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terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Leslie Caron no Quartier Latin (8/1/2013)


A mostra "Paris vu par Hollywood", que encerrou carreira no Hôtel de Ville em meados do mês passado, ainda rende frutos. Diversos cinemas do Quartier Latin continuam a reverberar as clássicas canções norte-americanas que embalam gerações há 60, 70 anos, construindo no escuro da sala de projeção uma Paris afável, brilhante e musical. Impossível, depois de sermos embriagados por uma das stravaganzas da MGM, as ruas de Paris não passarem a soar o leitmotiv que serve de combustível aos passos do pintor Jerry de “An American in Paris”, ou o tema romântico que embala o idílio dele e de sua Lise às margens do Sena – grandes Gershwins, parisianíssimos americanos –, ou o “Bonjour Paris” com que Audrey, Freddy e Kay cantam os pontos turísticos da cidade. A mágica da projeção faz com que, caminhando por Paris, reencontremos a Paris de estúdio inventada por Hollywood. 
"An American in Paris" (1951)
A Rue Champolion, ruela do Quartier que abriga a homenagem, mal parece cruzar a movimentada Rue des Écoles e estar a dois passos dos concorridos Boulevards Saint Germain e Saint Michel. Apertada, a ponto de a fila de cinéfilos que a tomam antes das sessões impedirem a passagem dos carros por ela, parece mais é saída de um dos storyboards que engendraram o magnífico “An American in Paris” – encontro cabal entre ficção e realidade. Foi num desses cinemas da Champolion, a "Filmotheque du Quartier Latin", que Leslie Caron deu o ar da graça no último dia 8, numa séance (pra lá de) especial do filme em questão. 

Rue Champolion
Paris-cenário. Os leitores podem imaginar o que é para uma apaixonada pelo cinema clássico ver Mme Caron en personne!? Deixemos de lado, então, os desnecessários adjetivos e detenhamo-nos no ponto culminante, sua apresentação de “An American in Paris” (Un Americain à Paris/ Sinfonia de Paris, 1951). Leslie – licença agora para a intimidade tipicamente americana, perfeitamente cabível para o assunto em questão – é de uma lepidez que de modo algum acusa seus 81 anos. Longilínea, apesar do seu pouco menos de 1,60 m., elegante, desdobrou o charme físico em uma hora de um bem-humorado e profundo rememorar de sua carreira americana, focado neste filme que a lançou no cinema e no mercado mundial. 

Narrou os bastidores de seu encontro com o Gene Kelly: o primeiro desencontro (já que ela, adolescente primeira-bailarina de um teatro parisiense, fora embora apressada tão logo terminara seu espetáculo visto por Gene, “como toda boa moça da época”); o posterior encontro, já contratada pela MGM, dentro da qual ela descobriria que, atriz iniciante e completa desconhecedora do inglês, faria nos Estados Unidos “apenas” um dos papéis principais daquele que era vendido como o “maior musical de todos os tempos”. Uma vez nos EUA, conta a atriz que se iniciou no curso de inglês pelas mãos de Shakespeare, lido, relido e memorizado. 
Escolha suis generis, se considerarmos o gênero popular em que ela seria iniciada. Escolha coerente, no entanto, constatamos ao olharmos a carreira de Leslie Caron em retrospectiva: além de graciosa parceira de monstros sagrados da dança como Gene Kelly e Fred Astaire, a atriz acumula trabalhos dramáticos e cômicos (dentre os quais eu ressalto – porque adoro – sua sátira de Alla Nazimova em "Valentino", 1977, que pode ser visto aqui). 
Em sua fala, Leslie esquadrinhou os bastidores da produção de “An American in Paris”: as longas horas de trabalho de segunda a sábado; sua relação com Oscar Levant, que ela afirma ter sido desde o princípio amistosas, (apesar do que sabemos sobre o humor do ator/pianista); os encontros do elenco aos domingos, onde por diversão rodavam filmes tétricos (dos quais o hipocondríaco-pessimista Levant se recusava a participar); a timidez de Vincente Minnelli e a direção segura que Gene Kelly dava aos seus diálogos de aprendiz de inglês. 
Estendeu-se sobre a relevância do papel de Kelly para o resultado final da produção. Coreógrafo, ele era o responsável igualmente por posicionar a câmera nos números musicais. 

Como Alla Nazimova em "Valentino" (1977)
Abertas as perguntas, Leslie Caron respondeu sem reservas e em detalhes a tudo o que lhe perguntaram. Falou com carinho sobre “Gigi” (1958), feito quando ela “finalmente sabia representar”, uma vez que nessa altura já havia tomado anos de cursos de atuação – disse ter se sentido tola ao ver-se Lise, na tela, pela primeira vez, a modesta! Lembrou “Valentino”, “que muitos de vocês não devem conhecer”. E neste rebaixamento de tom menos próprio à diva que ela é que às mocinhas como Lise e Gigi que ela foi (e para todo o sempre será) nas telas, brincou sobre o sucesso que anda fazendo no Quartier Latin (o "Reflet Medicis", também na Rue Champolion, exibe uma versão restaurada de Gigi): “Ah, mas isso não vai durar muito.” 
Neste sentido, a cereja do bolo foi pra mim sua resposta a um questionamento sobre o star system. “Hollywood, de certa forma, desdobrou nas telas a personalidade de seus artistas.” Isso, dito com tanta sinceridade por ela no contexto que acabei de narrar, bota-me no mínimo a repensar o papel da capital do cinema na construção dos mitos das telas. Porque não considerar que a natureza tenha, em alguns casos, se sobreposto às pinceladas da Max Factor e às canetadas dos departamentos de marketing dos estúdios? Parece ter sido esse o caso de Leslie Caron. 


Na ocasião do encontro, Mme Caron assinou sua biografia “Une Française à Hollywood”, versão francesa do original em inglês (quem quiser pode encontrá-la aqui).

