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domingo, 14 de outubro de 2012

“Paris vu par Hollywood” no Hôtel de Ville e “Sabrina” (1954)


O Hôtel de Ville, bela construção a dois passos da Île de la Cité, em Paris, recebe até meados de dezembro a exposição Paris vue par Hollywood, memento num só tempo nostálgico e crítico da forma como a produção cinematográfica hollywoodiana apreendeu a cidade-luz. 
Hôtel de Ville
Na entrada, a linha do tempo dá o tom da mostra: por ela desfilará cem anos de cinema, até “A invenção de Hugo Cabret” (2011), recentíssima obra prima de Martin Scorsese em que dá o ar da graça a Paris do Méliès de 1890-1910. O corredor coberto das recordações do tempo em que o cinema dava os primeiros passos é preenchido com o som que vem do subsolo, onde um enorme telão apresenta excertos de obras produzidas quando a arte já amadurecera. 
An American in Paris
Antes de chegar ao subsolo, o público curioso pode esgueirar-se em direção às pilastras que sustentam o edifício e juntar a imagem ao som. Lá está a Garbo de “Ninotchka” (1939) a replicar, num hilário pragmatismo, a cantada do parisiense típico Leon: “Só quero saber qual a distância mais curta até a Torre Eiffel. Você acha mesmo que há a necessidade de flertar?”. Gene Kelly arrebata Leslie Caron nas margens do Sena, ao som de “Love is here to stay”, em "Sinfonia de Paris" (An American in Paris, 1951); o maravilhoso Gershwin sabe dar voz à Paris como ninguém. E Audrey, Freddy e Kay Thompson entoam um “Bonjour Paris” enquanto saltitam separados pelos pontos turísticos da cidade, encontrando-se, claro, no topo da Torre Eiffel (Cinderela em Paris/Funny Face, 1957). 
Funny Face
É no subsolo que estão as maiores preciosidades da mostra: peças do figurino usado por Greta Garbo em “Camille” (1936) e por Audrey Hepburn em "Amor na Tarde" (1957), um prato cheio para os fetichistas; fotografias de divulgação das fitas, trechos de roteiros, desenhos de produção de filmes como “An American in Paris” e “Moulin Rouge” (1952). 
Hollywood constrói Paris como a cidade do prazer e da liberdade. Paris vue par Hollywood argumenta que a cidade tornou-se, para a cinematografia norte-americana, o ponto de fuga dos cerceamentos impostos pelo Hays Code. Toda a liberalidade proibida nos filmes que tematizavam os EUA foi transferida para Paris, tornada, neste sentido, retrato enviesado de uma América do Norte ideal. 
The Merry Widow
Artífice que soube construir cabalmente uma Paris americana foi Ernst Lubitsch, que além de “Ninotchka” dirigiu pérolas como “The Love Parade” (1929) e “The Merry Widow” (1934). Nos dois últimos figura Maurice Chevalier, ator francês que, depois de décadas de carreira no vaudeville parisiense, foi escolhido pelo cinema hollywoodiano para personificar o que seria o francês típico: galanteador cujo cinismo caminhava de mãos dadas ao romantismo. Não por acaso, numa de suas últimas criações ele surge como mentor de Louis Jordain noutra típica película de Hollywood sobre Paris: “Gigi” (1958). 
O diretor de "Gigi", Vincente Minnelli, foi outro apaixonado pela cidade. É de sua lavra “An American in Paris”, filme que, segundo a mostra, é a versão mais bem acabada do modo como a “América” viu a cidade. A Hollywood clássica deixou de lado Paris como realidade empírica para se dedicar a uma criação poética da cidade. Representação mais arrematada do intuito é esta obra em que Minnelli e o ator-coreógrafo Gene Kelly reinterpretam a cidade a partir das telas dos artistas que a representaram: Monet, Renoir... A obra prima de Minnelli e Gene sintetiza o esforço americano das primeiras cinco décadas do século: Paris torna-se a tela em que um mundo cor-de-rosa se projeta. 

