Mostrando postagens com marcador Tempos Modernos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Tempos Modernos. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Charlie Chaplin: o palco, as telas e o mundo

Charlie Chaplin anda me povoando como nunca. No mês passado, um golpe de sorte obrigou o vagabundo a se materializar de novo aqui em casa, extensivamente. E eu, como tantas vezes, o descobri como se o visse pela primeira vez. André Bazin, um apaixonado inconteste do artista, dizia que o mérito de Chaplin estava no frescor sempre renovado de sua obra: malgrado as décadas que o separavam de seu público. Isso era verdade tanto entre os anos de 1940 e 60, época em que o crítico francês escreveu sobre a obra do cineasta, quanto o é hoje. Daí a relevância desses escritos – que, aliás, podem ser desfrutados de um só gole pelo público, já que foram reunidos num convidativo volumezinho editado pela Zahar. 
Bazin destaca a inquestionável genialidade do artista, esmiuçando as características de sua obra que o fazem tão grande. Empresta seus pressupostos analíticos da Nouvelle Vague: toma Charlie Chaplin enquanto “autor”, uma individualidade que dá sentido ao conjunto de filmes que compôs. Como o crítico francês começa a produzir esses textos analíticos à época em que parte considerável da obra de Chaplin já havia vindo à luz, ele tem a chance de analisá-la em continuidade, percebendo a evolução da personagem ao longo das décadas, desde seu nascimento cinematográfico, no ano de 1914, até meados do século XX. 
O crítico toma o artista enquanto figura empírica e enquanto imagem cinematográfica, analisando densamente a movimentação e o embricamento dessas duas instâncias. Entre a figurinha pálida de Carlitos – que ascendera do posto de personagem ao de mito, passando a habitar “a consciência da humanidade” – e o homem Charles Spencer Chaplin, há um mundo. 
Sem a maquiagem
Há, de saída, a relação dialética entre pessoa e personagem, responsável por moldar o cinema dos primeiros tempos. O vagabundo chapliniano fora primeiramente um desdobramento da persona de seu criador: rapaz franzino, não raro famélico, cuja infância se passara entre as mais popularescas ribaltas do vaudeville e os subempregos pelas vielas de Londres. Quando se fez homem, o ator mambembe se empregou – por obra do irmão – na companhia teatral que o levaria aos Estados Unidos. O resto é História. 
Bazin debruça-se com cuidado na persona moral de Charlie Chaplin, determinante, segundo ele, na definição do palmilhar do Vagabundo pelas telas, no correr das décadas. Dos balbucios cinematográficos do desconhecido “Charlie”, na Cia Keystone, até a sua transformação no mundialmente conhecido personagem – e multimilionário ator –, pouco tempo se passa. Como poderia o homem bem alimentado e trajado vestir impunemente os andrajos da personagem que o tornara notório? 
Chaplin demoraria a abandonar seu “Charlie” – personagem que, como tantos do cinema dos primórdios, atrelava criador e criatura. No entanto, logo se esforçaria para adensar os sentidos sociais de sua obra. É digno de nota o quanto o “Charlie” dos curtas e médias-metragens da Keystone (1914) distancia-se daquele de O Garoto (1921), Luzes da Cidade (1931) ou Tempos Modernos (1936). Neste transcurso de tempo, a depuração estilística da personagem – devido ao paulatino domínio do métier adquirido pelo seu criador – caminha lado a lado com a sua evolução “moral e psicológica”; e com a evolução técnica do cinema. 