"Gigi" (1958)

domingo, 30 de outubro de 2011

Era uma vez um tolo e uma vampira: desdobramentos da “Vampire” do poema de Rudyard Kipling nos filmes de 1915 a 1966

Vestindo unicamente uma túnica branca, a mulher reclina-se sobre o homem que jaz em seu leito de morte. Ela é uma vampira. Ele, sua última vítima. A pintura do inglês Phillip Burne-Jones causou sensação ao ser exposta em público pela primeira vez, em 1897. Tanto que, inspirado por ela, Rudyard Kipling compôs o poema “The Vampire”. Nos versos, um eu-lírico aparentemente perturbado estende-se longamente sobre o perigo representado por aquela mulher misteriosa, perto da qual os homens não passavam de tolos.

A fool there was and he made his prayer
(Even as you and I!)
To a rag and a bone and a hank of hair
(We called her the woman who did not care),
But the fool he called her his lady fair
(Even as you and I!)

Burne-Jones e Kipling não tiraram o tema do nada. O arquétipo da mulher fatal povoa o imaginário ocidental desde a antiguidade e, como a fênix, renasce continuamente das cinzas. A cada retorno, crescem suas vítimas e os sentidos a ele vinculados. A mulher descrita por Kipling empresta a vilania e o éthos misterioso das fêmeas medievais, tantas delas mortas acusadas de servirem o demônio. No que toca ao seu nome, também remete ao personagem de Drácula, a quem Bram Stokem deu vida no mesmo ano. Mas igualmente respinga a literatura Romântica, especialmente no que diz respeito à faceta exótica e erótica de tal produção. A “jovem fada”, ser belíssimo e selvagem que enreda o cavaleiro em armas, obrigando-o a vagar a esmo na “fria borda da colina” (“La Belle Dame sans Merci”, poema de Keats – 1919); a maga que se veste de menino no intuito de penetrar no mosteiro onde habita o monge Ambrósio e lá, o induz à libertinagem (“Monk”, romance de Lewis, 1796): aproxima essas mulheres a invulgar beleza, o porte altivo e dominador, a frieza, o canibalismo sexual.
La Belle Dame Sans Merci de Sir Frank Dicksee (1853 - 1928)

O vampirismo delas é metafórico, o que não significa que, na literatura romântica, elas não convivessem com as vampiras literais. Um exemplo é a esplêndida Clarimonde do conto “A morte amorosa”, de Gautier. “Aquela mulher era um anjo ou um demônio, e talvez os dois; certamente não saía do flanco de Eva, a mãe comum.” – diz o pobre padre ao lembrar do momento em que os olhos dele encontraram os dela, quando ele era ordenado: “Que olhos! Como um raio, decidiram o destino de um homem.”. E efetivamente decidiram: o homem torna-se amante da vampira que, para se nutrir, bebia gotículas de seu sangue quando ele dormia.
O tema me interessa, aqui, pela relação que ele estabelece com o campo cinematográfico. Aliás, meu fascínio pela personagem da “Vampire” data da época em que inaugurei este blog, (quase) exatos três anos atrás. Nada melhor que lembrar do aniversário do meu filhinho trazendo-a de volta; especialmente considerando-se que o aniversário de “Filmes, filmes, filmes” é no Dia de Finados, dois após o Halloween... Meu fascínio foi primeiro gerado pela Theda Bara, hoje uma ilustre desconhecida da massa que vai ao cinema, porém, a principal atriz de meados dos anos 10. Em 1915, a atriz, então novata, encarnou a personagem de Kipling de modo tão altissonante que ela e sua película adquiriram fama instantânea. Na aurora do cinema de estúdio, parecia sensacional que uma atriz – ainda mais uma que desempenhasse papel de vilã – recebesse 100 cartas diárias, muitas com pedidos de conselhos; e açulasse as ligas de moralidade em torno de todos os EUA; e do dia para a noite começasse a rodar o mundo como símbolo de tudo o que era proibido e delicioso. Bara foi pioneira em mostrar o potencial mercadológico, social e simbólico do cinematógrafo.
O filme em questão, “A fool there was” (dirigido por Frank Powell para a Fox Films), apropria-se literalmente dos versos do poema de Kipling, que servem de intertítulo à encenação do declínio de um homem de família que se envolve com a personagem-título: “bela dama” tão conhecedora do “Desconhecido”, porém, tão alheia à moralidade comum. A fita aproveita-se igualmente da trama de “A fool there was”, drama em três atos de Porter Emerson Browne – encenado com tanto sucesso na Broadway (em 1909) que motivou o escritor à produção o romance homônimo; texto, aliás, dedicado a Robert Hilliard, criador do principal papel masculino no palco da Broadway e um dos responsáveis pelo processo de plágio movido contra o filme. A corte acusa o filme de se apropriar do título do livro, nada dizendo sobre a linha geral da trama – da qual, diga-se de passagem, ele também se apropria.
No poema, o caso entre a “Vampira” e o “Tolo” ganha o estatuto de símbolo: tempo e lugar são suspensos; em primeiro plano está a paulatina destruição do homem que desperdiçou “honra e fé e um intento verdadeiro” com a “mulher que não se importava”. Na peça e no romance, o símbolo é encarnado num tempo e lugar: a movimentada Nova Iorque do início do século XX, mais especificamente a elegante Fifth Avenue, onde cresce uma menina e os dois meninos que a amam. Todos são amigos. Depois de adultos, a jovem casa-se com um desses dois rapazes e tem uma filha. A família e o amigo vivem às mil maravilhas até que o homem – John Schuyler, o tolo em questão – é convidado a viajar ao estrangeiro a trabalho.
Seu encontro com a “Vampire” não fica devendo nada à literatura anterior que trata do tema. Também seus olhos são presas dos olhos da malvada: “[Deus] não me ajudou; e não consegui resistir. Eu tentei! Como tentei! Mas havia algo em seus olhos, eram olhos que queimavam e crestavam!”. Sua destruição é descrita nos mínimos detalhes no romance. No fim de seus dias, já preso de corpo e alma ao comando da femme fatale, torna-se “Uma imitação enfraquecida, miserável, digna de piedade do John Schuyler que ele havia sido.”. “Honra, e fé, e um intento verdadeiro, uma esposa, uma criança, uma reputação, um caráter”, tudo ele perdeu, restando-lhe apenas o “nu, úmido esqueleto”. Como um pássaro encantado por uma cobra, ou um príncipe encantado por uma bruxa má – analogias postas no romance – não havia escapatória ao ser humano escolhido como vítima pelo ser supra-humano. Isso aproxima “A fool there was” da literatura romântica e da decadentista/ simbolista do fim do século XIX, sensíveis ao intangível e ao misterioso que circundava o homem.
Katherine Kaelread, a Vampire da peça de Emerson Browne

