrews Hour" (programa televisivo produzido pela ATV e distribuído pela ITC Entertainment entre 1972 e 1973), dei-me conta de como os domínios de Hollywood iam muito além das salas de projeção de dentro e fora dos Estados Unidos.

The Julie Andrews Hour 1: Julie canta com as personagens que criou

Sabe-se que, a partir dos anos 50, com a rápida penetração do televisor nos lares dos norte-americanos, a indústria do cinema começou a perder terreno. Porém, ela acabou reconquistando o equilíbrio. Para isso, contribuíram os programas televisivas conduzidos por movie stars como a já mencionada Julie, Doris Day (The Doris Day Show, CBS, 1968-1973), Jack Benny (The Jack Benny Program, CBS, 1950-1964), Lucille Ball (I love Lucy, CBS, 1951-1957). Até mesmo o diretor Alfred Hitchcock foi o "anfitrião" dos norte-americanos no Alfred Hitchcock Presents - série de suspense que, a contar pelo episódio a que assisti alguns meses atrás (The Avalon Emeralds, 1959), parece ter sido fascinante. Esses artistas, consumidos com avidez pelo público desde que passaram a ser comercializados em revistas especializadas (o que ocorreu em 1911 com a Motion Picture Story Magazine), tinham suficiente credibilidade para conquistarem os olhares dos adeptos da nova mídia.

Essas pérolas começaram a ser redescobertas com o advento do Digital Video e do DVD - que são, junto com a internet, duas das grandes invenções do século XX. Sem esses aparatos seria praticamente impossível que o público comum tivesse acesso à Julie Andrews dizendo, numa cômica acidez, que Twiggy desempenhou no cinema o papel que ela - Julie - criara no teatro em "The Boy Friend": coisa com a qual "eu logicamente estou acostumada", diz Julie. É no mesmo tom que Julie Andrews "reclama" da bilheteria de "Star!" (1968), um fascinante e desdenhado filme seu: "Se alguns de vocês conhecem esse número de 'A Estrela' - e, a contar pelo retorno de bilheteria, suponho que poucos conheçam...", continua ela. Se as caixinhas desses shows não fossem lançadas às centenas nos Estados Unidos, eu não veria a Ginger Rogers dançando com Jack Benny um pot pourri dos números musicais que dividira com Fred Astaire ao longo de 10 filmes, tampouco teria podido imaginar uma relação entre tal número e o pot pourri das mesmas canções compartilhado por Massina e Mastroianni em "Ginger e Fred" (1986). Tampouco teria visto Gene Kelly e Fred Astaire cantando, num dueto, a história de suas vidas (cinematográficas) noutra relíquia que descobri por acaso numa loja da cidade, "Gene Kelly: an American in Passadena". Aliás, a intertextualidade com o cinema já começa no título do show, alusão a "An American in Paris" (1951) - "Sinfonia de Paris" no Brasil, filme que arrebanhou 6 estatuetas do Oscar em 1952.

Frank Sinatra foge de Betty Garret em "Um dia em Nova Iorque" ("On the town", 1950).

As séries televisivas comandadas por astros e estrelas de Hollywood bastante frequentemente (para não dizer sempre) estendiam às casas das pessoas a persona artística deles. Quase nunca havia questionamento e, se havia, isso invariavelmente era feito por meio de uma piscadela de olhos, à maneira das revistas cinematográficas que reproduziam as fofocas criadas pelos estúdios. Julie Andrews não pôde levar para a frente das câmeras as personagens que tornara célebres no cinema, diziam os estúdios. Então, lá está Miss Andrews dizendo isso para milhões de norte-americanos enquanto os faz conhecer sua versão de Eliza. Do mesmo modo, Frank Sinatra, o rapazote que temia as mocinhas em películas como "Marujos do Amor" ("Anchors Aweigh", 1945), "A Bela Ditadora" ("Take me out to the ball game", 1949) e "Um dia em Nova Iorque" ("On the town", 1949), conta a Gene Kelly (que, nesses filmes era o rapaz que atraía a mulherada) finalmente ter conseguido virar o jogo.

Gene Kelly e Frank Sinatra em Gene Kelly: An American in Passadena (1978),


show em que ambos revisitam musicalmente os musicais em que trabalharam juntos.

E como Frank virara o jogo, afinal, todos sabiam que ele se casara com a belíssima Ava Gardner, a mulher passional e intensa de "Show Boat" (1951) e de "A condessa descalça" ("The barefoot condessa", 1954).

Frank e Ava Gardner

Cinema e televisão, realidade e ficção, verdade e mentira intercambiavam-se facilmente na Hollywood clássica. Como não se podia precisar onde começava uma coisa e terminava a outra, o público tinha acesso a uma extensão do cinema onde quer que estivesse: no dentista, lendo uma revista cinematográfica; em casa, vendo um programa televisivo, ou até mesmo ouvindo um programa de rádio. E é aí que chamamos Miss Hanningan para ocupar novamente o primeiro plano.


