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sábado, 31 de março de 2012

O musical dos musicais: “Cantando na Chuva” (Singin’ in the Rain, 1952)


Parece mentira que a obra prima de Gene Kelly e Stanley Donen completou esta semana 60 anos, tão lépida e faceira ela ainda é; mágica do cinema, que dá miraculosa juventude eterna a alguns de seus produtos. Nos três anos de blog quis muitas vezes falar desse filme ao qual já vi seguramente 60 vezes... Mas como me debruçar a contento em algo que tem pra mim tão grande valor afetivo? E o que dizer de uma obra sobre a qual tudo já se disse? O viés mais seguro para fazê-lo, penso hoje que seja o da memória. “Singin’ in the Rain” marcou-me mais que qualquer outro filme. Por mais tempo, pelo menos. Compilar minhas memórias dele talvez (me) ajude a entender porque eu o amo tanto.
“Singin’ in the Rain” foi no início projetado como mais um sucesso de box office da “unidade” de Arthur Freed na MGM. Moda na época era girar os musicais em torno do cancioneiro de compositores americanos relevantes. Desta vez escolheu-se a obra do próprio Freed e de Nacio Herb Brown, respectivamente letrista e compositor de sucessos dos talkies de Hollywood desde 1929. A música tema soou na revista cinematográfica “The Hollywood Review of 1929”, aurora do cinema falado. O sentimento infantil e festivo de se dançar debaixo de um aguaceiro foi o ponto de partida obrigatório para que Adolph Green e Betty Comden construísse o enredo. Costuram o longa outras canções da dupla Freed/Brown, compostas para filmes como “Babies in arms”, de 39 (Good Morning); “The Broadway Melody”, de 29 (“You were meant for me”, “The Broadway Melody”, “The wedding of the painted doll”); “São Francisco: cidade do pecado” (Would you) – filmes de qualidade muito variada, alguns bastante fracos (como “The Broadway Melody”, vencedor do Oscar de Melhor Filme em 29). É notável que esse material heterogêneo tivesse feito brotar flor tão bela.
Mais que beleza, o que Green e Comden conseguem é sistematizar, com artesania ímpar, a História de um filão cinematográfico de tremendo sucesso das décadas de 30-50 (o cinema musical) e de uma fase delicada do cinema mundial (a introdução do som e a reestruturação do quadro “estrelar” das grandes companhias). E isso de forma leve e bem-humorada, num produto de entretenimento plenamente apetecível à massa que ia ao cinema nos anos 50 – uma porção de pretensiosos do século XXI poderiam se aproveitar dessa lição, tornando a arte legível ao espectador contemporâneo...
“Singin’...” recua até o ano de 1927, até os momentos que antecedem e sucedem a chegada de “The Jazz Singer”, o primeiro filme da indústria a inserir de modo sistemático diálogos falados e música. Protagonizado por Al Jolson, artista de renome da Broadway daqueles tempos, o filme causou comoção, não só no público, desejoso de ouvir as vozes dos artistas, como do meio artístico, com razão temeroso de que artistas de vozes pouco atraentes perdessem espaço. Dentro deste contexto histórico recriado por Comden e Green é inserido Don Lockwood (Gene Kelly), personagem ficcional que remete a galãs como John Barrymore e Douglas Fairbanks, que incorporava nas telas o másculo protetor das fêmeas da Idade Média à Idade Contemporânea. Seu par romântico é a loura linda, instável e de voz pouco fotogênica Lina Lamont (Jean Hagen), alusão a atrizes como a norueguesa Greta Nissen, que perderam espaço na tela branca assim que Hollywood começou a falar.
O filme pinta a trajetória desse par romântico que, como tantos, foi cozinhado pelas revistas de 
fofocas de Hollywood. Ambos supostamente se amam. Na verdade, vivem a trocar farpas: o ator detestando a atriz; ela infantilmente acreditando nas fofocas ventiladas pela imprensa. A mulher de voz esganiçada e humor de prima-dona perde espaço para Kathy Selden (Debbie Reynolds), um dos tantos novos rostos surgidos com o som: jovem, fresca e musical. O galã mantém seu posto de macho alfa dentro e fora das telas, agora não mais como o “Cavaleiro Duelista” da fita muda sustada em plena produção, mas como o “Cavaleiro Dançante” da mais nova produção musical – gênero que ascende com a chegada do som, ironicamente atingindo naqueles anos 50 seu apogeu e seu declínio.
Se não bastasse a fidelidade com que a história dessa Era tumultuosa é contada em “Singin’ in the Rain”, o filme ainda surpreende pela genialidade com que conduz o que lhe é mais elementar: a 