Num pastelão da Keystone:
His prehistoric past (1914)
Charlie saltaria das pantomimas teatrais da Karno Company para o lado de Marie Dressler, inconteste primeira-dama do pastelão cinematográfico dos anos de 1910 – coadjuvante, ele, nos palcos como nas telas. A marginália cênica se mistura à social. Dentre os atores do grupo de Karno, Chaplin destacava-se por sua performance de um bêbado – personagem que ele teria decalcado do pai alcoólatra, homem que cedo abandonara a família. Seus primeiros passos pela película ortocromática bebem desta fonte teatral, desempenhando, ele, uma personagem essencialmente de má-índole, a distribuir piparotes a torto e a direito, nos traseiros de seus adversários. 
Porém, a mágica já principiava a acontecer nas telas. Aquela máscara branca e negra, vestida de calças largas e puídas, chapéu-coco e bengala – vagabundo brioso, um todo tão contraditório e, ainda assim, tão adorável – cedo se destacaria do conjunto cênico, transcendendo a película para atingir as culminâncias do mito. Com a relevância artística viria o sentimento de responsabilidade. 
Com Jackie Coogan, em O Garoto (1921)
Bazin não deixa de perceber o percurso comum dessas personagens que, esforçando-se por retribuir a predileção do público, inclinam-se à perfeição moral. Charlie se emendará aos poucos. Ou por meio da pseudo-maternidade, n’O Garoto – no qual a personagem a princípio recalcitrante acaba afeiçoada à criança de quem a princípio desejava se livrar –; ou então por amor. Bazin forja um argumento perfeitamente romanesco, ainda que verossímil, para explicar o elemento feminino na obra do artista. Naquele constante intercâmbio havido entre o Charlie real e o ficcional, as mocinhas chaplinianas davam corpo ao ideal romântico de seu criador, sendo representadas pelas apaixonadas reais do homem Chaplin – a exemplo de Edna Purviance ou Paulette Godard. E são essas mulheres que, na obra de Chaplin, fazem emergir o que de melhor há na personagem. Daí à obra do diretor voltar-se, segundo Bazin, à busca da mulher que o reconcilie com a sociedade e consigo próprio. 
Com Edna Purviance
Bazin não esconde sua preferência pelo Charlie Chaplin anárquico dos primórdios – a quem os aspectos cinemáticos preocupavam mais que os morais. Esta faceta do homem fora fundamental para o desenvolvimento do cinema: no forjamento das cenas perfeitas, tendo como máxima finalidade a construção e o encadeamento das gags – em detrimento do fio do enredo. A figura mítica de Carlitos nascera mais dos trejeitos e tiradas cômicas – buriladas à excelência –, que da complexidade das histórias narradas. Daí ao herói subsistir às cenas e aos filmes, povoando o nosso imaginário com a eternidade de um Pierrot. 
Em Monsieur Verdoux (1947)
O crítico, no entanto, não nega a importância desta evolução na topografia do mito. Os desdobramentos cinematográficos de Carlitos atrelam-se incontornavelmente à história da Sétima Arte. Nascido branco e negro, no absolutismo da película ortocromática – sucedânea da pintura que transformava as personagens do circo ou da Commedia Dell Arte em máscaras –, Carlitos precisou evoluir com o desenvolvimento técnico. O cinzento do pancromático matava o mito ao detalhar as fisionomias, constata Bazin. “A máscara lunar de Carlitos pouco a pouco desaparecia, corroída pelas nuances da película pancromática (...). Abaixo, como superposto, aparecia o rosto de um homem já envelhecido, escavado por algumas rugas, cabelos semeados em mechas brancas: o rosto de Charles Spencer Chaplin.” (p. 45)
Daí à natural metamorfose de Chaplin em Monsieur Verdoux (1947), considerado pelo crítico francês o duplo negativo de Carlitos. Daí o abandono (apenas suposto) da eterna personagem, por parte de seu criador, em Luzes da Ribalta (1952) – a mais bela e obscena profissão de fé ao teatro, autobiografia na qual o já envelhecido cineasta exibe seus vincos todos, exorcizando seu temor (e o temor de cada artista) de ser abandonado pelo público. Charlie Chaplin obriga-se, nesses dois últimos filmes, ao realismo pungente. E, ao fazê-lo, determina a eternidade de seu mito. 
Em Luzes da Ribalta (1952)
Nas críticas de André Bazin escritas entre fins de 1940 e primeiros anos de 1950, contemporâneas aos lançamentos de Monsieur Verdoux e Luzes da Ribalta, fica patente o misto de devoção e temor do ensaísta frente ao percurso de seu objeto de análise. Motivo importante das loas que o crítico tece ao cineasta deve-se à organicidade de sua obra – seu desenvolvimento pautado pela artesania poética, a contrapelo do que ocorria no grosso do cinema, que desde muito cedo se dobrara à lógica de produção em série do mercado. 
A transmutação de Carlitos em Verdoux ou em Calvero correspondia à regeneração e à purificação do mito. Culpado do assassinato das matronas com as quais se casara, Verdoux ruma para o cadafalso com o mesmo caminhar sincopado com o qual o eterno vagabundo despedia-se usualmente de seu público – despedida relativa, já que ele não demorava a voltar, serelepe, noutra aventura. 
O final elíptico – vê-se apenas a sombra da incontornável guilhotina –, elide o desfecho de Verdoux, exacerbando o éthos redivivo do herói. Carlitos jamais morrerá.
*