Veio a calhar eu ter conhecido "Annie" ontem. O lindo musical dirigido por John Huston (diretor do Falção Maltês, creem?) jogou luzes sobre um assunto que eu não sabia muito bem por onde pegar.
Surpreendi-me ao descobri na internet as gravações de rádiofilmes radializados à população norte-americana dos anos 30 aos 50. No entanto, não tinha ideia do papel que eles desempenhavam na sociedade até que vi a senhora Hanningan de camisola, no conforto de seu quarto, abraçada ao rádio que transmitia um desses shows.


Embora as primeiras transmissões radiofônicas datem do ano de 1906 nos Estados Unidos e de 1922 no Brasil, o rádio verdadeiramente atingiu projeção comercial nos anos de 1930. No final desta década, duas séries faziam sucesso entre os norte-americanos, The Screen Guild Theater e Lux Radio Theater. Ambas apresentavam adaptações radiofônicas de filmes, as quais costumeiramente tinham como protagonistas os mesmos artistas que criaram os personagens nas telas (artistas que chegavam a ganhar $ 5.000 por aparição).
Lux Radio Theater deu início ao negócio em 1934, quando a empresa ainda estava localizada em Nova Iorque. O programa, transmitido até 35 pela NBC e até 54 pela CBS (a NBC reassumiu comando do mesmo de 54 a 55), era apresentado pelo diretor ficcional Douglass Garrick, personagem interpretado por John Anthony, e Peggy Winthrop, a garota Lux, interpretada por Doris Dagmar (descobri tudo isso na entrada da Wikipedia referente ao programa, entrada que me pareceu digna de credibilidade, já que me remeteu aos arquivos sonoros de dos programas da série de 1936 a 1955). O espetáculo era assistido por um público de estúdio. Além disso, havia uma sessão roteirizada em que Garrick conversava com os artistas principais - há uma fascinante charge disso em "Annie", quando Daddy Warbucks tenta desajeitadamente dar conta do script que lhe foi posto nas mãos e acaba, sem querer, endossando uma marca de pasta de dente... Cecil B. DeMille assumiu a apresentação do programa em 1936, pouco depois do show ter se movido para Hollywood, comandando-o até 1945. Nomes como Leslie Howard substituiram-no quando ele viajava.

Público em frente à "Hollywood's Lux Radio Playhouse", situada no n. 1615 da rua North Vine.
Fonte: http://otrarchive.blogspot.com/2009/07/lux-radio-theater.html

A certa altura o show passou a receber um público externo. Como mostra a fotografia, os lugares eram disputados...


The Screen Guild Theater foi ao ar de 1939 a 1952, inicialmente pela CBS, a partir de 1848 pela NBC e de 50 a 51 pela ABC. Na imagem abaixo, vemos Jack Benny, George Murphy, Joan Crawford e Reginald Gardiner apresentando o show de 8 de janeiro de 1939.

Fonte: http://www.joancrawfordbest.com/

Joan Crawford é figura carimbada nesses shows. Apenas para a Lux Radio ela apresentou, ao lado de Spencer Tracy, uma adaptação de "Anna Christie" (Greta Garbo, estrela do filme da MGM, nunca participou de nenhuma dessas adaptações), da "Casa de Boneca" e de "Mary of Scotland" (10/5/37) - apenas para citar algumas.
Cary Grant e Rosalind Russel repetiram sua parceria numa versão adaptada do impagável “His girl Friday” (em 30/9/1940, mesmo ano da película, aliás). Dividiram novamente o microfone em “Take a letter, darling”, adaptado do filme em que Rosalind dividiu a cena com Fred MacMurray (filme datado de 1942 e adaptação de 9/11/42). Também coube à atriz o papel da russa mais do que direta de "Ninotchka" (21/4/1940), eternizada na telona no desempenho magistral de Greta Garbo.
Lillian Gish encarou o microfone no suspense “Marry for Murder” (em 9/09/1943). Em 6/5/1946, Ginger Rogers foi nas rádios a “Bachelor Mother” que fizera nas telas (lindo filme, aliás). David Niven, seu galã no cinema, acompanhou-a na empreitada. Em 1 de outubro de 1939, a atriz juntou-se a Clark Gable em “Imperfect Lady”, além de ter sido protagonista numa história de suspense denominada "Vamp till dead" (11/1/1951), que estou morrendo de curiosidade de conhecer. Carole Lombard, a Miss Clark Gable, juntou-se a James Stewart naquele mesmo ano no romance “Tailored by Toni”, e se juntou a Fred MacMurray em 9/11/1942 para radializarem “True Confession” (14/4/41), adaptação da produção em que ambos dividiram a cena em 1937.

