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domingo, 30 de junho de 2013

Notas sobre a tomada de consciência política no cinema (e além): Mr. Smith goes to Washington, Metrópolis, M...

Brigitte Helm em Metrópolis (1927)
Dois dias depois da escrita do post anterior encontrei-me pela primeira vez com Metrópolis (1927), obra-prima de Fritz Lang. A demora em vê-lo é desculpável, afinal, se a gente só pode ver uma vez um grande filme pela primeira vez, melhor é fazê-lo depois de amadurecer. Melhor ainda é quando ele estabelece um diálogo absurdamente intenso com o contexto histórico contemporâneo – a grandeza de uma obra de arte se mede pelo fato de ela continuar aguda, independente de sua idade. 
Metrópolis é um cabal exemplo cinematográfico da humanidade desperdiçada imaginada por Machado de Assim nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, e aí imagino o escritor nonagenário colado à poltrona de um cinema da Cinelândia no Rio de fins dos anos 20, exclamando atônito “É isso, é isso”: porque na minha utopia o escritor que ainda cruzaria lépido o limiar de seu centenário seria com frequência encontrado numa das salas do complexo, a sorver a vida de luzes e sombras que vez por outra atingia a agudeza do seu gênio. 
Planos decupados das engrenagens do maquinário gigantesco sucedem-se na tela: o olhar ubíquo do cinema plasmando a ubiquidade do olhar do narrador delirante de Machado. Ao corpo da máquina sucedem-se planos do corpo social cindido. Em fila, operários sem rostos caminham rumo ao subsolo da máquina, à hora da troca de turnos. No plano superior, os bem-nascidos vivem num Éden artificial: douram seus corpos ao sol, brincam com as donzelas de sua escolha em jardins bem cuidados. 
A metáfora é de claro entendimento: os operários vivem no inferno, os bem-nascidos no céu, e todos são igualmente ludibriados pelos poderes superiores. A máquina-cinema dá ao espectador uma consciência análoga à da máquina que, no filme, domina ricos e pobres. E testemunhará quando esses últimos tomam consciência de sua eterna espoliação e assumem o poder. A ironia é quando isso acontece: os discursos de tintas cristãs da angelical Brigitte Helm (uma das cenas mais geniais do cinema é, para mim, aquela em que ela sobe ao plano superior com crianças maltrapilhas e, apontando-lhes os bem-nascidos, diz cheia de ira “Olhem, são seus irmãos.”) podem muito menos que a fala inflamada de sua clone má, feita dos mesmos fios que alimentam a exploração na Metrópolis. 
Metrópolis acaba destruída pela sanha coletiva; as crianças abandonadas em prol de uma revolta movida primeiro (somente?) pela paixão: a faceta má da brilhante Brigitte Helm mostrara-se uma Salomé cenas antes, levando à combustão aqueles que observavam a sua dança. A entrega apaixonada e acrítica que ela induz leva a multidão a transformar a já viciada Metrópolis na Babilônia da qual, não fosse pela Helm feita virgem Maria (mesmo o nome da mocinha é alusiva à mãe da igreja), não se salvariam nem as crianças, o futuro da cidade. 
Impossível não notar o quanto de visionário há nessa obra de Lang, vendo-a nesse momento de intensa conflagração social que vivemos. Fica claro que na megalópole de Lang a religião tem papel preponderante, exercendo controle cujo fim é o bem-estar social. O conservadorismo da conclusão não nos permite, todavia, apagar o percurso, deixar de lado os elementos que põem em contato a sociedade imaginada pelo criador austríaco e a nossa.
Quatro anos após Metrópolis, outro grande Lang dará voz à massa. Em M., o vampiro de Dusseldorf, um grupo de criminosos altamente organizado assume por conta própria o papel da polícia inapta, persegue e apreende o assassino de crianças Peter Lorre. Os mesmos bandidos submetem-no ao julgamento sumário cujo desfecho será o seu extermínio, ali mesmo, no porão feito tribunal/patíbulo. Antes de receber o veredito, o psicopata desesperado desenha aos algozes o terror que é não conseguir controlar suas paixões. Depois de ser considerado culpado, clamará pela polícia e, portanto, pelo amparo do Estado, da democracia, da constituição, dentro de cuja configuração deseja responder pelos seus atos. 