Para os interessados, o livrinho que reúne as críticas de André Bazin sobre a obra de Chaplin é o seguinte: André Bazin. Charlie Chaplin. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
Escrevi este texto baseada, também, na ótima edição sobre a vida e a obra do artista, escrita por Jérôme Larcher para o Cahiers du Cinéma: Masters of Cinema: Charlie Chaplin. Col. Cahiers du Cinéma. Phaidon Press, 2011.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

"Tempos Modernos", Charlie Chaplin e os paradoxos da Era Industrial


Quando Charlie Chaplin deu ao público seu silent "Modern Times" (1936), o cinema já tagarelava havia uma década. Todavia, o que aparentemente nascera fadado ao papel de peça de museu, revelou, naquele 1936, uma atualidade que foi sendo renovada com o passar dos anos. Prova de que o filme é obra de um gênio (que, tocado pelo dedo de Deus, conseguiu construir algo imortal), ou simplesmente reflexo do medo recôndito que a sociedade desde sempre teve do famigerado "capitalismo" - o qual movimenta riquezas com a mesma sem-cerimônia com que elimina a poesia da vivência cotidiana? Um pouco das duas coisas, talvez. O certo é que, em "Tempos Modernos", nosso querido vagabundo conseguiu dar tratamento único a uma tópica muito discutida pela produção literária e cinematográfica da época: o progresso tecnológico, que alterara o modo como as pessoas enxergavam a realidade.
A antológica imagem do homem pequenino engolido pelas gigantes engrenagens de uma máquina não pode, no entanto, nos levar a pensar no filme estritamente como uma recusa à era industrial.
Ora, o progresso tecnológico foi o responsável pelo surgimento do cinematógrafo, máquina que, pelas imagens que escolheu oferecer ao espectador desde os primórdios, cooperou para que ele enxergasse o mundo moderno como um espaço veloz, dinâmico e, por que não dizer, assustador. O endosso do cinematógrafo à tecnologia fica patente na vista mais célebre de Lumière, do trem chegando à Estação: em que a câmera estática recupera o ponto de vista do passageiro que espera para embarcar, o qual parece prestes a ser colhido pela locomotiva que se aproxima veloz.
Contudo, a sátira dos artefatos modernos não deixa de ser o cerne do filme. Nele, Chaplin dá vida a um operário insignificante, sem nome - e, portanto, metonímia dos milhões de trabalhadores anônimos que operavam as linhas de produção das grandes indústrias da América e da Europa.
Apenas um indivíduo entre tantos que precisava enfrentar a selva de pedras da cidade moderna para tirar dela seu sustento. O aspecto animalesco da cidade é patente não apenas na linha de montagem, que massacra a personagem, reprimindo seus anseios de indivíduo, reduzindo-o à peça de uma bem engrenada maquinaria e literalmente engolindo-o. Também notamo-lo no turbilhão das ruas, repleto de pessoas que, no seu ir e vir, parecem à deriva; e na violência com que as autoridades tratam o homem comum.
O enredo, apresentado nessas poucas palavras, poderia ser a notícia de um drama amargo igual a vários outros que Hollywood produziu sobre o assunto naqueles anos. "Tempos modernos" é, no entanto, uma das mais hilárias comédias da história do cinema. O gênero tem importância fundamental para sua atualidade. Chaplin era filho de artistas do music hall londrino. Cresceu sob as luzes da ribalta, onde estreou aos cinco anos. Conhecia, portanto, a preferência do público pela comédia pastelão, pelos enredos cheios de reviravoltas, pelos números que censuravam os costumes através do riso demolidor, pela graça irresistível que emanavam os personagens tipos. Portanto, quando jovem, sentiu-se à vontade na atmosfera mambembe dos estúdios cinematográficos dos primeiros tempos. Estreou como ator de cinema em 1914 - reportagem de uma Careta de 1920 antecipa essa data em três anos, período no qual ele teria trabalhado para a Keystone, mas o IMDB dá o ano de 14 com tanta riqueza de detalhes que temo contradizê-lo. A construção da personagem do vagabundo - que Chaplin apenas abandona em 1947, em "Monsieur Verdoux" - denota ainda uma vez a influência do teatro alegre, em que os artistas eram fadados a interpretar sempre um mesmo tipo, máscara que usualmente se colava às suas faces e por meio da qual eram reconhecidos onde quer que fossem.