Carole Lombard chiquérrima nos estúdios da CBS. A atriz também tomou parte na radialização de "Mr. e Mrs. Smith", de Hitchcock (veiculado em 1941), "My Man Godfrey" (em 1938); "In name only" (em 1939) e "The moon is our home" (em 1941).
Fonte: http://carolelombard.org/november-contest-carole-lombard-old-time-radio-shows

Orson Wells - que, segundo consta, levou ao desespero os norte-americanos ao anunciar pelo rádio que os extraterrestres atacavam a Terra (na verdade, ele apenas radializava uma versão da “Guerra dos Mundos”) – divide com Lucille Ball e Hedda Hopper as honras da casa em 18/2/1940 quando apresenta “Dinner at eight”, versão do sucesso all star picture dirigido por George Cukor em 1933.

Orson Wells nos estúdios da CBS


James Stewart no estúdio da NBC em "The Six Shooter. The return of Stacy Gault" (1953)
Fonte: http://www.examiner.com/x-27356-OldTime-Radio-Examiner~y2009m11d8-Sometimes-blundering-sometimes-shooting-Oldtime-radio-listening-8-November

Até mesmo as produções eminentemente cinematográficas de Hitchcock foram disseminadas pelas ondas do rádio - foram adaptados “Spellbound” (8/3/1948) e “Notorious” (6/1/1949), por exemplo – neste último, Ingrid Bergman repete o papel que havia desempenhado na película de 1946. Aliás, foi por intermédio de Miss Bergman que descobri toda essa preciosidade na internet, por meio de um usuário do You Tube que anexou entre seus favoritos a versão radiofônica de "Anna Karenina" (4/10/1944), em que Bergman e Gregory Peck atuam em conjunto. Ingrid também levou ao rádio Paula Alquist e Ilsa Lund, em versões radiofônicas de "Gaslight" (1946) e "Casablanca" (26/4/1943). E agora interrompo a lista, que não tem nenhuma intenção de ser exaustiva, considerando-se que The Screen Guild Theater apresentou 527 episódios e o Lux Radio Theater, 926... (os links levarão os interessados para a parte deste material disponível na web).
Que incrível descoberta! Considerando meu entusiasmo ao pôr os ouvidos nesse material, imagino como não seria nos idos de 1930, 40 e 50, quando o público abria as portas de casa para receber seus ídolos da tela e podiam até levá-los para a cama, como fez Miss Hanningan. Se na sala escura do cinema os espectadores se dissolvem na tela de projeção, como não devia ser quando, no aconchego de seu lar, chegava-lhes aos ouvidos as vozes de seus artistas preferidos - vozes que lhes eram tão familiares. Que sensação de intimidade essas vozes não lhes transmitiam? As adaptações radiofônicas das produções cinematográficas eram mais breves que os originais - 10 minutos, 25 minutos, 1 hora. Mas, que efeito não deviam causar quando eram somadas à memória visual que o público tinha das películas! Que empolgante ter o apoio das vozes queridas dos artistas para trazer à tona as imagens dos filmes. E que divertido passatempo não devia ser comparar dois artistas no desempenho de um mesmo papel!

Lurene Tuttle e Rosalind Russell em "The Sisters", radializado noutro programa - Suspense (CBS, 1942-1962) em 1948.
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Suspense_%28radio_program%29

Em 1950, Gloria Swanson e Jose Ferrer radializaram noutro programa de rádio, The Big Show, um tratamento de 10 minutos de uma de minhas screwball comedies favoritas, "Twentieth Century" (1934), em que John Barrymore e Carole Lombard dividem brilhantemente a cena. Gloria está tão deliciosa quando Carole no seu desempenho da atriz teatral Lily Garland, outra pobre Galateia nas mãos de um cruel Pigmalião... A adaptação de "Anna Karenina" estrelada por Bergman e Peck tem pouco mais de 29 minutos. A trama gira em torno da leitura, ao filho de Anna, de uma carta que ela escrevera ao conde Vronsky depois de começar a ser desdenhada por ele. A estratégia é engenhosa, pois os flashbacks da vida amorosa de ambos aproveitam muitas das linhas do roteiro original. Aqui podemos ver as diferenças entre as performances de Ingrid e Greta Garbo, duas grandes atrizes que, apesar de conterrâneas, nunca se bicaram muito. Greta Garbo é eloquente, grave. Ingrid é extremamente simples. Impossível escolher qual a melhor. Logo mais, vou me deleitar com a leitura que Rosalind Russell - outra de minhas atrizes favoritas - faz de "Ninotchka".
Em "Tailored by Toni", James Stewart, com aquela sua delicadeza inigualável, diz palavras doces a Carole Lombard. Quantas mulheres, além de Miss. Hanningan, não abraçaram e beijaram seus aparelhos de rádio ouvindo declarações de amor semelhantes?... Haveria melhor convite para levá-las ao cinema para que continuassem a cena de amor no escurinho da sala de projeção - tendo pertindo de si, não só as vozes, mas também os rostos dos galãs? Para isso, ali estava o apresentador do programa, que, solícito, indicava aos ouvintes quais filmes dos ídolos estavam em cartaz. Impossível o espectador ser mais enredado. Eu que o diga...