música e a comédia. Para ilustrá-lo, cenas pegas ao acaso bastam: A dançarina e atriz iniciante Kathy Selden (uma crua e talvez por isso mesmo eficaz Debbie Reynolds) é obrigada pelo acaso a dar carona a Don Lockwood: para resistir à investida do galanteador (o trocadilho com o nome do Don Juan não é casual), Kathy relativiza o valor artístico do trabalho dele – “Não passa de pantomima”, diz ela, diferente do teatro, arte de verdade, repleta de diálogos grandiosos. John Barrymore, irmão de carne-e-osso de Don Lockwood, possivelmente ouviu assertivas do tipo, ele que trocara os palcos onde declamara Shakespeare pelo cinema silencioso, muito mais lucrativo. Don no começo faz pouco da jovem que sonhava sucesso nos palcos: “Kathy Selden como Julieta, como Lady Macbeth, como Rei Lear (para esse papel você vai precisar usar uma barba)”. Mas no final, o desfecho cômico-patético-dramático de Don, que tem suas roupas rasgadas pelo carro de Kathy depois de lhe dizer teatralmente “I must tear myself from your side” (“Devo me apartar de você”, “tear” significando igualmente rasgar”), patenteia de modo efetivo o lugar de peça de museu que Hollywood legava aos artistas incapazes de fazerem a passagem do cinema silencioso para o sonoro.
Pérolas são todas as sequências do estúdio onde será filmado o filme-dentro-do-filme “Cavaleiro Duelista”: o plano-sequência de Don passeando pelo estúdio da fictícia “Monumental Pictures” (ironia graciosa com outros estúdios de nome hiperbólico, como a “Universal Pictures”), enquanto no segundo plano desenvolvem-se cenas que em nada se relacionam umas às outras (um ritual indígena; um ajuntamento de torcedores vestindo as cores da bandeira; uma luta em cima de uma locomotiva); as cenas do silent “Cavaleiro Duelista” propriamente ditas, por exemplo aquela em que Don executa trejeitos amorosos para a mulher fingida que era sua estrela, enquanto a boca dele lhe profere uma torrente de insultos; e depois, o mesmo estúdio aparelhado para a rodagem de filmes sonoros, com seus técnicos ainda acostumando-se com a novidade (os microfones mal posicionados que ora gravavam os batimentos cardíacos da atriz, ora deixavam de captar parte importante do que ela dizia).
Essas cenas todas encontram ressonâncias no mundo real. Hoje são notórias as brigas on screen e off screen entre artistas que o público julgava se amarem. Isso sem contar os problemas ocorridos durante a projeção, sobre os quais até revistas brasileiras debruçaram-se – a Cinearte, depois de relatar como um delay do som destruiu a atmosfera dramática de “Coquete” (1929), primeiro filme falado de Mary Pickford, questiona-se se o cinema sonoro sobreviveria. “Singin’ in the Rain” traz uma cena épica alusiva à questão, na qual a mocinha sem querer troca de voz com o vilão, transformando o drama na mais arrematada comédia e o “Cavaleiro Duelista”, num fracasso de bilheteria.
Ao tomar como objeto os bastidores de Hollywood do final de 1920, “Singin’ in the Rain” prefere a leveza ao drama. Escolhe como protagonista um astro que, como vários, fez com segurança a passagem do silencioso ao sonoro. Assim, tem a oportunidade de usar a trilha alegre e adocicada 
que Freed e Brown criaram para tantos filmes em que imperava o Happy End. A minha preferida de todos os tempos, desde me conheço por cinéfila, é “Good Morning”, introduzida por Kathy Selden depois que ela propõe a Don e ao amigo comum Cosmo Brown (Donald O’Connor) transformarem o “Cavaleiro Duelista” no “Cavaleiro Dançante”. Meu lado feminista adora ver a jovenzinha com esse poder na sociedade de 1920, que começava a reconhecer os direitos da mulher; mas também meu lado crítico não deixa de perceber a ironia da situação posta em cena – caberá à nova geração a primazia nos musicais da época (tanto que é a adolescente “Judy Garland” a responsável por entoar “Good Morning” pela primeira vez em película).
Leveza que em momento algum significa fragilidade 
de concepção. O filme tem uma porção de números musicais primorosamente coreografados: Além de “Good Morning” e da legendária “Singin’ in the Rain” destaca-se o balé da “Broadway Melody”, que no filme-dentro-do-filme sinalizaria a passagem da realidade ao sonho do protagonista, mas no filme serve de desculpa para uma das sequências mais sofisticadas da história do cinema musical: com grande corpo de baile, números de balé e sapateado, e uma longilínea Cyd Charisse dividindo com Gene uma sequência em que ela ora se faz de vamp arrasa quarteirão, ora de mocinha (prenúncio do que ela faria um ano mais tarde no número “A Murder Mistery in Jazz”, de “The Band Wagon”). Outro imperdível é “Make ’em Laugh”, que presta uma justa homenagem aos números disparatados do teatro de vaudeville, homenagem ainda mais cabível já que é dançado por Donald O’Connor, ator formado por esse teatro.
“Singin’ in the Rain” foi pouco lembrado pelo Oscar de 1953 (onde recebeu duas indicações e nenhum prêmio), talvez porque um ano antes “Sinfonia de Paris” – que também tinha o dedo de Gene – levara para casa 6 Oscars (incluindo os prêmios de Melhor Filme, Roteiro e Música). No entanto, ele teve a sorte de ter entre seus criadores o obstinado Gene Kelly, que anos depois produziria a triologia de documentários “That’s Entertainment”, hino de amor ao cinema musical que situava “Singin’ in the Rain” entre os grandes, ao lado de “Sinfonia de Paris”. Felizmente acreditaram em Gene, e agora esta e outras maravilhas do cinema musical estão em DVDs recheados de extras, prontas para deliciarem as novas gerações.