Porém, a história de Porter Emerson Browne é, sobretudo, uma peça moralista. No cerne da questão está a ambição do homem, que abdicava da segurança do lar e da proximidade da família e rumava ao desconhecido. Mesmo sua força e pureza de caráter, reafirmados ad nauseam nas primeiras 100 páginas do livro, não conseguem ajudá-lo quando ele se encontra com os olhos e depois, com o restante do corpo da mulher fatal. À segurança do lar ele prefere o amor da vamp: amor que queima “como o fogo do inferno”, tão excitante quanto a rosa vermelha cujas pétalas ela debulha sobre ele. Tudo isso é contado com fortes tintas melodramáticas, que insistem em pintar a felicidade no seio do lar e num matrimônio sadio em contraposição à saciedade sexual nos braços da vampira – alegria intensa porém, mentirosa (“false heaven of unreal joys”, como pomposamente descreve o romance), como a história desfilará escolarmente ante os olhos do público.
O fim do homem é a mais vil das mortes: abandonado pela família e amigos e decrépito, ele despenca aos pés da vamp, que debulha sobre seu corpo as últimas pétalas vermelhas que ela lhe oferecerá. Aqui não há dupla interpretação – diferente do conto de Gautier, em que o padre, depois de matar a vampira, questiona-se se ele seria realmente mais feliz sem ela. No final da peça – diz a crítica dela publicada na época – a luz que banhava o casal de libertinos indicava com clareza que não era o céu que os esperava; expediente que a própria crítica aplaude, já que “textos moralizantes nunca são demais” – ela afirma.
O cinema, desde seu surgimento, acompanhou o teatro no emprego da personagem tipo da mulher fatal. Porém, no escuro da sala de exibição elas pareciam ao público mais deleitantes do que perigosas. Em “A fool there was”, a “Vampire” de Theda Bara termina com um riso sardônico enquanto desfolha rosas sobre o cadáver de John Schuyler. Nada de luz indicando punição: o homem é punido; ela sai vitoriosa. Não muito depois, por influência das ligas de moralidade, as vamps das telas principiariam a amargar claras punições pelos seus atos. Antes disso, Theda Bara vira ídolo de homens e mulheres, velhos e crianças; é transformada pelos fãs em conselheira e até leva a cabo o insólito papel de madrinha dos soldados americanos durante a Primeira Guerra (ela recebe o cetro ao som de entusiastas Vamp! Vamp! Vamp! vindos dos soldados, como lembrou-me certa vez o amigo Ricardo Leitner).
Fotografia de divulgação de "A fool there was"

Depois de Theda Bara, muitas mulheres fatais amargaram com a morte os crimes que cometeram. Os anos de 1910 para 1920 foram, para o cinematógrafo, de busca de um crescente realismo; de uma crescente humanização de arquétipos – como constata Edgar Morin no saborosíssimo (e inteligentíssimo) As estrelas: mito e sedução no cinema. A vamp de Theda Bara era uma força da natureza; selvagem, inexplicável e indomável. As posteriores eram mais humanas, suscetíveis ao amor, à consciência de seu erro e, na lógica pedagógica do melodrama, merecedoras de punição. Conforme o realismo assenta-se ao cinematógrafo, personagens como a “Vampire” de “A fool there was” são consideradas mais e mais ridículas (para constatar o fato basta que assistamos a trechos deste filme com os pressupostos de hoje). Isso as leva a serem lidas pelo cinema, nos anos subseqüentes, pelo viés do humor.
Exemplo delicioso é a participação de Gloria Swanson num episódio do “The Beverly Hillbillies” de 1966, no qual ela incorpora a personagem de Theda Bara num filme rodado dentro do episódio. O “Tolo” é o pai de família, uma espécie de Zé Buscapé, o que por si só já dá dimensão de humor à apropriação. A graça ainda será multiplicada pela encenação ultrateatral do casal, pela alteração do conteúdo e alguns diálogos – numa clara referência à película de Bara – e pelo desfecho diametralmente oposto, já que o pai larga de bom grado a mulher fatal para ficar com a esposa e a filha. Abaixo há os dois vídeos para a comparação (e a diversão).