Audrey em "Funny Face"

"Sabrina" (1954) 
A mostra continua no cinema Le Champo. Só nesta semana veiculam-se lá outros dois filmes com Audrey Hepburn, atriz cuja elegância cedo a identificou à cidade: “Charada” (1964) e “Sabrina” (1954). 
Vi o último, ontem, pela décima vez; a primeira em tela cheia. E ele nunca me pareceu tão bom. Gostava mais da versão de 1994, o filme que mais vi na vida... Talvez porque a versão com Julia Ormond e Harrison Ford reforce a imagem de romantismo da cidade, enquanto que o filme de Wilder a chacoalha. E é isso que acho tão fascinante, agora. 
Sabrina é a jovenzinha sensaborona (bem, nem tanto; falamos de Miss Hepburn...) arrolada, no brilhante roteiro, no quadro de posses da família Larraby: eles tem funcionários pra cuidar da piscina coberta e descoberta, do aquário do peixinho George e dos barcos, bem  como um chofer importado da Inglaterra anos atrás, junto com um Rolls Royce e uma filha. Os medalhões americanos são ridicularizados com tremenda verve neste roteiro que também tem o dedo de Wilder, como não podia deixar de ser. Não só isso: a imagem paradigmática da Paris de Hollywood é questionada. 
Ao contrário do filme de 1994, em que a cidade torna-se locação importante, no filme de Wilder ela aparece em telões, é tipificada no mais alto grau: Sabrina viaja para Paris no intuito de aprender culinária (a sala de aula dá frente para a torre Eiffel, o professor é a caricatura do francês de bigode encerado e biquinho).  Escamoteado está o desejo da moça de esquecer David, o Larraby mais jovem, seu amor platônico desde a infância. Lá ela amadurece, torna-se a mulher cosmopolita que transpira elegância pelos poros – em outras palavras, torna-se Audrey Hepburn. Volta envergando um tailleur, o chapeuzinho da moda e trazendo na coleira o french poodle “David” – metáfora do encoleiramento a que ela submeterá o David real não muito tempo depois. 
No andar da ficção, a máscara da “Paris vista por Hollywood” é esgarçada. A jovem cosmopolita só tem uma casca de maturidade; é manipulada por Linus, o Larraby mais velho, workaholic e anti-romântico. É rejeitada pela família dele e vítima até mesmo do próprio pai. No fundo, Sabrina continua a desajeitada filhinha do chofer que, no início da película, quase bota a casa abaixo ao tentar o suicídio. Novos são apenas seu stupid hat e seu stupid dress, como ela não deixará de constatar. 
É óbvio que no final tudo se ajeita, com o trivial Happy Ending hollywoodiano. Mas o percurso é que é irresistível: com o cinismo de Wilder perpassando tudo, até a escolha do par romântico da jovem atriz – o envelhecido e casmurro Humprey Bogart, que nem embebido pela "La Vie en Rose" mais doce do mundo, entoada por Audrey, consegue que a gente o enxergue por detrás de lentes rosadas... 

Audrey e Humprey no set de gravação
Paris vue Par Hollywood: Hôtel de Ville, 18 set.-15 dez. Entrada gratuita.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Barbara Stanwyck, a rainha


Estou numa fase Barbara Stanwyck desde que vi aquela loucura maravilhosa que é “Bola de Fogo” (1940).
Preciso dizer que é difícil de se estar numa fase Barbara Stanwyck. A mulher fez quase um cento de filmes, 5 anos de uma série televisiva de tremendo sucesso nos anos 60 (The Big Valley, 1965-1969), outros dois do premiado show que levava seu nome (1960-1961). Debutou em Hollywood junto com o cinema falado (em 1929), depois de um período de relativo sucesso na Broadway, e só se despediu das telas nos anos 80, depois de outro grande sucesso – “Os Pássaros Feridos” (1983) – impossível um final mais auspicioso. É uma dificuldade imensa abarcar num post o conjunto de sua obra tão extensa e profunda. 
Mais fácil é passar por ela com passos vagabundos, parando de hora em vez para admirar uma heroína heterodoxa ou uma cruel femme fatale; ou para apreciar melhor aquela história genial de elenco notável, ou aquela outra que só se salva mesmo pela personagem principal (porque qualquer história vale a pena com ela).
The Big Valley