Mas, se a arte de Chaplin é em parte devedora do meio teatral dentro do qual ele nasceu, ela deve outro tanto às telas do cinematógrafo, medium que o artista ajudou a apurar à medida em que apurava a personagem eterna que inventara.
Aquele artigo da revista Careta ao qual me referi acima oferece informações preciosas para que entendamos a construção do tipo. Nele, o então já mundialmente consagrado ator conta detalhes da criação de seu personagem e estabelece as diferenças entre cinema e teatro. Seu vagabundo teria sido, segundo ele, o resultado final de um tipo que demorou anos para construir, burilado na medida em que ele via o que agradava o público. Chaplin deixa implícito ser um constante observador de si mesmo e do público que o vê. Diz frequentar as telas de exibição para conhecer a reação dos espectadores com relação a seus filmes. Como um ator de teatro, precisava dos aplausos do público, desesperando-se quando não os recebia. A atitude denuncia a formação que Chaplin tivera como artista. Sublinha, também, características que depois serão fundamentais para o estabelecimento do cinema como uma das mais rentáveis indústrias dos EUA a partir de fins dos anos de 1910: a construção de tipos facilmente reconhecíveis, compreendidos pelos espectadores de todas as classes sociais; o aspecto popularesco do veículo, uma das diversões mais baratas das cidades daqueles tempos; o estabelecimento do star system, que traçava relação de sinonímia entre o tipo posto em cena e o artista que o representava, fomentando a venda de ingressos, fotografias de stars e produtos por eles anunciados.
A consagração que Charlie Chaplin recebeu desde jovem - e durante toda sua carreira - e o fato de seus filmes se destacarem em meio aos milhões de quilômetros de películas produzidas entre os anos de 1910 e 1950, atestam, no entanto, que algo o diferenciava das centenas de estrelas da galáxia de Hollywood. Parece absurda a força que sua obra eminentemente silenciosa (apenas em “O grande ditador”, 1940, ele passou a usar o diálogo verbal em seus filmes) exerce até hoje em nossa sociedade tão faladeira e amiga das novidades. Só parece, já que as artimanhas aparentemente banais do vagabundo adorável são oriundas de uma série de escolhas cuidadosamente refletidas, de um esforço hercúleo para a transformação das experiências cotidianas em arte.
Chaplin era um perfeccionista. A trivia de Hollywood oferece informações curiosas a respeito: os milhares de metros de película inutilizados até que ele tivesse estabelecido as tomadas perfeitas para a montagem da (genial) dança dos pãezinhos da "Busca do Ouro" (1925); o fato de "Uma mulher de Paris" (1923) ter sido rodado linearmente, para o bem do realismo da ação, a despeito da vultosa quantia gasta na reconstrução dos cenários.
Ele era um poeta em meio aos burocratas da indústria do cinema. Este é um elemento chave que possibilitou a abrangência de sua obra e o trouxe, moderníssimo, até nós. Com o fim dos anos de 1910 terminou, para si, o tempo das produções de menor fôlego (algumas especialmente bem cuidadas, como "Vida de cachorro", de 1919). O ano de 1920 trouxe-lhe a possibilidade de se juntar a Mary Pickford, Douglas Fairbanks (ator e atriz considerados então os queridinhos da América) e ao diretor D. W. Griffith na fundação da United Artists. O capital da empresa permitiu-lhe trabalhar na produção de seu primeiro longa metragem, "O Garoto" (1921), o qual lhe tomou um tempo muito maior do que as produções de Pickford e Fairbanks, porém, consolidou sua imagem e o tornou unanimidade entre o público e a crítica da época.