Outra releitura inteligente do tema é feita na “Roda da Fortuna” (dirigido por Vincente Minnelli, filme que foi tema do post abaixo), mais especificamente na sequência musical “Girl Hunt: a Murder Mystery in Jazz”, protagonizado por Cyd Charisse e Fred Astaire. Este filme, como o anterior, faz uma leitura metalinguística da arte; desta vez, do teatro. O número soma mistério e dança, numa referência ao filme noir – outro gênero que fizera largo uso da mulher fatal – e ao cinema musical. Desta vez, não retornam trechos do filme de Theda Bara, mas sim do poema de Kipling. A sequência apropria-se de símbolos criados pelo poeta, todavia, desfragmenta-os e os ressignifica. O farrapo, o osso e o chumaço de cabelo (rag, boné, hank of hair) aos quais o “Fool” de Kipling faz sua oração serão, no número musical, transformados nas pistas que levarão o detetive protagonizado por Astaire a descobrir o assassino ladrão de esmeraldas.
Ao longo do número, acompanhamos as andanças do homem, apresentadas de modo fragmentário e aludindo todo o tempo aos símbolos em questão: quer seja no ateliê de alta costuras, na loja de perucas ou no insólito “Bar do Esqueleto”, onde ele novamente encontrará a mulher “má” e “perigosa”, de vestido vermelho colado ao corpo e andar deslizante de cobra. A mulher – Cyd – deslizará por seu corpo e o convidará para dançar, introduzindo no sincopado número de jazz - plenamente compartilhado por ambos - a dureza e a assertividade comum ao arquétipo das mulheres fatais.
Figura diametralmente oposta é a loura delicada – também interpretada por Cyd – cujos passos de balé servem como símbolo da necessidade que ela tem de proteção. Porém, o detetive e o público descobrirão no desfecho que a malvada não era a vamp e sim, a mocinha loura. Ela é morta pelo detetive machão que verá, ao fim e ao cabo, que “alguma coisa estava faltando” para si. Faltava-lhe a mulher fatal: “Ela era má, era perigosa. Eu não podia confiar nela. Mas era o meu tipo de mulher.”. É com ela que ele acabará a história – e bastante feliz, aparentemente...

Os objetos artísticos que surgiram a partir da pintura de Burne-Jones, nos quais me detive aqui, deixam claro o que atesta Edgard Morin sobre a paulatina humanização do arquétipo da vamp. Ao me deter sobre os exemplos, procurei demonstrar como isso acontece. A “Roda da Fortuna” dá o último passo, penso eu, ao inverter o arquétipo. Fico pensando no quanto tal inversão não se relaciona ao papel que a mulher daquela época desempenhava na sociedade. Ela saía mais às ruas, votava, tinha mais voz ativa, tomava decisões; não era mais o bicho desconhecido e temido pelo homem, que ele se via obrigado a proteger ou subjugar. O que igualmente gerou outro tipo de homem: um que não se incomodava em ser domado, contanto que ele e a domadora se divertissem. Afinal, um relacionamento regado a rosas vermelhas poderia ser muito mais excitante (em todos os níveis) que as rosas brancas oferecidas pelas sensaboronas mocinhas dos anos de 1900, 1910.
*
Me ajudaram a escrever o post, além de Morin, Mário Praz (A carne, a morte e o diabo na Literatura Romântica).

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

“A Roda da Fortuna” (1953): brilhante homenagem ao cinema musical

“The Band Wagon” compôs a lista dos filmes de Vincente Minnelli que o Centro Cultural Banco do Brasil recentemente apresentou ao público amante do cinema.
A mostra dedicada ao diretor ofereceu aos curiosos a possibilidade de conhecer um dos mais competentes artífices da Hollywood clássica e aos cinéfilos, o prazer de rever clássicos do musical e do melodrama – gêneros que Minnelli manipulava com maestria – desta vez na tela grande. Eu me encaixo na segunda categoria. No CCBB carioca eu vi esse musical pela – suponho – vigésima vez. E mesmo sabendo de cor e salteado canções, diálogos e sequências, senti emoção análoga àquela que me pegou quando eu o vi pela primeira, ainda moleca. Análoga não, maior. E não só pelo tamanho da tela: minhas andanças pelo mundo da sétima arte me permitiram comprovar que esse filme é um dos mais sofisticados musicais da história do cinema.
Curioso é que essa sofisticação é construída a partir da mais óbvia das premissas. A obra trata dos bastidores da produção de uma comédia musicada a ser encenada na Broadway. Segue, portanto, a trilha dos “Broadway Melody” (de 1929, 1935, 1937, 1940), de “Rua 42” (24nd Street, 1934), “Footlight Parade” (1933), “Ciúme, sinal de amor” (Berkleys of Broadway, 1949) e um cem número de backstage movies que ganharam as telas desde que o cinema começou a falar e a dançar. Soma-se a isso o fato de sua produção ter sido contratada tendo-se em vista a utilização de um cancioneiro fechado (pertencente aos compositores Arthur Schwartz e Howard Dietz), a partir do qual deveria ser desenvolvido o enredo. Coube à unity de Arthur Freed, da MGM, rodar um filme que visasse, sobretudo, engordar os caixas da companhia. Trata-se, portanto, de uma obra realizada dentro do mais severo controle do estúdio, o que aparentemente lhe roubaria qualquer originalidade.

Os trigêmeos encrenqueiros Astaire, Febray e Buchanan

Porém, o acaso quis que as canções fossem escolhidas com extremo bom-senso por Betty Comden & Adolph Green, que no ano anterior haviam roteirizado “Cantando na chuva”, o que por si só patenteia a eficiência de ambos. A dupla produz um roteiro num só tempo limpo, profundo e bem-humorado, amarrando-o tão bem às canções que é como se elas brotassem naturalmente dele. O principal responsável por encarnar a graça desenhada pelo casal é Fred Astaire, monstro sagrado do cinema musicado que desempenha um ator decadente do teatro cômico-musicado tentando voltar ao palco da Broadway pelas mãos de Lily e Lester Marton – exceto no que toca à decadência, Fred era uma espécie de irmão do personagem que põe em cena. Oscar Levant e Nanette Fabray desempenham, em cena, os alter-egos de Comden e Green. Fred e Cyd Charisse representam personagens que ecoam seus passos artísticos.