Barbara fez muito de tudo: dramas, thrillers, comédias; muitos filmes bons e outros tantos ruins. Se o ator é aquela propalada criança grande que vive a brincar de fazer de conta, ela sem dúvida foi das mais matreiras. Tomou parte em muita coisa esquecível, porém, sempre com tanta segurança que se tornava a única coisa a fazer sentido na tal produção – prova indelével de seu amor e dedicação pelo que fazia.
Miss Stanwyck, a inatingível estrela de cinema, ou “a rainha”, como William Holden fazia questão de chamá-la depois que foi seu “Golden Boy”, vez por outra dava espaço para a Babs, fazendo renascer aquela moleca do Brooklyn que nos anos de 1910 só conhecia os stars a partir das poltronas piolhentas das saletas de cinema do bairro. Basta que a gente a veja em “The lady of Burlesque” (William Wellman, 1943) para que percamos todo o respeito que temos por ela: Lá está Babs, rebolando num número sofrível do teatro burlesco no qual sua personagem trabalha. Ela responde os trocadilhos infames lançados por seu co-protagonista para, pouco tempo depois, sair do palco dando cambalhotas. A sequência estapafúrdia é a única digna de nota desse thriller que é tão ruim ao ponto de não ter suspense algum... E só é digna de nota porque vemos por aí que Babs defendia a contento qualquer coisa que lhe caísse nas mãos.

Barbara foi uma atriz moderna avant-garde, ou, porque não dizermos, foi a primeira atriz moderna. É surpreendente que uma atriz como ela tivesse surgido dentro da produção controlada dos estúdios americanos dos anos 30-50, em que o artista estava fadado a interpretar continuamente variantes de um mesmo tipo. Além dela, só Bette Davis – outra rainha – transitava com eficácia entre gêneros e caracteres. Talvez porque o carma da beleza física não as tivesse pego, puderam interpretar vilãs sem que a aparência batesse de frente com o mundo tipificado hollywoodiano em que a beleza era um atributo da bondade. E porque esbanjavam talento, eram críveis como good girls, um pouco de maquiagem e muita arte sendo suficientes para que se transformassem nas mulheres mais lindas do mundo. Seus rostos de mulheres terrenas – por oposição às goddesses da tela prateada – quem diria, as trouxe modernas até aqui, e as arrastará assim até a eternidade (ao menos é o que essa fã espera).
Quando deu corpo à dama burlesca, Barbara já havia vestido todas as máscaras disponíveis em Hollywood. Foi conduzida ao estrelato pelas mãos do grande Frank Capra quando ele era ainda pequenino, e burilou seu estilo enquanto ajudava
o mestre a burilar o dele. Vemo-la muito pouco Barbara Stanwyck em “Ladies of Leisure(1930), um filme muito pouco Frank Capra: Babs é Kay Arnold, a jovem de vida equívoca que, dilacerada pelo amor impossível nutrido por um aristocrata, tenta o suicídio. Capra toma-a nuns primeiros planos com iluminação intensa e clara e ela aparece delicada, frágil, santificada. Tão distante da imagem de mulher firme, tão à frente de seu tempo, que a tornaria célebre nas mãos do próprio Capra na obra-prima “Adorável Vagabundo” (Meet John Doe, 1941). Barbara esteve sempre no meio-termo entre a frieza e a suavidade. É esse modo matizado como ela conduz suas personagens que a mantém moderna até agora, em detrimento das toneladas de lixo maniqueísta que Hollywood produziu.
Agora nós a vemos em “Stella Dallas” (King Vidor, 1937), drama mediano com uma obra-prima de interpretação. Aos 29, Barbara arrasa na pele da mãe de meia idade, pobre, cafona e livre, que, naquela sociedade cheia de preconceitos da época, precisa entregar a filha amada ao pai da jovem para vê-la ter alguma chance de futuro. Basta o plano final para que tenhamos dimensão da grandeza da atriz: close da mãe desgrenhada e linda em sua abnegação que, depois de ver a filha bem casada, desce a rua que as separará para sempre levando na cara um meio sorriso que mescla a tristeza da separação e a alegria do dever cumprido. Nenhuma maquiagem. Barbara só carrega no rosto seu imenso talento – louvável negação à maxfactorizada Hollywood dos anos 30, que pintava suas sofredoras como se fosse conduzi-las a um baile de gala. Ao deixar de mascarar a dor, Barbara humaniza sua personagem, remete-a a condição eterna da mãe que se doa pela prole – dando, assim, alguma vida a essa história triste de tão melodramática.
Stella Dallas