Peter Lorre em M. (1931)
Lang fala a partir de um tempo em que estavam em alta estudos sobre a psicologia das massas. O povo, unido, ganharia uma alma coletiva que apagava as individualidades e o que de controle elas implicitavam. 
A força das multidões está sendo observada nitidamente nas ruas, nestes últimas semanas, no que elas têm de bom e ruim. Compelida por elas, a governança viu-se obrigada não apenas ao assentimento protocolar, mas à tomada objetiva de decisões (e daí a diminuição do valor das passagens de transporte coletivo, a abertura de um canal democrático de comunicação, por meio de um possível plebiscito, a punição exemplar da bandidagem de colarinho branco). 
Cenas de M.
Igualmente, decisões afobadas denunciam intuitos populistas – reescrever a constituição do dia pra noite não pode dar em boa coisa. No que toca aos populares, pessoas exercendo o salutar direito de gritar por mudanças acaba misturada a uma minoria de bandidos; quando não o tal éthos de massa toma o sujeito, e aí vemos, por exemplo, gente formada, empregada e aparentemente encaminhada imiscuída “não sabe como” no grupo que assalta certa joalheria. 
O Lang de Metrópolis e M. vê com descrença a tomada de poder das massas. Tanto que são as instituições estabelecidas que retomam a ordem, a igreja no primeiro, o Estado no segundo. 
Da distância que eu decidi tomar – já que nenhuma vez saí pra rua, coisa que de modo algum me honra –, vejo tudo com curiosidade, esperança, mas também uma ponta de temor. Porque minha atual religião é o cinema, observo nos exemplos vividos ou sonhados pela sétima arte o quanto pode o povo unido. O análogo do poder paralelo de M. descambou, na Alemanha, no nazismo – que depois ascendeu legalmente ao poder, cometendo atrocidades de forma idem. 
James Stewart em Mr. Smith goes to Washington (1939)
Mas quem me conhece bem sabe que estou mais pra mocinha desbirocada do otimista Frank Capra que pra personagem de distopia de Lang. Os heróis de Capra são sempre demasiado americanos, seus filmes de temática política invariavelmente fecham com discursos embandeirados, mas ainda assim eu me identifico mais com eles que com qualquer outra cinematografia. Meu inesquecível herói do diretor é o James Stewart de Mr. Smith goes to Washington (A mulher faz o homem, 1939), porque de todos os seus otimistas ele é o que mais me parece verossímil. 
Stewart e Jean Arthur em Mr. Smith...
Jimmy ascende ao senado estadunidense sem qualquer know-how de política, simples títere de uma corja corrupta. Para calarem sua boca, os membros do partido o incentivam a apresentar um projeto qualquer. Ele escolhe a desapropriação de certa área no meio do nada, no entanto, fundamental para melhorar as condições de vida de certa população do Estado que representa. Acaba que tal lugar é estratégico também para o bando construir uma represa e forrar as burras de dinheiro. E aí, o Zé-ninguém vira inimigo perigoso do sistema imposto. 
Porém, a História mostra que os grandes movimentos são alavancados por acontecimentos banais. No filme de Capra, James Stewart defende desesperadamente seu projeto, recebendo em troca o desdém dos políticos e a violência de seu partido aos seus correligionários. Nas ruas de São Paulo, a polícia mete bala no povo que participa de um protesto pouco numeroso e pacífico. Quando Jimmy não consegue sustentar mais que um fio de voz, caixas e mais caixas de mensagens telegráficas de apoio inundam o Senado. Twittes invadem a web em apoio aos manifestantes paulistanos desbaratados com violência; fotografias do ocorrido são espalhadas via Facebook. Dias depois, milhões saem às ruas.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Barbara Stanwyck, a rainha