O sapateador

Fred ingressou no show business ainda criança. Sapateou ao lado da irmã até ela se casar e deixar o meio artístico; só aí ele pensou seriamente no cinema. Cyd era bailarina de formação e fora contratada pela MGM para tomar parte no coro de “Ziegfeld Follies” (1945), uma das stravaganzas da companhia. Embora o studio system criasse para eles personas artísticas que se completavam, o certo é que ambos eram artistas muito diferentes: um popular, outro clássico. Comden & Green aproveitam-se disso, fazendo essa diferença emergir como cerne da história. Com isso, transformam “A Roda da Fortuna” no palco onde se encena o conflito indissolúvel entre a arte da elite e a das classes populares. Porém, isso se dá sem que a graça se perca. Embora o filme tenha um forte viés crítico, ele não deixa de ser adorável; e para que isso ocorra, Jack Buchanan desempenha papel fundamental.
Buchanan era ator cômico de carreira sólida no vaudeville londrino. Em “The Band Wagon” ele é Jeffrey Cordova, um “faz tudo” comum no meio artístico naquele tempo – meio que tinha revelado Orson Welles (diretor-autor-ator de “Cidadão Kane”) uma década atrás. Jeffrey é um artista “sério” – a primeira cena sua flagra-o desempenhando a tragédia “Édipo Rei”.

Édipo Rei sai de cena...

Todavia, ele será caracterizado desde o início como personagem cômico – repetindo uma constante na produção cinematográfica de Hollywood: a defesa de seu cinema a partir do rebaixamento da arte considerada “erudita”. Daí, por exemplo, o deslizar jocoso da câmera pelo cartaz de propaganda da tragédia na qual seu personagem entrava como tradutor, diretor, produtor e protagonista. Jeffrey desempenha um megalômano que rejeita a arte ligeira em prol do drama, considerado por ele um produto cultural superior. Por isso, tão logo põe as mãos no roteiro dos Marton, desejará transformar uma “light play” num “drama with stature and meaning”.
Exemplo cabal da graça com que o assunto é tomado encontra-se na extraordinária “That’s Entertainment” – canção que, dali em diante, passaria a definir o show business (Gene Kelly rodaria, entre os anos de 70 e 90, o trio de documentários do mesmo título – um sensacional tributo ao cinema musicado da MGM). A canção é usada duas vezes. Na primeira, quando os Marton apresentam o entrecho da comédia a Jeffrey e descobrem que ele deseja transformá-la no tal “drama de estatura e significado”. Questionado sobre o retorno financeiro que teria uma produção tão erudita, o homem afirma que tudo era entretenimento: desde os trejeitos de um palhaço até o drama vivido por Hamlet. A partir daí, os roteiristas e o sapateador decadente entram em seu jogo, dando vida a um genial número musical, perfeito pelo modo como a cenografia potencializa o sentido da música. Segue o vídeo – nunca é demais (re)ver uma obra prima:

Jeffrey transformará a “peça graciosa” escrita pelos Marton – peça em que o enredo frouxo serviria apenas como desculpa para a introdução de números musicais; bem ao gosto do teatro musicado daqueles tempos – numa versão moderna do mito de Fausto. Num drama de tamanha estatura ganharia o papel feminino principal a bailarina clássica interpretada por Cyd Charisse, a quem o público é apresentado num solo de ballet de tirar o fôlego.

A bailarina

Cyd e Fred – Gabrielle Gerard e Tony Hunter – metaforizam desde o princípio o conflito entre a cultura europeia e a norte-americana. Falei sobre isso com algum cuidado posts atrás, quando discuti o papel dos musicais de Rooney & Garland na afirmação da cultura ianque. Remeto os leitores àquele texto para ir direto ao ponto aqui. Se, durante a primeira metade do filme, sobram desentendimentos e farpas entre o casal principal, ambos acabarão por descobrir um meio termo que torne possível sua relação – primeiro no âmbito profissional e depois no afetivo. Isso não enquanto ensaiam o Fausto moderno, mas sim durante o belíssimo dueto Dancing in the Dark, no qual Cyd e Fred explicitam que o que os diferencia é o gênero ao qual cada um resolveu se dedicar, não a beleza com que o fazem.

O desenlace da história é óbvio – portanto, deem-me licença de dizê-lo: a megalomania de Jeffrey mostra-se infrutífera, levando-o a entregar a batuta da direção da peça a Tony Hunter. Uma vez na dianteira, o sapateador poderá realizar com os Marton o projeto original. De bailarina clássica, Gabriele Gerard torna-se vedete de teatro de revista – o sonho de consumo da Hollywood clássica... E todos vivem felizes para sempre – inclusive eu, pelo menos cada vez que vejo o filme. Mas não sem antes entoarem uma paródia de “That’s entertainment” que subverte o sentido da original. Se, na versão entoada no início do filme, todo e qualquer gênero serviria para entreter o público, no final fica claro a supremacia do teatro leve sobre o erudito:

A show that is really a show
Sends you out with a kind of a glow
And you say as you go on your way
That Entertainment!
A song that is winging along
or a dance with a touch of romance
is the art that appeals to the heart
That's Entertainment!
Admit we're a hit and we'll go from there
We played a charade that was lighter than air
a good old fashioned affair
as we sing this finale
we hope it was up your alley
No death like you get in Macbeth
No ordeal like the end of Camile
This goodbye brings a tear to the eye
The world is a stage
the stage of a world of entertainment!

Supremacia que, em última instância, é estendida para o próprio cinema americano – que tantas críticas ouvira desde o início do século por ser considerado um arremedo da arte teatral; por só servir de diversão barata às classes pobres; por destruir as personagens criadas para os palcos and so on... A releitura da canção passa em revista o enredo do filme: o palco (e, por extensão, a tela), é um mundo aberto ao entretenimento, portanto, um espetáculo que desejasse tocar o coração do público deveria deixar de lado o drama em prol da “música que voa como um pássaro” e da “charada que é mais leve que o ar”... Coisa que o filme faz de sobra, brincando com gêneros e tipos explorados pelo cinema em seus primeiros 50 anos de existência (os desentendimentos amorosos, os quiproquós cômicos, a trama detetivesca, a mulher fatal), submetendo-os todos à lógica do musical de estúdio. Porque “A Roda da Fortuna” é, acima de tudo, uma defesa arrebatada e arrebatadora do musical da época de ouro do cinema. E se esses argumentos ainda não convenceram o leitor a verem-no, então o vejam porque ele é lindo, lindo, lindo.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