Mas rápido enxugamos a lágrima que ficou no canto do olho, pois já estamos a vê-la como a encantadora heroína sem nenhum caráter – variante que ela defendeu bem como ninguém – que usa seu poder de sedução para enredar o antropólogo tímido e jogá-lo nos braços dos patifes de sua família. O filme é “The Lady Eve(As três noites de Eva, Preston Sturges, 1941) e ela, o desdobramento perfeito da fêmea bíblica responsável por induzir o homem ao pecado. A vítima é Henry Fonda, que ironicamente será o fornecedor da serpente com a qual a jovem consumara a tentação. A cena da sedução dessa cômica femme fatale – leitura humorística das vamps que, no cinema dos primórdios, enrolavam-se como cobras... – é impagável pelo charme que exala. Melhor que ela só as sequências de comédia pastelão que se sucedem quando a vampira apaixonada decide ir atrás da vítima que a havia rechaçado para vingar-se dele. De Miss Stanwyck nasceu um dos tipos mais interessantes de good girl – aquela que une frescor, ironia e inteligência. Barbara fazia interpenetrar numa mesma personagem vilania e bondade, afastando-a de um maniqueísmo rasteiro, aproximando-se assim das mulheres de carne e osso que a viam nas telas. Isto está muito bem posto em “The Golden Boy” (Rouben Mamoulian, 1939), em que ela desempenha a mulher independente, amante do chefe, encantada pelo jovem violinista que se torna revelação no mundo do boxe. William Holden, o menino de ouro – que à época efetivamente não passava de um garoto, 11 anos mais jovem que sua rainha – combina idealismo e amargura extremos. Enquanto toca violino e sua alma se expande, ele e a mentora se descobrem apaixonados – e nós por eles, brilhantes como o par que percorrerá os dois lados da estrada de mão dupla que separa a emoção da dor, a arte da violência.Na sociedade patriarcal norte-americana da década de 30, em que a mulher acabara de ganhar direito ao voto mas ainda estava longe de atingir a igualdade com o homem, Barbara construiu uma persona que ensaia a fuga do jugo masculino por meio de sua dubiedade e altivez. Ao economizar nos gestos e lágrimas, afastando-se do dramalhão, a atriz injetou densidade psicológica nas mulheres que criava. Esta sutileza, essa recusa a se deixar possuir totalmente pelo galã e pelo público, essa incompletude de sentido é, acho eu, o que ainda a faz tão interessante.
Era por meio de seu gestual que, vez por outra, Barbara extravasava a emoção contida. John Travolta, no discurso de entrega do Oscar Honorário à atriz em 82 (o único que ela receberia, apesar da excelência de seu trabalho), remete-se à beleza e confiança impressos no caminhar dela ao longo da tela. E aí lembramos da explosão de desejo da aparentemente
fria Mae Doyle quando ela se entrega ao amante em “Clash by night” (Fritz Lang, 1952); da estranha Martha Ivers (de “O tempo não apaga”, Lewis Millestone, 1946) enquanto ela desce eufórica a escadaria que a levará ao namoradinho de infância, linda e leve pela primeira vez, como se só ele pudesse salvá-la da vida de hipocrisia que vivia desde que se separaram; da segurança com que sua Lily Powers de “Baby Face” (Alfred E. Green, 1933) usava seu corpo como lhe aprazia, plenamente dona de si num momento em que mulher nenhuma o era; de sua fragilidade ao cair nos braços do zé-ninguém Gary Cooper no final de “Adorável Vagabundo” (Frank Capra, 1941), tão dele como ele desde sempre fora dela.
Adorável Vagabundo