domingo, 30 de outubro de 2011

Era uma vez um tolo e uma vampira: desdobramentos da “Vampire” do poema de Rudyard Kipling nos filmes de 1915 a 1966

Vestindo unicamente uma túnica branca, a mulher reclina-se sobre o homem que jaz em seu leito de morte. Ela é uma vampira. Ele, sua última vítima. A pintura do inglês Phillip Burne-Jones causou sensação ao ser exposta em público pela primeira vez, em 1897. Tanto que, inspirado por ela, Rudyard Kipling compôs o poema “The Vampire”. Nos versos, um eu-lírico aparentemente perturbado estende-se longamente sobre o perigo representado por aquela mulher misteriosa, perto da qual os homens não passavam de tolos.

A fool there was and he made his prayer
(Even as you and I!)
To a rag and a bone and a hank of hair
(We called her the woman who did not care),
But the fool he called her his lady fair
(Even as you and I!)

Burne-Jones e Kipling não tiraram o tema do nada. O arquétipo da mulher fatal povoa o imaginário ocidental desde a antiguidade e, como a fênix, renasce continuamente das cinzas. A cada retorno, crescem suas vítimas e os sentidos a ele vinculados. A mulher descrita por Kipling empresta a vilania e o éthos misterioso das fêmeas medievais, tantas delas mortas acusadas de servirem o demônio. No que toca ao seu nome, também remete ao personagem de Drácula, a quem Bram Stokem deu vida no mesmo ano. Mas igualmente respinga a literatura Romântica, especialmente no que diz respeito à faceta exótica e erótica de tal produção. A “jovem fada”, ser belíssimo e selvagem que enreda o cavaleiro em armas, obrigando-o a vagar a esmo na “fria borda da colina” (“La Belle Dame sans Merci”, poema de Keats – 1919); a maga que se veste de menino no intuito de penetrar no mosteiro onde habita o monge Ambrósio e lá, o induz à libertinagem (“Monk”, romance de Lewis, 1796): aproxima essas mulheres a invulgar beleza, o porte altivo e dominador, a frieza, o canibalismo sexual.
La Belle Dame Sans Merci de Sir Frank Dicksee (1853 - 1928)

O vampirismo delas é metafórico, o que não significa que, na literatura romântica, elas não convivessem com as vampiras literais. Um exemplo é a esplêndida Clarimonde do conto “A morte amorosa”, de Gautier. “Aquela mulher era um anjo ou um demônio, e talvez os dois; certamente não saía do flanco de Eva, a mãe comum.” – diz o pobre padre ao lembrar do momento em que os olhos dele encontraram os dela, quando ele era ordenado: “Que olhos! Como um raio, decidiram o destino de um homem.”. E efetivamente decidiram: o homem torna-se amante da vampira que, para se nutrir, bebia gotículas de seu sangue quando ele dormia.
O tema me interessa, aqui, pela relação que ele estabelece com o campo cinematográfico. Aliás, meu fascínio pela personagem da “Vampire” data da época em que inaugurei este blog, (quase) exatos três anos atrás. Nada melhor que lembrar do aniversário do meu filhinho trazendo-a de volta; especialmente considerando-se que o aniversário de “Filmes, filmes, filmes” é no Dia de Finados, dois após o Halloween... Meu fascínio foi primeiro gerado pela Theda Bara, hoje uma ilustre desconhecida da massa que vai ao cinema, porém, a principal atriz de meados dos anos 10. Em 1915, a atriz, então novata, encarnou a personagem de Kipling de modo tão altissonante que ela e sua película adquiriram fama instantânea. Na aurora do cinema de estúdio, parecia sensacional que uma atriz – ainda mais uma que desempenhasse papel de vilã – recebesse 100 cartas diárias, muitas com pedidos de conselhos; e açulasse as ligas de moralidade em torno de todos os EUA; e do dia para a noite começasse a rodar o mundo como símbolo de tudo o que era proibido e delicioso. Bara foi pioneira em mostrar o potencial mercadológico, social e simbólico do cinematógrafo.
O filme em questão, “A fool there was” (dirigido por Frank Powell para a Fox Films), apropria-se literalmente dos versos do poema de Kipling, que servem de intertítulo à encenação do declínio de um homem de família que se envolve com a personagem-título: “bela dama” tão conhecedora do “Desconhecido”, porém, tão alheia à moralidade comum. A fita aproveita-se igualmente da trama de “A fool there was”, drama em três atos de Porter Emerson Browne – encenado com tanto sucesso na Broadway (em 1909) que motivou o escritor à produção o romance homônimo; texto, aliás, dedicado a Robert Hilliard, criador do principal papel masculino no palco da Broadway e um dos responsáveis pelo processo de plágio movido contra o filme. A corte acusa o filme de se apropriar do título do livro, nada dizendo sobre a linha geral da trama – da qual, diga-se de passagem, ele também se apropria.
No poema, o caso entre a “Vampira” e o “Tolo” ganha o estatuto de símbolo: tempo e lugar são suspensos; em primeiro plano está a paulatina destruição do homem que desperdiçou “honra e fé e um intento verdadeiro” com a “mulher que não se importava”. Na peça e no romance, o símbolo é encarnado num tempo e lugar: a movimentada Nova Iorque do início do século XX, mais especificamente a elegante Fifth Avenue, onde cresce uma menina e os dois meninos que a amam. Todos são amigos. Depois de adultos, a jovem casa-se com um desses dois rapazes e tem uma filha. A família e o amigo vivem às mil maravilhas até que o homem – John Schuyler, o tolo em questão – é convidado a viajar ao estrangeiro a trabalho.
Seu encontro com a “Vampire” não fica devendo nada à literatura anterior que trata do tema. Também seus olhos são presas dos olhos da malvada: “[Deus] não me ajudou; e não consegui resistir. Eu tentei! Como tentei! Mas havia algo em seus olhos, eram olhos que queimavam e crestavam!”. Sua destruição é descrita nos mínimos detalhes no romance. No fim de seus dias, já preso de corpo e alma ao comando da femme fatale, torna-se “Uma imitação enfraquecida, miserável, digna de piedade do John Schuyler que ele havia sido.”. “Honra, e fé, e um intento verdadeiro, uma esposa, uma criança, uma reputação, um caráter”, tudo ele perdeu, restando-lhe apenas o “nu, úmido esqueleto”. Como um pássaro encantado por uma cobra, ou um príncipe encantado por uma bruxa má – analogias postas no romance – não havia escapatória ao ser humano escolhido como vítima pelo ser supra-humano. Isso aproxima “A fool there was” da literatura romântica e da decadentista/ simbolista do fim do século XIX, sensíveis ao intangível e ao misterioso que circundava o homem.
Katherine Kaelread, a Vampire da peça de Emerson Browne