Estou numa fase Barbara Stanwyck desde que vi aquela loucura maravilhosa que é “Bola de Fogo” (1940).
Preciso dizer que é difícil de se estar numa fase Barbara Stanwyck. A mulher fez quase um cento de filmes, 5 anos de uma série televisiva de tremendo sucesso nos anos 60 (The Big Valley, 1965-1969), outros dois do premiado show que levava seu nome (1960-1961). Debutou em Hollywood junto com o cinema falado (em 1929), depois de um período de relativo sucesso na Broadway, e só se despediu das telas nos anos 80, depois de outro grande sucesso – “Os Pássaros Feridos” (1983) – impossível um final mais auspicioso. É uma dificuldade imensa abarcar num post o conjunto de sua obra tão extensa e profunda. 
Mais fácil é passar por ela com passos vagabundos, parando de hora em vez para admirar uma heroína heterodoxa ou uma cruel femme fatale; ou para apreciar melhor aquela história genial de elenco notável, ou aquela outra que só se salva mesmo pela personagem principal (porque qualquer história vale a pena com ela).
The Big Valley

Barbara fez muito de tudo: dramas, thrillers, comédias; muitos filmes bons e outros tantos ruins. Se o ator é aquela propalada criança grande que vive a brincar de fazer de conta, ela sem dúvida foi das mais matreiras. Tomou parte em muita coisa esquecível, porém, sempre com tanta segurança que se tornava a única coisa a fazer sentido na tal produção – prova indelével de seu amor e dedicação pelo que fazia.
Miss Stanwyck, a inatingível estrela de cinema, ou “a rainha”, como William Holden fazia questão de chamá-la depois que foi seu “Golden Boy”, vez por outra dava espaço para a Babs, fazendo renascer aquela moleca do Brooklyn que nos anos de 1910 só conhecia os stars a partir das poltronas piolhentas das saletas de cinema do bairro. Basta que a gente a veja em “The lady of Burlesque” (William Wellman, 1943) para que percamos todo o respeito que temos por ela: Lá está Babs, rebolando num número sofrível do teatro burlesco no qual sua personagem trabalha. Ela responde os trocadilhos infames lançados por seu co-protagonista para, pouco tempo depois, sair do palco dando cambalhotas. A sequência estapafúrdia é a única digna de nota desse thriller que é tão ruim ao ponto de não ter suspense algum... E só é digna de nota porque vemos por aí que Babs defendia a contento qualquer coisa que lhe caísse nas mãos.