Os fundadores da United Artists: Mary Pickford, Griffith, Chaplin, Douglas Fairbanks

A crítica brasileira contemporânea à exibição de "O Garoto" - que reuni por acaso, à medida em que cursava as disciplinas do semestre passado - constata que o artista ecoava o anseio dos escritores modernistas de, através de um trabalho penoso e lento, transformar a inspiração numa “obra-de-arte, coletiva e funcional, mil vezes mais importante que o indivíduo” (palavras de Mário de Andrade). "O Garoto" antecede em 15 anos "Tempos Modernos". Porém, as preocupações de Chaplin permanecem as mesmas. Por isso ele segue admirado pelo público, pelos escritores modernistas brasileiros e pelas vanguardas cinematográficas europeias. Não se trata da defesa da repetição de fórmulas velhas. O tipo construído pelo artista britânico captava a essência do homem moderno membro das classes desfavorecidas. O brasileiro Alberto Cavalcanti, pertencente ao grupo dos inovadores europeus e um dos pioneiros do documentário, diz:

O tipo que o próprio Chaplin representa de preferência é o símbolo do homem universal que viveu entre as duas grandes guerras, vítima de todas as injustiças sociais que, no entanto, não conseguiram abatê-lo. (...). O homem simples de todos os povos e de todas as raças sente-se nele retratado, porque, na sua aparente fragilidade, Chaplin simboliza a sua resistência inata e indomável às condições precárias de vida de nosso tempo.

Não é por acaso que encontramos, na produção dos vanguardistas, ecos da filmografia de Chaplin. Um exemplo saboroso desse aproveitamento está na “Voyage Imaginaire” (1925) de René Clair, obra que flerta com a psicanálise (que então começava a ser vulgarizada) ao postular o caráter liberador do sonho. Nela, o mocinho tímido apenas se descobre capaz de lutar pela jovem que ama depois de passar por uma série de aventuras que culminam num museu de cera onde ele é ajudado pelos bonecos de cera de Chaplin e do Garoto, que magicamente ganham vida à meia noite (alguém está se lembrando de “Uma noite no Museu”? “Voyage imaginaire" é infinitamente melhor).


Chaplin e o Garoto, ainda figuras de cera



O caráter catártico da obra de Chaplin está patente no filme de Clair, cujo final recupera uma tópica das fitas do vagabundo: a partida do personagem, captado por uma câmera estática à medida em que ele se afasta da audiência, emocionada mas convencida de que ele voltaria outra vez porque, mais do que um homem, ele é um símbolo.

Última cena de “Voyage Imaginaire”

O trecho em itálico não é meu, mas de Alberto Cavalcanti, e ele não se refere especificamente ao vagabundo de “Tempos Modernos” – o qual deixa a cena de braços dados com Paulette Goddard enquanto soa “Smile” (canção que também é obra sua) - mas sim a "Monsieur Verdoux" (1947). Vê-se, portanto, que Chaplin fez dessa partida uma constante do seu personagem, que àquela altura era tão simbólico para a cultura ocidental quanto o Pierrot da Commedia del Arte (apenas para repetir a constatação da crítica). Ao tomá-la, Clair retoma pelo menos outras duas produções anteriores de Chaplin, “O Vagabundo” (1915) , "The Pilgrim (1923) e “O circo” (1928), traçando uma ponte entre a supostamente hermética vanguarda e o popular cinema de Hollywood.

A influência, todavia, foi de mão dupla, já que “Tempos Modernos” claramente recebeu influência de uma película de Clair denominada “A nous la liberté” (1931) – ao ponto de ter sido considerado por alguns uma paródia ao filme! Aliás, preciso aqui agradecer à minha orientadora Miriam Gárate, sem a qual eu nada saberia desse desdobramento da história. Para quem tiver interesse, o filme é facilmente baixado pelo Torrent. Eu obviamente que tive. Vendo-o, qual não foi a minha surpresa ao encontrar uma comédia musical que deslizava de modo adorável da canção para a declamação rimada, tocando raramente o diálogo prosaico. O enredo trabalha o mesmo tema: a desumanização que a tecnologia fomenta. Porém, por um viés diferente: aqui é contada a história de um ex-presidiário que incidentemente é envolvido na massa que principiará a trabalhar numa empresa de fonógrafos, tornando-se também ele um funcionário. A música que costura o filme surge como uma exigência bem humorada do roteiro, que brinca com o paradoxo da situação: um homem se vê destituído de sua liberdade enquanto cria diversão para os outros.



À nous la liberté (1931)

Modern Times (1936)

A tão desejada liberté é alcançada no final do filme, quando o homem deixa de ser joguete da máquina e passa a dominá-la, podendo, enfim, desfrutar do seu tempo livre. E mais, apaga-se o fosso que separa patrão e empregado: ambos dão as mãos e cantam felizes a canção título depois de a empresa ser dividida entre os trabalhadores, que passam assim a dominar plenamente sua força de trabalho. O fecho de “Tempos Modernos” não repousa nessa questão. Nele, o “capitalismo selvagem” da sociedade industrial é tomado como um caminho sem volta. Às personagens que desejavam a liberdade restava a fuga.