Com Billy Wilder, Barbara Stanwyck fez o sensacional thriller "Pacto de Sangue" (Double Idemnity, 1944), em que era “mulher decaída” até no último grau, com um par de amantes que ela manipulava para tomar posse da herança do marido. Barbara soube carregar com a mesma sem-cerimônia a espingarda e a flor, sabendo exatamente o que fazer com uma e outra. E como isso fica claro naquela delícia de western à la anos 60 que é The Big Valley, no qual a atriz sessentona veste com a mesma doçura e assertividade o papel de matriarca da família!... Suponho que também ela gostasse dessa sua característica, já que em seu discurso de aceitação do AFI Life Achievement ela agradece especificamente a Frank Capra e Billy Wilder: aquele por ensiná-la tudo sobre o cinema, este por ensiná-la a atirar... 
Meu amor por Barbara Stanwyck está impregnado de um orgulho imenso. Porque ela ressaltou a faceta masculina e a feminina que há em cada um de nós. Porque ela, extravasando os limites do star system, repudiou o histórico assujeitamento feminino, que ainda hoje nos violenta. 

*

com Elvis...
Fonte: http://www.rockcellarmagazine.com/2011/08/22/musicians-on-motorcycles/elvis-presley-and-barbara-stanwyck-on-motorcycle/

sábado, 28 de janeiro de 2012

“Bola de Fogo” (Ball of Fire, 1941). E viva as loucuras adoráveis do cinema clássico!

Não paro de me surpreender com a produção cinematográfica da Hollywood clássica. Parece impossível que um cinema tão preso a convenções, preocupado fundamentalmente em vender a imagem de seus stars, tenha conseguido produzir tanta coisa notável – e aqui me prendo especificamente em “Ball of Fire”, screwball comedy roteirizada por Billy Wilder e Charles Brackett e dirigida por Howard Hawks no princípio dos anos 40.
Hawks provara ser mestre no gênero desde que dirigiu “Bringing up baby” (Levada da Breca, 1938) e “His girl Friday” (Jejum de Amor, 1940). Wilder, o grande Wilder, até então não havia se aventurado detrás das câmeras, mas roteirizava desde o início dos anos 30, antes em sua Alemanha natal e depois nos Estados Unidos, tendo sido responsável por engendrar, por exemplo, “Ninotchka”, a primeira comédia – e que comédia! – protagonizada por Greta Garbo. Hawks já havia dado à Sétima Arte um conjunto heterogêneo de produções: épicos como “Sergeant York” (1941), filmes noir como “Scarface” (1932). Wilder rapidamente estenderia seus domínios, como roteirista e diretor, para os campos da comédia, da tragicomédia, do romance, do drama, do noir, sempre com resultados de qualidade assombrosa: “The major and the minor” (1941), “A foreign affair” (A mundana, 1948), “Sabrina” (1954), “Sunset Boulevard” (Crepúsculo dos Deuses, 1950), “Double Idemnity” (Pacto de Sangue, 1944) – quase sempre com a parceria de Charles Brackett.