Barbara foi uma atriz moderna avant-garde, ou, porque não dizermos, foi a primeira atriz moderna. É surpreendente que uma atriz como ela tivesse surgido dentro da produção controlada dos estúdios americanos dos anos 30-50, em que o artista estava fadado a interpretar continuamente variantes de um mesmo tipo. Além dela, só Bette Davis – outra rainha – transitava com eficácia entre gêneros e caracteres. Talvez porque o carma da beleza física não as tivesse pego, puderam interpretar vilãs sem que a aparência batesse de frente com o mundo tipificado hollywoodiano em que a beleza era um atributo da bondade. E porque esbanjavam talento, eram críveis como good girls, um pouco de maquiagem e muita arte sendo suficientes para que se transformassem nas mulheres mais lindas do mundo. Seus rostos de mulheres terrenas – por oposição às goddesses da tela prateada – quem diria, as trouxe modernas até aqui, e as arrastará assim até a eternidade (ao menos é o que essa fã espera).
Quando deu corpo à dama burlesca, Barbara já havia vestido todas as máscaras disponíveis em Hollywood. Foi conduzida ao estrelato pelas mãos do grande Frank Capra quando ele era ainda pequenino, e burilou seu estilo enquanto ajudava
o mestre a burilar o dele. Vemo-la muito pouco Barbara Stanwyck em “Ladies of Leisure(1930), um filme muito pouco Frank Capra: Babs é Kay Arnold, a jovem de vida equívoca que, dilacerada pelo amor impossível nutrido por um aristocrata, tenta o suicídio. Capra toma-a nuns primeiros planos com iluminação intensa e clara e ela aparece delicada, frágil, santificada. Tão distante da imagem de mulher firme, tão à frente de seu tempo, que a tornaria célebre nas mãos do próprio Capra na obra-prima “Adorável Vagabundo” (Meet John Doe, 1941). Barbara esteve sempre no meio-termo entre a frieza e a suavidade. É esse modo matizado como ela conduz suas personagens que a mantém moderna até agora, em detrimento das toneladas de lixo maniqueísta que Hollywood produziu.
Agora nós a vemos em “Stella Dallas” (King Vidor, 1937), drama mediano com uma obra-prima de interpretação. Aos 29, Barbara arrasa na pele da mãe de meia idade, pobre, cafona e livre, que, naquela sociedade cheia de preconceitos da época, precisa entregar a filha amada ao pai da jovem para vê-la ter alguma chance de futuro. Basta o plano final para que tenhamos dimensão da grandeza da atriz: close da mãe desgrenhada e linda em sua abnegação que, depois de ver a filha bem casada, desce a rua que as separará para sempre levando na cara um meio sorriso que mescla a tristeza da separação e a alegria do dever cumprido. Nenhuma maquiagem. Barbara só carrega no rosto seu imenso talento – louvável negação à maxfactorizada Hollywood dos anos 30, que pintava suas sofredoras como se fosse conduzi-las a um baile de gala. Ao deixar de mascarar a dor, Barbara humaniza sua personagem, remete-a a condição eterna da mãe que se doa pela prole – dando, assim, alguma vida a essa história triste de tão melodramática.
Stella Dallas

Mas rápido enxugamos a lágrima que ficou no canto do olho, pois já estamos a vê-la como a encantadora heroína sem nenhum caráter – variante que ela defendeu bem como ninguém – que usa seu poder de sedução para enredar o antropólogo tímido e jogá-lo nos braços dos patifes de sua família. O filme é “The Lady Eve(As três noites de Eva, Preston Sturges, 1941) e ela, o desdobramento perfeito da fêmea bíblica responsável por induzir o homem ao pecado. A vítima é Henry Fonda, que ironicamente será o fornecedor da serpente com a qual a jovem consumara a tentação. A cena da sedução dessa cômica femme fatale – leitura humorística das vamps que, no cinema dos primórdios, enrolavam-se como cobras... – é impagável pelo charme que exala. Melhor que ela só as sequências de comédia pastelão que se sucedem quando a vampira apaixonada decide ir atrás da vítima que a havia rechaçado para vingar-se dele. De Miss Stanwyck nasceu um dos tipos mais interessantes de good girl – aquela que une frescor, ironia e inteligência. Barbara fazia interpenetrar numa mesma personagem vilania e bondade, afastando-a de um maniqueísmo rasteiro, aproximando-se assim das mulheres de carne e osso que a viam nas telas. Isto está muito bem posto em “The Golden Boy” (Rouben Mamoulian, 1939), em que ela desempenha a mulher independente, amante do chefe, encantada pelo jovem violinista que se torna revelação no mundo do boxe. William Holden, o menino de ouro – que à época efetivamente não passava de um garoto, 11 anos mais jovem que sua rainha – combina idealismo e amargura extremos. Enquanto toca violino e sua alma se expande, ele e a mentora se descobrem apaixonados – e nós por eles, brilhantes como o par que percorrerá os dois lados da estrada de mão dupla que separa a emoção da dor, a arte da violência.Na sociedade patriarcal norte-americana da década de 30, em que a mulher acabara de ganhar direito ao voto mas ainda estava longe de atingir a igualdade com o homem, Barbara construiu uma persona que ensaia a fuga do jugo masculino por meio de sua dubiedade e altivez. Ao economizar nos gestos e lágrimas, afastando-se do dramalhão, a atriz injetou densidade psicológica nas mulheres que criava. Esta sutileza, essa recusa a se deixar possuir totalmente pelo galã e pelo público, essa incompletude de sentido é, acho eu, o que ainda a faz tão interessante.
Era por meio de seu gestual que, vez por outra, Barbara extravasava a emoção contida. John Travolta, no discurso de entrega do Oscar Honorário à atriz em 82 (o único que ela receberia, apesar da excelência de seu trabalho), remete-se à beleza e confiança impressos no caminhar dela ao longo da tela. E aí lembramos da explosão de desejo da aparentemente
fria Mae Doyle quando ela se entrega ao amante em “Clash by night” (Fritz Lang, 1952); da estranha Martha Ivers (de “O tempo não apaga”, Lewis Millestone, 1946) enquanto ela desce eufórica a escadaria que a levará ao namoradinho de infância, linda e leve pela primeira vez, como se só ele pudesse salvá-la da vida de hipocrisia que vivia desde que se separaram; da segurança com que sua Lily Powers de “Baby Face” (Alfred E. Green, 1933) usava seu corpo como lhe aprazia, plenamente dona de si num momento em que mulher nenhuma o era; de sua fragilidade ao cair nos braços do zé-ninguém Gary Cooper no final de “Adorável Vagabundo” (Frank Capra, 1941), tão dele como ele desde sempre fora dela.
Adorável Vagabundo