Porém, a história de Porter Emerson Browne é, sobretudo, uma peça moralista. No cerne da questão está a ambição do homem, que abdicava da segurança do lar e da proximidade da família e rumava ao desconhecido. Mesmo sua força e pureza de caráter, reafirmados ad nauseam nas primeiras 100 páginas do livro, não conseguem ajudá-lo quando ele se encontra com os olhos e depois, com o restante do corpo da mulher fatal. À segurança do lar ele prefere o amor da vamp: amor que queima “como o fogo do inferno”, tão excitante quanto a rosa vermelha cujas pétalas ela debulha sobre ele. Tudo isso é contado com fortes tintas melodramáticas, que insistem em pintar a felicidade no seio do lar e num matrimônio sadio em contraposição à saciedade sexual nos braços da vampira – alegria intensa porém, mentirosa (“false heaven of unreal joys”, como pomposamente descreve o romance), como a história desfilará escolarmente ante os olhos do público.
O fim do homem é a mais vil das mortes: abandonado pela família e amigos e decrépito, ele despenca aos pés da vamp, que debulha sobre seu corpo as últimas pétalas vermelhas que ela lhe oferecerá. Aqui não há dupla interpretação – diferente do conto de Gautier, em que o padre, depois de matar a vampira, questiona-se se ele seria realmente mais feliz sem ela. No final da peça – diz a crítica dela publicada na época – a luz que banhava o casal de libertinos indicava com clareza que não era o céu que os esperava; expediente que a própria crítica aplaude, já que “textos moralizantes nunca são demais” – ela afirma.
O cinema, desde seu surgimento, acompanhou o teatro no emprego da personagem tipo da mulher fatal. Porém, no escuro da sala de exibição elas pareciam ao público mais deleitantes do que perigosas. Em “A fool there was”, a “Vampire” de Theda Bara termina com um riso sardônico enquanto desfolha rosas sobre o cadáver de John Schuyler. Nada de luz indicando punição: o homem é punido; ela sai vitoriosa. Não muito depois, por influência das ligas de moralidade, as vamps das telas principiariam a amargar claras punições pelos seus atos. Antes disso, Theda Bara vira ídolo de homens e mulheres, velhos e crianças; é transformada pelos fãs em conselheira e até leva a cabo o insólito papel de madrinha dos soldados americanos durante a Primeira Guerra (ela recebe o cetro ao som de entusiastas Vamp! Vamp! Vamp! vindos dos soldados, como lembrou-me certa vez o amigo Ricardo Leitner).
Fotografia de divulgação de "A fool there was"

Depois de Theda Bara, muitas mulheres fatais amargaram com a morte os crimes que cometeram. Os anos de 1910 para 1920 foram, para o cinematógrafo, de busca de um crescente realismo; de uma crescente humanização de arquétipos – como constata Edgar Morin no saborosíssimo (e inteligentíssimo) As estrelas: mito e sedução no cinema. A vamp de Theda Bara era uma força da natureza; selvagem, inexplicável e indomável. As posteriores eram mais humanas, suscetíveis ao amor, à consciência de seu erro e, na lógica pedagógica do melodrama, merecedoras de punição. Conforme o realismo assenta-se ao cinematógrafo, personagens como a “Vampire” de “A fool there was” são consideradas mais e mais ridículas (para constatar o fato basta que assistamos a trechos deste filme com os pressupostos de hoje). Isso as leva a serem lidas pelo cinema, nos anos subseqüentes, pelo viés do humor.
Exemplo delicioso é a participação de Gloria Swanson num episódio do “The Beverly Hillbillies” de 1966, no qual ela incorpora a personagem de Theda Bara num filme rodado dentro do episódio. O “Tolo” é o pai de família, uma espécie de Zé Buscapé, o que por si só já dá dimensão de humor à apropriação. A graça ainda será multiplicada pela encenação ultrateatral do casal, pela alteração do conteúdo e alguns diálogos – numa clara referência à película de Bara – e pelo desfecho diametralmente oposto, já que o pai larga de bom grado a mulher fatal para ficar com a esposa e a filha. Abaixo há os dois vídeos para a comparação (e a diversão).



Outra releitura inteligente do tema é feita na “Roda da Fortuna” (dirigido por Vincente Minnelli, filme que foi tema do post abaixo), mais especificamente na sequência musical “Girl Hunt: a Murder Mystery in Jazz”, protagonizado por Cyd Charisse e Fred Astaire. Este filme, como o anterior, faz uma leitura metalinguística da arte; desta vez, do teatro. O número soma mistério e dança, numa referência ao filme noir – outro gênero que fizera largo uso da mulher fatal – e ao cinema musical. Desta vez, não retornam trechos do filme de Theda Bara, mas sim do poema de Kipling. A sequência apropria-se de símbolos criados pelo poeta, todavia, desfragmenta-os e os ressignifica. O farrapo, o osso e o chumaço de cabelo (rag, boné, hank of hair) aos quais o “Fool” de Kipling faz sua oração serão, no número musical, transformados nas pistas que levarão o detetive protagonizado por Astaire a descobrir o assassino ladrão de esmeraldas.
Ao longo do número, acompanhamos as andanças do homem, apresentadas de modo fragmentário e aludindo todo o tempo aos símbolos em questão: quer seja no ateliê de alta costuras, na loja de perucas ou no insólito “Bar do Esqueleto”, onde ele novamente encontrará a mulher “má” e “perigosa”, de vestido vermelho colado ao corpo e andar deslizante de cobra. A mulher – Cyd – deslizará por seu corpo e o convidará para dançar, introduzindo no sincopado número de jazz - plenamente compartilhado por ambos - a dureza e a assertividade comum ao arquétipo das mulheres fatais.
Figura diametralmente oposta é a loura delicada – também interpretada por Cyd – cujos passos de balé servem como símbolo da necessidade que ela tem de proteção. Porém, o detetive e o público descobrirão no desfecho que a malvada não era a vamp e sim, a mocinha loura. Ela é morta pelo detetive machão que verá, ao fim e ao cabo, que “alguma coisa estava faltando” para si. Faltava-lhe a mulher fatal: “Ela era má, era perigosa. Eu não podia confiar nela. Mas era o meu tipo de mulher.”. É com ela que ele acabará a história – e bastante feliz, aparentemente...