“Ball of Fire” é a prova cabal da versatilidade do grupo. A história se estrutura em torno dos elementos da comédia amalucada, que, no entanto, se enlaçam de um modo irresistível à violência dos gangsters dos noir e ao romance agridoce. Só a premissa já é de encher os olhos: Sugarpuss O’Shea (Barbara Stanwyck), cantora de cabaré, é obrigada pelas circunstâncias a se esconder na Fundação habitada por oito professores de meia idade e celibatários que escrevem uma Enciclopédia cuidados por uma velha governanta; o único jovem do grupo é Bertram Potts (Gary Cooper), que cruza com a moça enquanto procura fontes para sua pesquisa sobre slang (a língua informal, usada sobretudo na fala e por um grupo particular de pessoas – a nossa gíria), um dos verbetes da Enciclopédia. O choque entre essas duas personalidades opostas, elemento fundamental da screwball, é aqui potencializado porque um efetivamente troca de lugar com o outro: as buscas do prof. Potts levam-no à boate onde a moça apresenta um número “repleto de palavras tão estranhas que o deixam com a boca cheia d’água”; a fuga de Sugarpuss – “Rostinho Doce”, segundo a melhor slang – leva-a a aceitar o convite do homem e compor o grupo que estudaria o assunto na Fundação onde ele habita.
Mas, para além dos quiproquós envolvendo os senhores castos e a moçoila espevitada e tudo, menos casta – chacoalhada explícita na fábula da “Branca de Neve e os Sete Anões” – o que me encanta na história é o tratamento que ela dá à língua e aos saberes institucionalizados. Não sei se o assunto parecerá abstrato demais àqueles que desconhecem os debates dos Linguistas sobre as variedades da Língua e as noções de “erro” e “acerto”; dos embates homéricos travados entre Linguistas – defensores da língua viva, com todas as suas variantes populares e eruditas, de pronúncia e de escrita – e Gramáticos Normativos, que classificam como “erro” tudo o que foge à “norma culta”. O embate gerou filhos obtusos como, recentemente, o debate sobre o livro de português que supostamente ensinava errado apenas porque admitia a possibilidade de se dizer “os livro”. Mas encurtemos o assunto. O que “Ball of Fire” faz, e esse é um dos motivos pelos quais ele me é tão querido, é balançar o coreto da Gramática Normativa – e em 1941!
E com que graça ele o faz!... Nesta história, o saber institucionalizado - compreendido pela Enciclopédia e os velhos acadêmicos que a redigem – é primeiro caricaturado para depois ser revisto até finalmente dar os braços ao saber popular. Gíria – lembra o professor Potts – como diz o poeta Carl Sandburg, é a língua que tira o casaco, cospe nas mãos e pega no batente. É o aspecto mais dinâmico da linguagem, e ele, para aprendê-la, deixará o conforto dos livros antigos de referência e encetará um encontro com a sociedade viva que a fala. É aí que encontrará Sugarpuss.
Os professores, embora eruditos, pouco sabem para além de sua área de conhecimento. Sugarpuss carece de ensino formal mas esbanja conhecimento prático da vida. Logo ela vai iluminar, com seu brilho de entertainer, a vida pálida dos homens que a circundam. E tudo isso acontecerá dentro da estrutura narrativa mais enxuta e coerente que se pode esperar, o que só faz cooperar na construção dos tipos e situações criadas:
Nas mesas redondas onde o professor Potts tentará aprender a slang americana com “um grupo de pessoas dos mais variados grupos sociais” (ideia moderníssima ainda hoje) nasce a discussão sobre o que é corny (sentimentaloide), a qual ajudará a definir os caracteres dele e da jovem Sugarpuss. E é uma slang – como não – que juntará o rapaz e a moça, numa das cenas românticas mais deliciosas de todos os tempos, que culmina com ela lhe ensinando o que é Yum Yum (vejam a cena abaixo, um dicionário visual do vocábulo), não sem antes fazer chover na cabeça do rapaz construções linguísticas que até hoje botariam o prof. Pasquale e sua trupe de cabelos em pé (construções que são questionadas pelo prof. Potts bem no meio da cena romântica, o que só lhe faz aumentar o charme: Miss O'Shea, the construction "on account of because" outrages every grammatical law!).