Com Billy Wilder, Barbara Stanwyck fez o sensacional thriller "Pacto de Sangue" (Double Idemnity, 1944), em que era “mulher decaída” até no último grau, com um par de amantes que ela manipulava para tomar posse da herança do marido. Barbara soube carregar com a mesma sem-cerimônia a espingarda e a flor, sabendo exatamente o que fazer com uma e outra. E como isso fica claro naquela delícia de western à la anos 60 que é The Big Valley, no qual a atriz sessentona veste com a mesma doçura e assertividade o papel de matriarca da família!... Suponho que também ela gostasse dessa sua característica, já que em seu discurso de aceitação do AFI Life Achievement ela agradece especificamente a Frank Capra e Billy Wilder: aquele por ensiná-la tudo sobre o cinema, este por ensiná-la a atirar... 
Meu amor por Barbara Stanwyck está impregnado de um orgulho imenso. Porque ela ressaltou a faceta masculina e a feminina que há em cada um de nós. Porque ela, extravasando os limites do star system, repudiou o histórico assujeitamento feminino, que ainda hoje nos violenta. 

*

com Elvis...
Fonte: http://www.rockcellarmagazine.com/2011/08/22/musicians-on-motorcycles/elvis-presley-and-barbara-stanwyck-on-motorcycle/