Os objetos artísticos que surgiram a partir da pintura de Burne-Jones, nos quais me detive aqui, deixam claro o que atesta Edgard Morin sobre a paulatina humanização do arquétipo da vamp. Ao me deter sobre os exemplos, procurei demonstrar como isso acontece. A “Roda da Fortuna” dá o último passo, penso eu, ao inverter o arquétipo. Fico pensando no quanto tal inversão não se relaciona ao papel que a mulher daquela época desempenhava na sociedade. Ela saía mais às ruas, votava, tinha mais voz ativa, tomava decisões; não era mais o bicho desconhecido e temido pelo homem, que ele se via obrigado a proteger ou subjugar. O que igualmente gerou outro tipo de homem: um que não se incomodava em ser domado, contanto que ele e a domadora se divertissem. Afinal, um relacionamento regado a rosas vermelhas poderia ser muito mais excitante (em todos os níveis) que as rosas brancas oferecidas pelas sensaboronas mocinhas dos anos de 1900, 1910.
*
Me ajudaram a escrever o post, além de Morin, Mário Praz (A carne, a morte e o diabo na Literatura Romântica).

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

“A Roda da Fortuna” (1953): brilhante homenagem ao cinema musical

“The Band Wagon” compôs a lista dos filmes de Vincente Minnelli que o Centro Cultural Banco do Brasil recentemente apresentou ao público amante do cinema.
A mostra dedicada ao diretor ofereceu aos curiosos a possibilidade de conhecer um dos mais competentes artífices da Hollywood clássica e aos cinéfilos, o prazer de rever clássicos do musical e do melodrama – gêneros que Minnelli manipulava com maestria – desta vez na tela grande. Eu me encaixo na segunda categoria. No CCBB carioca eu vi esse musical pela – suponho – vigésima vez. E mesmo sabendo de cor e salteado canções, diálogos e sequências, senti emoção análoga àquela que me pegou quando eu o vi pela primeira, ainda moleca. Análoga não, maior. E não só pelo tamanho da tela: minhas andanças pelo mundo da sétima arte me permitiram comprovar que esse filme é um dos mais sofisticados musicais da história do cinema.
Curioso é que essa sofisticação é construída a partir da mais óbvia das premissas. A obra trata dos bastidores da produção de uma comédia musicada a ser encenada na Broadway. Segue, portanto, a trilha dos “Broadway Melody” (de 1929, 1935, 1937, 1940), de “Rua 42” (24nd Street, 1934), “Footlight Parade” (1933), “Ciúme, sinal de amor” (Berkleys of Broadway, 1949) e um cem número de backstage movies que ganharam as telas desde que o cinema começou a falar e a dançar. Soma-se a isso o fato de sua produção ter sido contratada tendo-se em vista a utilização de um cancioneiro fechado (pertencente aos compositores Arthur Schwartz e Howard Dietz), a partir do qual deveria ser desenvolvido o enredo. Coube à unity de Arthur Freed, da MGM, rodar um filme que visasse, sobretudo, engordar os caixas da companhia. Trata-se, portanto, de uma obra realizada dentro do mais severo controle do estúdio, o que aparentemente lhe roubaria qualquer originalidade.

Os trigêmeos encrenqueiros Astaire, Febray e Buchanan

Porém, o acaso quis que as canções fossem escolhidas com extremo bom-senso por Betty Comden & Adolph Green, que no ano anterior haviam roteirizado “Cantando na chuva”, o que por si só patenteia a eficiência de ambos. A dupla produz um roteiro num só tempo limpo, profundo e bem-humorado, amarrando-o tão bem às canções que é como se elas brotassem naturalmente dele. O principal responsável por encarnar a graça desenhada pelo casal é Fred Astaire, monstro sagrado do cinema musicado que desempenha um ator decadente do teatro cômico-musicado tentando voltar ao palco da Broadway pelas mãos de Lily e Lester Marton – exceto no que toca à decadência, Fred era uma espécie de irmão do personagem que põe em cena. Oscar Levant e Nanette Fabray desempenham, em cena, os alter-egos de Comden e Green. Fred e Cyd Charisse representam personagens que ecoam seus passos artísticos.

O sapateador

Fred ingressou no show business ainda criança. Sapateou ao lado da irmã até ela se casar e deixar o meio artístico; só aí ele pensou seriamente no cinema. Cyd era bailarina de formação e fora contratada pela MGM para tomar parte no coro de “Ziegfeld Follies” (1945), uma das stravaganzas da companhia. Embora o studio system criasse para eles personas artísticas que se completavam, o certo é que ambos eram artistas muito diferentes: um popular, outro clássico. Comden & Green aproveitam-se disso, fazendo essa diferença emergir como cerne da história. Com isso, transformam “A Roda da Fortuna” no palco onde se encena o conflito indissolúvel entre a arte da elite e a das classes populares. Porém, isso se dá sem que a graça se perca. Embora o filme tenha um forte viés crítico, ele não deixa de ser adorável; e para que isso ocorra, Jack Buchanan desempenha papel fundamental.
Buchanan era ator cômico de carreira sólida no vaudeville londrino. Em “The Band Wagon” ele é Jeffrey Cordova, um “faz tudo” comum no meio artístico naquele tempo – meio que tinha revelado Orson Welles (diretor-autor-ator de “Cidadão Kane”) uma década atrás. Jeffrey é um artista “sério” – a primeira cena sua flagra-o desempenhando a tragédia “Édipo Rei”.

Édipo Rei sai de cena...