O patrão e o empregado de “À nous la liberté”, agora unidos, seguirão por aquele mesmo caminho eternizado por Chaplin.

O trabalho diferenciado com a banda sonora é outra característica que aproxima Clair e Chaplin. Disse no início que o cineasta apenas começou a se utilizar sistematicamente dos diálogos em prosa no começo dos anos 40. Isso porque, como bem aponta Cavalcanti, Chaplin sabia que o uso dramático do som não devia se reduzir à palavra falada. A prosa foi o último elemento que o artista levou para seus filmes. Contudo, o desenvolvimento do som, que possibilitou a gravação do mesmo na película, foi fundamental para sua arte, pois permitiu que ele sincronizasse os efeitos sonoros à ação de forma a potencializá-la.
Charlie Chaplin era um artista completo – isso é chavão, mas não custa insistir. Basta uma vista d’olhos nos seus longas-metragens para notar que seu nome invariavelmente domina os créditos: ele dirigia, atuava, roteirizava, compunha a trilha sonora e produzia. Isso o torna único na indústria dos primeiros tempos, quando o trabalho era diluído, nunca se sabendo ao certo quem fazia o quê. Esse controle total sem dúvida foi o responsável por ele criar uma obra incrivelmente densa que, apesar da inovação tecnológica, permanece ainda hoje como o que de melhor se produziu no campo cinematográfico.
O sucesso que esse genial criador conseguiu desde logo entre público e crítica vem de sua habilidade de trabalhar cinematograficamente com os elementos que dominava desde que atuava nos palcos londrinos. A pantomima, o melodrama e o vaudeville, gêneros populares, são por ele destilados para que surjam, diante das câmeras, numa pureza desconcertante que apenas transmite o essencial. Chaplin emprestou aos seus longas-metragens a estrutura do gênero melodramático e do vaudeville, misturando cenas dramáticas e cômicas. Todavia, nunca em seus filmes uma cena cômica interrompe abruptamente a ação, aparecendo apenas para distender o público. Ao contrário, o artista sabia transitar com maestria da comédia para o drama, levando o espectador pela mão até gerar nele a emoção estética - estou me lembrando que, meses atrás, falei algo muito semelhante da Judy Garland, tão feiticeira quanto Carlitos por esse mesmo motivo. Um exemplo perfeito disso encontramos nos minutos finais de "Tempos Modernos", quando a personagem de Chaplin e a de Paulette veem-se obrigadas a interromper sua entusiasmada apresentação no café-concerto para empreenderem uma dramática fuga da polícia. Eles escapam, no entanto, aparentemente apenas para despencarem na existência de penúria da qual haviam acabado de sair. Porém, os símbolos apresentados imediatamente após o fade out apontam que a esperança subsiste ao desespero: amanhece o dia e descortina-se o horizonte, imagem substituída pelo plano do casal de fugitivos e por um primeiro plano da jovem que chora, seguida do plano do rapaz que se arruma, assobiando. Enquanto isso, a banda sonora reconstrói, no plano musical, a atmosfera agridoce apresentada pelo plano visual. A jovem, que havia desistido de lutar, é contagiada pela alegria de viver do amigo e segue com ele rumo ao desconhecido.

“Smile...”

A letra e a música de "Smile" metaforizam cabalmente a persona artística de Chaplin. Ninguém como ele entendeu como dor e alegria se misturam na vivência cotidiana: como se uma gota de sofrimento estivesse sempre guardada no final do riso. Por isso, "Smile" aproveita-se dos violinos e de um tempo lento e torturado para cantar a necessidade de se buscar a alegria na dor: Smile, though your heart is aching. (...). Light up your face with gladness. Hide every trace of sadness. Although a tear maybe ever so near. That's the time you must keep on trying. Smile, what's the use of crying. You'll find that life is still worthwhile. If you just smile.


Queria terminar o texto com um vídeo de Judy Garland cantando "Smile". Judy sabia bem o que era rir das desditas - talvez seja por isso que ela interpreta a canção de modo tão maravilhoso, com um riso no rosto e lágrimas na voz.



*
Meus agradecimentos àqueles que votaram na enquete. O resultado, como supus, foi apertado: todos os filmes de Chaplin receberam votos, sendo que "Luzes da Ribalta" e "Tempos Modernos" ficaram, respectivamente, com 27% e 47% da preferência dos leitores.