"White Christmas": a canção de Irving Berlin em dois musicais de Hollywood

Há exatos setenta anos, o compositor Irving Berlin escreveu esta que considero a mais linda canção de Natal de todos os tempos. "White Christmas" foi apresentada ao público pela primeira vez por meio da poderosa voz de Bing Crosby, numa apresentação do artista no show The Kraft Music Hall, veiculado pela rádio NBC no Natal de 1941.
No entanto, a música começou a trilhar carreira de sucesso (também na voz de Bing Crosby) apenas em meados de 1942, ao circular comercialmente no álbum com as canções do recém-lançado filme musical "Holiday Inn", protagonizado por Crosby e Fred Astaire. Lançado o filme, "White Christmas" competiu pela preferência do público com "Be careful, it's my heart", outra canção bem Irving Berlin, singela e linda. Porém, hoje o espaço é da primeira, pois já estamos em contagem regressiva para a chegada do Papai Noel e compartilhamos com os norte-americanos dos anos 40 da ânsia por canções que definam essa magia quase tangível que acompanha o Natal.
"Holiday Inn" foi lançado nos Estados Unidos em agosto de 1942. Pouco mais de um mês antes do Natal de 1942, a canção tornou-se a preferida dos ouvintes segundo vários hit parades do país, incluindo a rádio das Forças Armadas, inundada com pedidos da música, segundo registros. Hoje, seu single é considerado o mais bem vendido de todos os tempos, com impressionantes 50 milhões de cópias vendidas no mundo todo.
Trago essas informações históricas (emprestadas do canal do You Tube que apresenta a primeira versão da música para as telas) para pensar nos vários sentidos que "White Christmas" ganhou com o passar dos tempos. Naquele 1942 e anos subsequentes, ela ajudou a aquietar corações de soldados e familiares divididos pela 2ª Guerra. Seu eu-lírico pode bem ser considerado um daqueles jovens que partiam para o horror desconhecido munidos daquele patriotismo exacerbado que os americanos sabem como ninguém ostentar, e, distante de sua terra e de seus entes queridos, sonhava com os "Natais Brancos" de outrora: "Eu sonho com um Natal Branco/ Igual àqueles que eu conhecia/ Onde os topos das árvores brilham/ E as crianças ficam atentas/ Para ouvir os trenós na neve". Tranquilos que não vou mais continuar a minha tradução paupérrima da canção - para não ser acusada daquilo que critico: as versões malfeitas que não conseguem repor nem o sentido, nem a poesia dos originais. Fiquem com a obra-prima:
I'm dreaming of a white Christmas
Just like the ones I used to know
Where the treetops glisten,
and children listen
To hear sleigh bells in the snow
I'm dreaming of a white Christmas
With every Christmas I write
May your days be merry and bright
And may all your Christmases be white
Com duas estrofes e nove versos e a descrição de um pequeno quadro de felicidade familiar, Berlin conseguiu como nenhum outro suavizar a atmosfera de tensão da época. Interessante é que o primeiro uso cinematográfico da música não a relacionou à Guerra.

"Holiday Inn" também não tematiza o Natal - embora a data abra e feche a película que narra as aventuras e desventuras amorosas de um par de comediantes (protagonizados por Fred e Bing, dois dos artistas mais badalados do show bizz no momento). O título refere-se à pousada/restaurante administrada pela personagem de Bing, que, curado de um recente ataque de nervos, decide fundar um estabelecimento que apenas precise abrir nos feriados nacionais. E assim, Mark Sandrich (diretor de 5 das 10 películas de Ginger Rogers & Fred Astaire - só isso já serve para recomendá-lo) faz desfilar em frente ao espectador uma patriótica parada em comemoração às datas principais do calendário americano: Dia de Ação de Graças, 4 de julho, aniversário de Abraham Lincon, Páscoa, etc.
O humor que perpassa a história é quebrado nos dois momentos em que "White Christmas" é apresentada, os quais narram com a mesma doçura dois momentos fundamentais para as personagens de Bing Crosby e Virginia Dale: primeiro, quando os dois começam a se conhecer enquanto dividem de modo familiar uma noite de Natal na pousada em vias de ser inaugurada; e segundo, o reencontro de ambos, já apaixonados, na frieza do estúdio de Hollywood que transforma em filme a já então bem-sucedida pousada. A união do casal, debaixo da reprimenda do diretor, ressalta ainda uma vez o clima de acolhimento familiar promovido pela música. Mais que a badalação da Meca do cinema, a qual copiava (e copiava às vezes mal, segundo a personagem de Crosby) a realidade, tudo o que os pombinhos precisavam era um do outro. Sim, é piegas, mas funciona perfeitamente. 