Todavia, ele será caracterizado desde o início como personagem cômico – repetindo uma constante na produção cinematográfica de Hollywood: a defesa de seu cinema a partir do rebaixamento da arte considerada “erudita”. Daí, por exemplo, o deslizar jocoso da câmera pelo cartaz de propaganda da tragédia na qual seu personagem entrava como tradutor, diretor, produtor e protagonista. Jeffrey desempenha um megalômano que rejeita a arte ligeira em prol do drama, considerado por ele um produto cultural superior. Por isso, tão logo põe as mãos no roteiro dos Marton, desejará transformar uma “light play” num “drama with stature and meaning”.
Exemplo cabal da graça com que o assunto é tomado encontra-se na extraordinária “That’s Entertainment” – canção que, dali em diante, passaria a definir o show business (Gene Kelly rodaria, entre os anos de 70 e 90, o trio de documentários do mesmo título – um sensacional tributo ao cinema musicado da MGM). A canção é usada duas vezes. Na primeira, quando os Marton apresentam o entrecho da comédia a Jeffrey e descobrem que ele deseja transformá-la no tal “drama de estatura e significado”. Questionado sobre o retorno financeiro que teria uma produção tão erudita, o homem afirma que tudo era entretenimento: desde os trejeitos de um palhaço até o drama vivido por Hamlet. A partir daí, os roteiristas e o sapateador decadente entram em seu jogo, dando vida a um genial número musical, perfeito pelo modo como a cenografia potencializa o sentido da música. Segue o vídeo – nunca é demais (re)ver uma obra prima:

Jeffrey transformará a “peça graciosa” escrita pelos Marton – peça em que o enredo frouxo serviria apenas como desculpa para a introdução de números musicais; bem ao gosto do teatro musicado daqueles tempos – numa versão moderna do mito de Fausto. Num drama de tamanha estatura ganharia o papel feminino principal a bailarina clássica interpretada por Cyd Charisse, a quem o público é apresentado num solo de ballet de tirar o fôlego.

A bailarina

Cyd e Fred – Gabrielle Gerard e Tony Hunter – metaforizam desde o princípio o conflito entre a cultura europeia e a norte-americana. Falei sobre isso com algum cuidado posts atrás, quando discuti o papel dos musicais de Rooney & Garland na afirmação da cultura ianque. Remeto os leitores àquele texto para ir direto ao ponto aqui. Se, durante a primeira metade do filme, sobram desentendimentos e farpas entre o casal principal, ambos acabarão por descobrir um meio termo que torne possível sua relação – primeiro no âmbito profissional e depois no afetivo. Isso não enquanto ensaiam o Fausto moderno, mas sim durante o belíssimo dueto Dancing in the Dark, no qual Cyd e Fred explicitam que o que os diferencia é o gênero ao qual cada um resolveu se dedicar, não a beleza com que o fazem.

O desenlace da história é óbvio – portanto, deem-me licença de dizê-lo: a megalomania de Jeffrey mostra-se infrutífera, levando-o a entregar a batuta da direção da peça a Tony Hunter. Uma vez na dianteira, o sapateador poderá realizar com os Marton o projeto original. De bailarina clássica, Gabriele Gerard torna-se vedete de teatro de revista – o sonho de consumo da Hollywood clássica... E todos vivem felizes para sempre – inclusive eu, pelo menos cada vez que vejo o filme. Mas não sem antes entoarem uma paródia de “That’s entertainment” que subverte o sentido da original. Se, na versão entoada no início do filme, todo e qualquer gênero serviria para entreter o público, no final fica claro a supremacia do teatro leve sobre o erudito:

A show that is really a show
Sends you out with a kind of a glow
And you say as you go on your way
That Entertainment!
A song that is winging along
or a dance with a touch of romance
is the art that appeals to the heart
That's Entertainment!
Admit we're a hit and we'll go from there
We played a charade that was lighter than air
a good old fashioned affair
as we sing this finale
we hope it was up your alley
No death like you get in Macbeth
No ordeal like the end of Camile
This goodbye brings a tear to the eye
The world is a stage
the stage of a world of entertainment!

Supremacia que, em última instância, é estendida para o próprio cinema americano – que tantas críticas ouvira desde o início do século por ser considerado um arremedo da arte teatral; por só servir de diversão barata às classes pobres; por destruir as personagens criadas para os palcos and so on... A releitura da canção passa em revista o enredo do filme: o palco (e, por extensão, a tela), é um mundo aberto ao entretenimento, portanto, um espetáculo que desejasse tocar o coração do público deveria deixar de lado o drama em prol da “música que voa como um pássaro” e da “charada que é mais leve que o ar”... Coisa que o filme faz de sobra, brincando com gêneros e tipos explorados pelo cinema em seus primeiros 50 anos de existência (os desentendimentos amorosos, os quiproquós cômicos, a trama detetivesca, a mulher fatal), submetendo-os todos à lógica do musical de estúdio. Porque “A Roda da Fortuna” é, acima de tudo, uma defesa arrebatada e arrebatadora do musical da época de ouro do cinema. E se esses argumentos ainda não convenceram o leitor a verem-no, então o vejam porque ele é lindo, lindo, lindo.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

O cigarro no cinema: 1897-2009


Nem bem amanheceu e a mocinha já está entregue à sua ocupação predileta. Lá está ela em sua negligée, recostada no divã e fumando. "A Morning wiff" ("Uma tragada matutina") diz a legenda da ilustração publicada na St. Paul's Supplement em 27 de abril de 1895. Confesso nunca ter dedicado muito tempo a pensar no papel exercido pelo cigarro na sociedade do final do século XIX e do século XX. Nunca até que minha orientadora Orna Levin (a quem, aliás, dedico a postagem) levantou uma lebre que valia a pena ser perseguida - e eu a perseguiria com mais pertinácia, não tivesse me aventurado por 15 dias num dos trabalhos mais bizarros em que me meti nos últimos tempos. Depois de quase sossobrar, eis-me aqui para tratar do assunto, o que farei, como sempre, en passant - minhas intenções épicas são sempre frustradas pela falta de tempo...
A moçoila da St. Paul não exibiu sozinha este que é, quiçá, o mais condenável hábito dos dias de hoje. Acompanharam-na uma procissão de mulheres, homens e crianças (!), apresentadas pelas empresas de cigarros para comprovarem como este nosso inimigo nº 1 da saúde pública era chique e saboroso. No início de 1920, quando saiu em volume o conto Fumo, da obra "Rosário da Ilusão" (1920), de João do Rio, a imprensa brasileira já havia sido visitada por uma porção dessas pessoas, como pude perceber passeando pelas folhas da época.
Revista Careta, Rio de Janeiro, 27 mar. 1920.