domingo, 13 de março de 2011

Horizonte Perdido (1937), obra-prima de Frank Capra

Em 1936, quando "Lost Horizon" estava em pré-produção, pululavam os focos de instabilidade política e social ao redor do mundo. Os Estados Unidos enfrentavam a Grande Depressão, a qual arrastou para o precipício uma porção de outros países que tinham relações econômicas com o gigante do norte - o Brasil, por exemplo; a Espanha entrava numa Guerra Civil que duraria até 1939 e garantiria a vitória da ditadura de Franco, o qual permaneceria no poder até o início dos anos 70; e a movimentação de Hitler numa Alemanha andrajosa e que votava cega obediência aos desígnios do Führer anunciava a proximidade de outra Grande Guerra.
Frank Capra já era, àquela altura, um dos mestres indiscutíveis da Sétima Arte, tendo sido um dos responsáveis por lançar as bases da screwball comedy - gênero que garantiu a qualidade estética do cinema depois da chegada do som, momento em que cineastas embasbacados com o avanço tecnológico quase que fizeram o medium retroceder para o teatro filmado.
Capra e Howard Hawks - outro pioneiro do gênero - rodaram em 1934, respectivamente, "Aconteceu naquela noite" e "Twentieth Century", interessando o público por narrativas que tratavam do confronto sexual e do envolvimento romântico em meio aos conflitos sócio-econômicos da Depressão. Capra e Hawks lançaram modelos diferentes de relação, conforme aponta Thomas Schatz em Hollywood Genres: formulas, filmmaking, and the studio system: enquanto os protagonistas do filme de Hawks pertencem ambos ao topo da pirâmide social, os de Capra ocupam, cada qual, uma extremidade da pirâmide, redefinindo seus lugares na sociedade à medida em que descobrem não poderem viver um sem o outro. O jornalista pobretão - mas boa-praça - a quem Clark Gable dá vida em "Aconteceu..." e a aristocrata tola desempenhada por Claudette Colbert são os protótipos dos casais que fazem suas diferenças culturais chegarem a um denominador comum para que realizem, em conjunto, uma vivência plena. A lição implícita era que em tempos de convulsão social não havia porque em se ater a distinções de classe.
"Horizonte Perdido" é cria do gênero, no entanto, instaura uma modificação fundamental na narrativa. Sensível à mudança dos tempos, Capra desloca para segundo plano o conflito amoroso entre os protagonistas, trazendo para o centro do debate um conflito entre duas ideologias: aquela que prega o diálogo como caminho certeiro para a solução das diferenças e aquela que dubiamente prega a guerra para a conquista da paz. O diretor escolhe como herói o político idealista Robert Conway, que ganha corpo de modo admirável na pele de Ronald Colman - um dos poucos galãs do cinema silencioso que sobreviveram ao som. A escolha é acertada. Com 46 anos à época, Colman transpirava num só tempo virilidade e sensatez. Capra se sabia, naquele momento, o porta-voz do cidadão americano. A verossimilhança da história dependia da eficácia com que seu herói respondia à situação insólita que a trama lhe impunha.
A personagem de Colman, embora seja um britânico, assemelha-se a um daqueles típicos americanos aos quais Capra deu vida anos antes. É um homem que venceu pelo merecimento pessoal: talentoso diplomata, cotado para ser Ministro dos Assuntos Exteriores da Inglaterra, é enviado à China para retirar do país um grupo de ocidentais que estavam em meio ao fogo cruzado de uma Guerra Civil. Cedo saberemos, todavia, que o valor do homem de pouco serve no ambiente em que ele vive. Logo após embarcar o último ocidental e saltar para dentro do avião que o levaria para longe do conflito, Conway verbaliza de modo irônico sua desilusão: Você anotou que salvamos 90 brancos? Viva nós! Você anotou que deixamos 10 mil nativos para serem aniquilados? Não, você não diria isso, porque eles não contam. Salienta também seu ideal pacifista, lançando um hiato com relação à produção cinematográfica norte-americana, que bradava aos sete ventos seu éthos belicoso:

Vou fazê-los todos de bobos. Não vou ter nenhum exército. Vou afundar meus navios de guerra. Vou destruir cada pedaço de artilharia. Aí, quando o inimigo se aproximar, vamos dizer: "Entrem, cavalheiros, o que podemos fazer por vocês?". Aí os pobres soldados inimigos vão parar para pensar: "Há algo errado aqui. Fomos enganados. Isso não está de acordo com o protocolo. Essas pessoas parecem amigáveis. Por que é que vamos atirar nelas?". Aí eles vão abaixar as armas. Viu como é tudo tão simples?