"White Christmas" deu nome a um típico filme de Natal que começou a ser exibido nos Estados Unidos em outubro de 1954 - isto, bem como o fato de o nome do compositor anteceder o título do filme, patenteiam como Berlim e sua música gozavam da admiração do público.
Nesta película, a 2ª Grande Guerra ocupa papel de destaque, quem sabe, mimetizando a importância que a canção tivera naqueles últimos anos da conflagração.
"White Christmas" trata de modo quase que documental das confraternizações que aconteciam no front e dos destinos de seus combatentes. Talvez por isso, eu não consigo deixar de ficar engasgada sempre que ouço Bing Crosby cantando-a entre escombros, acompanhado apenas por uma caixinha de música e tendo como pano de fundo um conflito que não dá trégua.
O patriotismo tipicamente americano aparece nesta obra na defesa dos generais do passado - homens que, embora tenham comandado exércitos vencedores na Guerra, não encontravam trabalho naqueles anos 50. A visada crítica não torna, entretanto, a história amarga. Ao contrário, ela brilha, especialmente devido às presenças de Vera-Ellen e Danny Kaye, que, além de dançarem como ninguém, estão divertidíssimos como dois artistas do teatro cômico-musicado que não querem saber de compromisso mas - oh, graciosa obviedade - descobrem no final que não podem viver separados. E, antes de tudo, há a voz de Bing Crosby, levando "White Christmas" a se sobrepor aos ruídos da Guerra.
*
Antes de apresentar a cena, quero deixar a todos os amigos queridos que passam por aqui meus mais sinceros votos de um Feliz Natal. Quer seja ele um Natal Branco, com direito à construção de bonecos de neve e regado à bebidas quentes, quer seja um Natal colorido, iluminado pelo céu azul do verão - que chega aqui nos trópicos mais animado do que nunca. Desejo-lhes um Natal cheio de paz, seja ela encontrada em meio à família numerosa, em clima de festa, com troca de presentes e as crianças esperando o Bom Velhinho, seja ela encontrada na quietude do lar, num jantar simples do qual compartilham apenas os de casa. O meu, mesmo abafado, terá como trilha sonora "White Christmas" e outras maravilhas criadas pelos grandes compositores americanos, as quais, mesmo pintando cenários que nos são estranhos, definem lindamente o espírito natalino. Espero que nos encontremos no ano que vem com a mesma frequência e entusiasmo com que nos encontramos durante todo este ano!

terça-feira, 6 de julho de 2010

Yes, nós temos bananas: o Rio no imaginário hollywoodiano


Começo o post pela cena que me motivou a escrevê-lo: Mickey Rooney imitando a Carmen

Miranda em "Babes on Broadway" (1941), um dos Rooney & Garland pictures. É certo que a imitação é mais uma homenagem que uma sátira, cumprindo o programa de irmandade cultural fomentado por ambos os países (tanto que há registros da própria Carmen ensinando o Mickey a balançar as cadeiras). O que mais me fascinou nela - não apenas nela, mas no grosso das películas que fazem alusão ao Brasil - é o olhar estereotipado que lançam ao país, mais especificamente ao Rio de Janeiro, metonímia do Brasil aos olhos do cinema standard norte-americano da época (e, ouso dizer, também de hoje).
É um prazer ver Mickey cantando "Mamá, yo quiero mamar.". O rapazinho é tão carismático que acabamos deixando de lado o quão perniciosa é a caracterização que junta todos países sul-americanos num mesmo pacote, amarrando-os com um laço bem grande e colorido que os transforma em charge. Outra coisa não era Carmen Miranda, uma das maiores cantoras nacionais que, em Hollywood, teve de se contentar com papéis de raparigas sensuais e exóticas, cujos sotaques estilizados não deixavam negar as origens: o país tropical, do calor e do sexo fácil. Carmen ganhou dinheiro e notoriedade, levando o nome do país aos quatro cantos do mundo através das películas em Tecnicolor rodadas pela Twentieth Century Fox. No entanto, contribuiu para que se perpetuasse no estrangeiro a imagem do país do eterno carnaval de acordo com a qual ainda somos conhecidos, imagem que nos trás turistas sedentos de calor e diversão, mas também motiva o turismo sexual.

Mas esse post está tomando um caminho pedregoso que não estou disposta a trilhar, não depois de ter separado com tanto entusiasmo uma porção de fotogramas de alguns filmes (dos quais gosto muito, aliás) em que o Brasil - ou melhor, o Rio - é personagem relevante.
Então vou agora mesmo mudar o rumo e tentar transformar isso aqui em um passeio turístico tão leve e agradável quanto aquele ao qual Hollywood buscava conduzir seus espectadores quando colocava em primeiro plano o brilho de nosso país, deixando de lado as nossas mazelas sociais. Lá vamos nós então.



Os primeiros fotogramas são do musical de 1933 "Flying down to Rio", no qual Ginger Rogers e Fred Astaire dividem a cena pela primeira vez, ainda como artistas coadjuvantes. O conjunto de cenas (parte delas stills), apresentados sucessivamente, dos pontos turísticos da ainda então capital da República, explicitam o imaginário que se construía do Brasil como um país de vicejante beleza natural e muita diversão. A Baía de Guanabara anunciando ao fundo o Pão de Açúcar; o Teatro Municipal, a Avenida Copacabana, o Hipódromo. Puxamos pela memória as últimas novelas das oito e vemos que o imaginário pouco mudou.
Contudo, nesses filmes antigos essas cenas, que não deixam de ser registro histórico de um tempo que há muito já se foi, ganham uma graça especial que sempre acaba por me entusiasmar. Bati os olhos no Hipódromo, hoje praticamente abandonado dada à decadência do esporte, e me lembrei do registro histórico/poético que Manuel Bandeira faz do local nos anos de 1940:

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo
(...)

E ao trombar com os "Turunas Band", banda nacional a princípio ironizada pelo conjunto comandado pela personagem de Astaire, me dei conta de quão up to date estavam os norte-americanos no que se tratava da cultura de nosso país. Para constar apenas de passagem, alguns "turunas" passaram pela cena artística de nosso país, a exemplo dos "Turunas da Mauriceia", grupo pernambucano que fez sucesso no Rio entre 1927 e 1930 tocando canções típicas do nordeste, como emboladas e cocos. Abaixo, um registro do grupo e, a seguir, dos "Turunas" inventados por Hollywood.



A disposição do conjunto nega o epíteto do grupo (turuna: forte, valente, ágil), deixando ainda mais claro aos brasileiros que aos norte-americanos o quanto ela tinha de pejorativa. Mas nem por isso ela deixa de ser engraçada, pois também os brasileiros redefiniam a cultura de seus vizinhos ao apreendê-la. O Brasil era um dos maiores mercados consumidores da produção cinematográfica norte-americana - o que o tornava, por extensão, consumidor do modo de vida daquele país. As jazz-bands pululavam em território nacional, alegrando os cassinos, as rádios, vendendo discos e divertindo as plateias do já abrasileirado teatro de revista. A "Turunas Band" inventada por Hollywood, que tocava foxtrote e a carioca, não ficava muito longe dos grupos compostos por elementos nacionais - no final dos anos 20, "Arthur Castro & American Jazz Band" fizeram sucesso com um maxixe chamado "Cristo nasceu na Bahia". O cosmopolitismo das bandas acenava para o cosmopolitismo instaurado pela indústria do cinema, em que tudo ganhava status semelhante de item de consumo para as massas. A própria "carioca" inventada na película mistura elementos norte-americanos e brasileiros, o violoncelo, o chocalho e o triângulo, os dançarinos de tap dancing e baiana sestrosa.