Revista Palcos e Telas, Rio de Janeiro, 27 jun. 1918


Revista Palcos e Telas, Rio de janeiro, 28 mar. 1918.

Na mesma época em que João do Rio dá vida à bituca de cigarro jogada na sarjeta por seu entediado dono - bituca que espirala um belo azul agradecido quando novamente ganha os dedos dele - o afrancesado almofadinha afirma que Son plaisir é ter entre seus dedos um fino cigarro da marca Veado, e até o garotinho sapeca diz não resistir ao cigarro York (e isso poucos dias depois de afirmar que seu pai aconselha que se fume York mesmo que para isso seja preciso andar "roto, mal arranjado, sujo"...). Ao vê-lo, não pude deixar de me lembrar da pré-adolescente Lucy Hill, da comédia de Billy Wilder "The Major and the Minor" (1942), que escondia uma caixa de cigarros debaixo da cama
O cigarro exalou charme por quase 100 anos. Quem, com mais de 25 anos, não se lembra dos belíssimos comerciais do cigarro Hollywood, que somavam rock'n roll e esportes radicais e fechavam com os dizeres: "Hollywood, o sucesso!".





A marca não deixa enganar de onde saiu a inspiração...
Os dedos seguram delicadamente o cigarro, do qual escapa uma fumaça suave que deixa o rosto do artista na semipenumbra. Impossível negar a elegância da linguagem corporal que acompanha o cigarro - mesmo que hoje saibamos de todo o mal gerado pelo seu consumo. Eu, que detesto seu cheiro, olho para a parede de meu quarto e vejo Audrey Hepburn segurando a piteira na legendária fotografia de "Bonequinha de Luxo", ("Breakfast at Tiffanys", 1961) meu retrato preferido da atriz. Hollywood decididamente teve um papel importante na disseminação do hábito. A mesma Ginger Rogers que se servia dos cigarros da pré-adolescente de "Major and the Minor", vinha de brinde com os cigarros Player's. E quanto esses brindes não apareceram nas telas, em filmes como "Ardida como pimenta" ("Calamity Jane", 1953) - em que a fotografia da atriz de revista vira mote para uma discussão protagonizada por Doris Day e Howard Keel -, ou "A Bela ditadora" ("Take me out to the ball game", 1949), em que os personagens de Sinatra e Kelly se gabam por ensinar o verdadeiro espírito americano aos moleques de rua ao dar a eles as fotografias de jogadores de baseball que vinham nas embalagens de cigarro.
Pesquisando a respeito do cigarro no cinema, ri da formulação de Moacir Scliar de que o auge da campanha de marketing para a venda do charuto foi quando Ingrid Bergman apareceu num filme dizendo que adorava seus fumantes. Não me lembro que filme é esse, mas não é difícil recuperarmos Miss Bergman na controversa pose. Vemo-la, por exemplo, em "Arco do Triunfo" ("Arch of the Triumph", 1948), em que ela interpreta uma cantora de um cabaré nublado pela fumaça exalada pelo cigarro. O pôster do filme ressalta a ambiguidade da personagem, que tarde demais acaba por preferir o amor de Charles Boyer ao dinheiro de Charles Laughton.

A verba que a indústria de cigarro injetou no cinema nos anos de 1940 e 50 foi responsável por números contraditórios: financiou uns filmes belíssimos e, por isso mesmo, glamurizou o hábito, incitando muitos a fumar. Décadas antes o cigarro já servia, no cinema, de metáfora para a relação sexual. Em "Flesh and the devil" (1926), Greta Garbo coloca-o entre seus lábios, acende-o e entrega-o ao seu amante. O soprar do fósforo dá lugar ao fade out - nada mais esclarecedor. Em 1933, na "Alegre Divorciada" ("Gay Divorcée"), a personagem de Fred Astaire leva a de Ginger Rogers ao êxtase na sequência Night and Day. Após a dança, ele a deposita no divã com a masculina sensação de dever cumprido (levemente machista, mas não por isso menos divertida) e oferece-lhe um cigarro. Eu não poderia deixar de colocar aqui a cena, primeiro dueto romântico do mais lindo casal de dançarinos da tela.

Outra película que captura o glamour que circunda o cigarro é "A Estranha passageira" ("Now, voyager", 1942), em que a patinha feia tornada cisne Bette Davis recebe do amado Paul Henreid o cigarro que ele mesmo acendera - a antológica sequência do ator acendendo os 2 cigarros tanto ilustra a liberação sexual da até então retraída mulher quanto sublima o ato, já que seu amado era comprometido.

Embora a história do cigarro no cinema remonte à época em que o medium surgiu (e prova disso é o curioso comercial do produto rodado por Edison no fim do século XIX, registrado no livro que acabou de chegar aqui em casa "Silent Movies: the birth of film and the triumph of movie culture, de Peter Kobel e Library of Congress"), é inegável que sua influência na sociedade de consumo tenha aumentado quando os ídolos cinematográficos também passaram a ser consumidos.

O último quadro da propaganda dos cigarros Admiral, rodada por Edison em 1897.