O caráter de exceção de "Horizonte Perdido" - libelo pela paz em meio à propaganda bélica largamente divulgada por Hollywood - é metaforizado na escolha do título da obra e na sociedade que ela focaliza. O título remete a Shangri-la, espaço ideal em que a regra geral é o comedimento e onde as discordâncias são resolvidas pelo diálogo. É um local de abundância de alimentos, de beleza, de conforto, de saúde, portanto, não há no lugar policiais ou médicos. Quem rege o local é um lama bicentenário que não precisa fazer qualquer esforço para impor regras, pois lá todos vivem felizes com a divisão de trabalho que se auto-impuseram. Shangri-la, em suma, apenas funciona como uma maquinaria bem lubrificada porque em nada se assemelha ao restante do mundo. O brilho que Conway tem no semblante ao avistar o lugar maravilhoso pela primeira vez e a alegria com que ele aceita o mistério que o circunda provam sua rápida percepção de que, embora ele fosse o arquétipo do homem valoroso, não era em seu país natal que ele veria realizado seu ideal de paz.
Ao escolher transpor para as telas essa história - adaptada do romance homônimo de James Hilton publicado em 1925 - Frank Capra demonstrava percepção aguçada da sociedade em que vivia. Ao tematizar a interação entre o homem e a natureza exuberante em que ele vive, refaz um movimento caro à literatura ocidental. O Romantismo está repleto de histórias que relatam a chegada do herói - metáfora da civilização - numa terra virgem. Só nós temos duas, Guarani e Iracema, ambas de José de Alencar, nas quais ele apresenta sua interpretação da dinâmica de formação de nossa nação: em ambas o branco impõe sua civilidade aos índios, considerados selvagens, tábulas rasas. No Romantismo inglês é Robinson Crusoe que leva seu modo de vida civilizado à ilha na qual se perde. Entretanto, em "Horizonte Perdido" a relação entre civilização e barbárie é redefinida. Shangri-la, com sua natureza exuberante e suas jovens que banhavam-se nuas e criavam pombos, estava tão distante do Éden bíblico tematizado pelas narrativas românticas quanto estava distante da civilização distorcida dos Estados Unidos e da Inglaterra.

Ela era, sim, o epítome da civilização, espaço onde o desenvolvimento intelectual era o elemento deflagrador da harmonia - a concretização, enfim, do ideal da modernidade. Prova contumaz disso é a personagem de Jane Wyatt, fresca e serelepe como uma menina e, não obstante, sábia ao ponto de perceber, nos ideais que a personagem de Colman fazia publicar em seus livros, o quão vazia era a vida dele.
E, assim, ao contrário do que ocorre aos heróis das narrativas românticas, em "Horizonte Perdido" não é o herói que modifica o meio - é o meio que o modifica.
Todavia, a película explicita que o caminho do homem ocidental rumo à civilidade é mais pedregoso do que ele a princípio imaginara. Até mesmo Conway é sucumbido por paixões passageiras, acabando por preferir o retorno ao Ocidente à vida tranquila em Shangri-la. A conclusão, todavia, é positiva - e acredito que a atualidade do filme esteja tanto em seu percurso quanto em seu desenlace: A guerra parece um caminho muito mais prático e sedutor do que o diálogo para a resolução dos conflitos, no entanto, é ridículo que a usemos como pretexto para a paz. Urge fazermos o percurso que separa o bom-senso da selvageria, mesmo que ele seja tão inóspito quanto aquele que, no "Horizonte Perdido", separa Shangri-la do restante do mundo dito "civilizado".
Infelizmente o clamor pacifista do filme não foi ouvido na época de seu lançamento - tanto que, durante a Segunda Guerra, elementos da história foram modificados para que ela servisse de propaganda do esforço bélico norte-americano. Mas eu acho que ainda dá tempo. Por isso, junto minha voz à do britânico que empreendera as buscas à Conway e brinda com os amigos pelo sucesso da empreitada do herói: Proponho um brinde: À esperança de que Robert Conway encontre sua Shangri-la. À esperança de que todos nós achemos nossa Shangri-la.

domingo, 31 de maio de 2009

O mundo é um manicômio...