Aliás, a baiana de "Flying down..." nega a informação historicamente consolidada de que a responsável por elevar o tipo, até então estigmatizado, foi Carmen Miranda. O tipo da brasileira/baiana já parecia bem introjetado no imaginário norte-americano quando Carmen apareceu por lá. Nas películas rodadas em Hollywood, a imagem edênica do país se sobrepõe à sua realidade empírica - não é atoa que, nos anos 50, "Orfeu negro" arrebatou os estrangeiros, apresentando-lhes um país desconhecido. Para a construção do imaginário ajudou o fato de os filmes serem costumeiramente rodados em estúdio, sendo a cor local dada por telões que impunham a magia do espaço físico assim como as fotografias turísticas que batemos dos lugares mais bonitos que visitamos. Fred e Ginger caminham contra o telão que registra a avenida Gonçalves Dias, ponto tradicional da boemia literária carioca, e vão dar num arremedo da Confeitaria Colombo.
Não muito longe dali, cartazes anunciam, em inglês, os "Yankees Clippers" no "Hotel Atlantico". Neles, coqueiros, a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar. Perdura a imagem do Rio como destino de turistas estrangeiros.

É digno de nota o fato de o Brasil comparecer especialmente em comédias musicais, produções em que a fantasia se sobrepõe à realidade. Em "Uma noite no Rio" (That night in Rio, 1941), fotografias da cidade são substituídas por registros pictóricos dela, que salientam a invenção do país em detrimento de seu registro objetivo.


Carmen surge em seguida com a vestimenta de baiana que se tornou a sua segunda pele.

Casais fantasiados dançam tendo ao fundo a Baía de Guanabara. O Technicolor permitiu que se salientasse o colorido que se queria imprimir para o país. O fotograma acena também para outra característica do país que o tornava destino privilegiado, o carnaval.

Isso é ressaltado noutra película dos anos 40, "Romance on the high seas" (1949), debut cinematográfico de Doris Day. O baile de carnaval que dá fecho ao filme, tornando possível o happy end, aponta cabalmente para como nosso país é imaginado lá fora. Inegavelmente, é uma propaganda aos quatro cantos do mundo de nossa cordialidade. Que viengan os turistas...

Antes de ser "feliz para sempre", Doris Day entoa "It's Magic" na Praia de Copacabana, canção que a tornará the toast of Hotel Atlântico, mimetizando a relevância que exerce na ascensão da jovem crooner a estrela da música e do cinema.


A praia de Copacabana e o carnaval retornam brevemente em "Papai Pernilongo" (Daddy long legs, 1955), e novamente enquanto pintura, numa sequência estilizada colorida e lúgubre que lembra (e lembra até demais, para o próprio bem do filme) o antológico balé de "Sinfonia de Paris" (1951).




Brasil, paraíso terrestre, lugar da fantasia, do escapismo. Não é um acaso que casais sexualmente reprimidos vivessem seu idílio envoltos por nossa brisa amena e sob os olhos amorosos do Pão de Açúcar. É o que acontece em "Estranha Passageira" (Now, voyager, 1940), no qual a personagem de Bette Davis torna-se "Camille" à medida em que se aproxima de nosso país tropical - alusão à heroína romântica de Dumas Filho que se entrega a um amor proibido e foge para o campo para vivê-lo. Camille e seu Armand (Paul Heinred) dormem lado a lado numa cabana abandonada na estrada rumo ao Pão de Açúcar, desafiando a moral vigente e a censura cinematográfica. Estou lembrando que já falei sobre esse filme em duas outras ocasiões, quando falava sobre o cigarro no cinema e o sexo em Hollywood... Nem preciso dizer que gosto muito dele, não?



O romance de Ingrid Bergman e Cary Grant também se beneficia das belezas naturais do Rio. Em "Notorious" (Interlúdio, 1946), um dos grandes Hitchcocks, a personagem de Ingrid é outra Dama das Camélias que encontra a regeneração no amor.


Porém, sabemos que o romantismo do diretor percorre vias tortuosas. Antes de oferecer a oportunidade de regeneração à heroína, o Rio torna-se palco de seu mais arrematado decaimento. O imaginário é desconstruído. O hipódromo, cuja elegância contribui para enfeitar as películas norte-americanas, ganha em "Notorious" aquele sabor amargo que adquire para Manuel Bandeira: "Os cavalinhos correndo,/ E nós, cavalões, comendo... (...)/O sol tão claro lá fora,/ O sol tão claro, Esmeralda,/ E em minhalma — anoitecendo!".




Nele, a personagem de Ingrid contará ao homem que ama: "Você pode colocar Sebastian em minha lista de admiradores." Ela sabe que o caminho não tem volta. Precisará se casar com o espião nazista para levar a cabo o plano do governo americano.
A Cinelândia, até então passarela de turistas despreocupados, impregna-se da carga dramática da personagem que, então, já caminhava numa corda bamba. O belo edifício da Biblioteca Nacional, o qual, junto ao Teatro Municipal, ajuda a compor o patrimônio artístico da capital, torna-se no filme a base de operações da polícia brasileira/ norte-americana. Sua magnificência esmaga a protagonista, tanto quanto as luzes da cidade cegam-na, tornando sua doença ainda mais insuportável. Graças à Hitchcock, o Adão e a Eva cinematográficos são finalmente expulsos do paraíso.