A rebeldia imersa em fumaça de Dean e Brando conseguiu inúmeros seguidores que desejavam se parecer com seus ídolos. Talvez seja por isso que, em 1951, estudiosos da área de saúde começaram a estudar a relação entre o fumo e as doenças. Coincidência ou não, em 1953 a personagem de Cyd Charisse, da "Roda da fortuna" ("The Band Wagon"), recusa o cigarro das mãos de Fred Astaire alegando que "uma dançarina não deve fumar". Cyd, bailarina de formação, confessou que só fumou uma vez na vida, em "Cantando na chuva" ("Singin' in the rain," 1952 ), quando interpretou a sedutora dançarina de cabaré que enreda a personagem de Gene Kelly na sequência Broadway Rhythm. A suposta propaganda antitabagista da "Roda da fortuna" é exceção no cinema, malgrado as contínuas descobertas sobre o malefícios do cigarro. Depois dela surgiram clássicos como "Bonequinha de Luxo", sem falar nos filmes mais recentes - impressionei-me com a presença contundente do cigarro em "Coco antes de Chanel" ("Coco avant Chanel", 2009), que vi no cinema no início desta semana.
Em meados do ano passado, São Paulo aprovou uma lei proibindo o fumo em ambientes públicos fechados. Mesmo hoje em dia, em que fumantes são perseguidos como criminosos, a arma do crime continua circundada por uma aura de fascínio. Por isso, não são poucos os articulistas que se batem contra a divulgação do fumo no cinema, intentando arrastar às telonas a proibição que vigora nas telinhas. Neste caso, o posicionamento talvez deva ser menos restritivista. Por que não exibir em TV aberta o belíssimo "Estranha passageira" - eu o vi pela primeira vez ainda menina na Globo e me apaixonei por ele logo de cara? Por que impedir que personagens acendam um cigarro para explicitarem sua rebeldia? A História atrelou ao cigarro uma imagem de charme, rebeldia e sexualidade - é bobagem negá-lo. Do mesmo modo que as crianças que veem Power Rangers não necessariamente sairão batendo nos pais, ou os jovens que assistem aos "Jogos mortais" não necessariamente brincarão com a vida dos desafetos, assim também aqueles que veem seus ídolos tragando com deleite não se tornarão fumantes. Não dá pra negar que a educação é o melhor caminho pra se evitar que as ilusões da tela se tornem uma realidade devastadora para muitas crianças, jovens e adultos. Lógico que é mais fácil tomar um atalho e recriar a censura no cinema. Porém, isso certamente não é o mais inteligente a se fazer.

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Falei a este respeito no "Estadão Acervo" do dia 31 mai. 2014. Para acessar o programa, clique aqui.

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Ídolos das telas em propagandas (explícitas) de cigarros:


Comecemos com Fred Astaire, que, na "Roda da Fortuna", ouviu da personagem de Cyd que "um dançarino não deve fumar". Aqui, ele divide com Rita Hayworth o anúncio dos cigarros da marca "Chesterfield". Detalhe: eles dançaram juntos no musical "You'll never get lovelier" (1942).

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Porém, bem antes disso, ainda na passagem do cinema mudo para o falado, Al Johnson, King Vidor e Betty Compson anunciam "Lucky Strike". Todos confirmam: "É torrado. Não irrita a garganta. não dá tosse".

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Spencer Tracy grita em alto e bom som que cigarros não fazem mal à garganta.

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Marlene Dietrich nos anos 50: "Testes científicos provam que Lucky Strike é mais suave que qualquer outra marca conhecida!".

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Hedy Lamarr diz: "Um bom cigarro é como um bom filme - sempre saboroso. É por isso que fumo Luckies!"

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Linda Darnell convida os consumidores de cigarro a mudarem para "Camels". "Faça o teste por 30 dias... veja você mesmo..."...

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Essa também era a marca preferida de John Wayne: "Não posso correr o risco de pegar uma irritação na garganta", diz ele, "por isso fumo Camels - eles são suaves". "Nenhum caso de irritação devido ao cigarro", corrobora o anúncio, sacramentado pela delicada mocinha fumando ao lado. Ironia cruel, considerando-se a doença que levou Wayne...

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O Papai Noel fuma "Pall-Mall" pelo mesmíssimo motivo... Desculpem, não consegui resistir a essa...

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Comprovando que cigarro e Natal se misturavam na Hollywood clássica, Ronald Reagan diz: "Mandarei Chesterfields para todos os meus amigos. Esse é o Natal mais feliz que qualquer fumante pode ter...". "Compre a bela Caixa-cartão de Natal".

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Outro Papai Noel fumante. Este prefere "Camel".

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Joan Crawford
descansa do seu papel no filme Manequim, da MGM, para atuar como a Mamãe Noel" para a Lucky Strike.

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O cigarro e a guerra se misturam nesta propaganda do "Chesterfield", anunciado por Veronica Lake, Paulette Godard e por uma Claudette Colbert fardada. Diz a propaganda: "Fotografadas no set do novo filme da Paramount 'So proudly we hail' (Saudamos orgulhosas)", de 1943. A história de amor em tempos de guerra ajuda a marca a convidar norte-americanas ao patriotismo: "A América precisa de enfermeiras... Aliste-se agora".

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Rita Hayworth assina embaixo: "Todos sabem que Chesterfield é minha marca".

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Gregory Peck também: "Se quer um cigarro Suave que Satisfaça, ele é Chesterfield."

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Glenn Ford, que atua no "Sr. Delicado", fuma um cigarro que faz juz ao seu personagem: "Fume MEU cigarro... Suave Chesterfield.

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E Kirk Douglas: "Chesterfields são tão Suaves que deixam um gosto fresco em minha boca".

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A marca é também a preferida de Arthur Godfrey, Bing Crosby e Perry Como, que cantam em uníssono o ABC de Chesterfield: "São suaves... muito mais suaves... Os melhores cigarros para você fumar.". A ênfase no "muito" carrega uma conotação muito diferente hoje...

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Lucille Ball começa se juntando ao ABC: "Chesterfield satisfazem completamente. São Suaves - muito mais suaves. É o meu cigarro".

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Mas depois troca-o por outro maior. "KING SIZE"..., que "supera qualquer outro em SABOR e CONFORTO!". "Sua garganta pode dizer (a garganta de novo...) é Philip Morris".

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E até chega a ilustrar uma caixa-presente da marca.

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E por fim, Betty Grable não tem vergonha de contar o que faz quando está com os garotos: "Com os garotos... Chesterfield".

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Meus muitos agradecimentos especialmente à minha amiga Cristina; a http://purviance13.blogspot.com/ e a http://www.emulsioncompulsion.com pelas imagens.