Eu, que já conhecia de tempos o ditado "De poeta e louco, todo mundo tem um pouco", aferi a veracidade do segundo predicativo nesses dois últimos meses, enquanto meu computador e eu lutávamos ferrenhamente para que terminássemos minha dissertação antes que ela acabasse conosco... E foi quase o que aconteceu, que o digam as teclas soltas do PC e os parafusos soltos de minha pobre cachola...

Isso seria apenas mais uma reclamação se não achasse eco num filme que revi nos últimos dias em que escrevia, "Arsenic and old lace" (1944). É, a incrível screwball comedy de Frank Capra, denominada "O mundo é um manicômio" em Portugal, e que infelizmente ainda não foi lançada entre nós, fez com que eu me sentisse melhor comigo mesma. Sim, porque o fato de me esquecer continuamente d
aquilo que meus familiares me dizem não quer dizer que eu esteja louca... pelo menos, não tão louca quanto essas duas simpáticas senhoras, tias de Cary Grant, as quais dão cabo de todos os velhinhos indefesos que batem à porta delas...
E tudo isso por obra de caridade... Também estou a anos luz de distância do sanguinário irmão do protagonista, ninguém menos que Boris Karloff (ao menos depois da cirurgia plástica que lhe fez o Dr. Einstein)...
Difícil falar sério sobre esta comédia pastelão deliciosa, que mistura tão bem os ingredientes necessários para fazer o espectador rir sem que ele fique com vergonha de olhar do lado, e precise tirar toda a garotada da sala para que ela não veja a pornografia que pulula das pretensas comédias produzidas ultimamente. Aliás, fico imaginando quanto o cinema iria ganhar se Adam Sandler, Ben Stiller e Will Smith parassem de se supor engraçados e assistissem a clássicos como este, e também a Núpcias de Escândalo (Philadephia Story, 1940) e a Levada da breca (Bringing up baby, 1938), apenas para mencionar alguns.
Há aqui flagrado um grande momento do cinema mundial. Hollywood, que já havia descoberto a tempos que não necessariamente precisava transmitir mensagem moralizante ao público, aqui se permite ser totalmente amoral, e por isso mesmo tão fascinante. Numa subversão de preceitos caros ao teatro e ao cinema, as velinhas
outlaws são aqui as ingênuas e as personagens que mais cativam o público. Julgam que os envenenamentos por elas cometidos são em benefício de suas vítimas, pobres senhores sem ninguém que olhe por eles. E sua caridade vai ao ponto de sepultá-los no porão, em belas cerimônias regadas a hinos cristãos.
A desconsideração das senhoras com relação à moral vigente é acompanhada da ojeriza que sentem pelo irmão do protagonista, o citado Boris Karloff, o qual ironicamente cometera a mesma quantidade de crimes que elas, no entanto, está na mira da polícia, das tias e de Cary Grant, que começa a ser afetado pela insânia reinante na família:...



E quando as duas surtadíssimas senhoras recusam-se a enterrar o Sr. Spenalzo, morto por Karloff, junto à vítima delas - afinal, o estrangeiro não merecia o mesmo funeral cristão oferecido ao senhor que fora beneficiado com a caridade das mulheres... - o público acaba por perceber que as senhoras são as personagens mais coerentes da história. Sim, porque não parece muito sensato da parte de Cary Grant querer internar seu outro irmão num hospício apenas porque ele se acha o presidente dos Estados Unidos. Especialmente quando as loucas realmente perigosas são as tias. E tampouco parece são o policial que decide deixar Cary Grant amarrado e amordaçado para que este ouça sem reclamar o enredo da peça de teatro escrita por aquele.A comédia está repleta de momentos impagáveis como esses. Se minha recomendação valesse alguma coisa, aconselharia fortemente os amantes de comédia que economizassem o ingresso de "Uma noite no museu 2" e baixassem esse filme. Com certeza, não se arrependeriam.