O prof. Potts, a Bola de Fogo e os profs. Oddly e Magebrunch

Em volta da dupla de protagonistas brilha um dos melhores conjuntos de coadjuvantes da época. Nomes como S.Z. Sakall, gordo e de rosto afável, responsável por uma infinidade de tios, primos e amigos bonachões no cinema dos anos 40, 50 (foi o barman de “Casablanca”). Sakall é um personagem tipo, como os demais professores, mas aqui os tipos casam-se perfeitamente com o roteiro. Ele é no filme o prof. Magebrunch, especialista em fisiologia, chamado sempre para resolver os problemas de saúde do grupo. Assim como o botânico prof. Oddly, o qual, apesar da “esquisitisse” que lhe atribui o próprio nome, é tão suave quanto as flores que ele tão bem conhece. Pertence ao prof. Oddly um dos momentos mais belos do filme, quando ele conta ao grupo sobre a esposa há tanto tempo falecida, sua sweet Genevieve, como diz a canção folclórica que ele e o grupo cantam depois de ele teorizar sobre o sexo feminino: sexo tão frágil quando a anemone nemorosa, florzinha que esperava o calor do sol para abrir as pétalas “sensíveis e delicadas”. Em momentos como esses, em que as loucuras da screwball dão lugar à atmosfera agridoce de nostalgia, sempre me pego com lágrimas nos olhos – sim, sou tão corny quando o professor Potts...

Oh Genevieve, I'd give the world
To live again the lovely past!
The rose of youth was dew-impearled
But now it withers in the blast.

(...)
Oh Genevieve, sweet Genevieve,
The days may come, the days may go
But still the hands of mem'ry weave
The blissful dreams of long ago

E por fim, os protagonistas. Gary Cooper e Barbara Stanwyck já haviam sido juntados no mesmo ano no também ótimo “Meet John Doe” (Adorável Vagabundo), uma das obras primas de Frank Capra. Aqui repetem o brilhante par romântico – brilhante especialmente por causa de Barbara, que faz o elemento ativo da relação. Aliás, essa mulher, estrela subestimada em sua época, precisa ser olhada com muito cuidado. Agora estou vendo-a meio compulsivamente e a admirando cada dia mais. Só ela, dentre todas as estrelas da época, para ainda parecer irresistível mesmo esbordoando uma velha que estava coberta de razão. Barbara soube lidar bem com a pecha de “mulher decaída” que o star system lhe impingiu. Aqui ela cria uma admirável, cheia de pimenta e de um caráter tão dúbio que apenas a conheceremos verdadeiramente no final. Nós e o Freud da Enciclopédia dos velhinhos...


Além do roteiro excelente, da direção cuidadosa e das ótimas performances, “Ball of Fire” é, como nenhum outro filme da época, um sensacional compêndio da slang americana dos anos de 1940 - mais surpreendente ainda porque Billy Wilder, um de seus criadores, ainda estava aprendendo o inglês. Recomendo-o fervorosamente, ainda mais porque, embora seja uma das melhores screwball comedies da época, não recebeu a mesma atenção que tiveram suas congêneres: “Aconteceu naquela noite” (It happened one night, 1934), “Núpcias de Escândalo” (The Philadelphia Story, 1940) ou “Cupido é moleque teimoso” (An Awful Truth, 937), por exemplo. Só que os leitores precisam baixá-la, porque o Brasil ainda não a comercializa e ela é vendida nos States a peso de ouro. Legendas em português são encontradas na Opensubtitles.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

"Quanto mais quente melhor" e os dois anos de Filmes, filmes, filmes!

Deixei passar, no dia 2 deste mês, o aniversário de dois anos do blog. Azar o meu, que perdi a chance de oferecer aos leitores esse bolo, presente de grego com que os mafiosos presenteiam o chefão da máfia de Chicago na deliciosa comédia de Bily Wilder "Some Like it hot" (1959), a grande vencedora da enquete do mês passado (50% dos votantes acharam-na a melhor de todos os tempos).
Mas, antes tarde do que nunca. O dia 2 de novembro não é dos mais risonhos para comemorarmos um aniversário. Agora que ele passou, podemos nos deliciar com a ironia desta e de uma porção de outras situações apresentadas na película - e pensar na própria ironia em que este blog se assenta, já que ele nasceu num Dia dos Mortos...

Ironia que salta aos olhos é o fato de uma comédia tão apimentada e hilária ter sido engendrada de uma relação extremamente conflituosa entre Marilyn Monroe e o diretor. Tony Curtis nos dá uns poucos detalhes sobre o caso no making of do filme inscrito na Edição Especial distribuída pela Fox. Porém, o astro prefere evocar com doçura e bom humor os momentos descontraídos vividos pela troupe. Por exemplo, na prova do figurino, após ser provocada pelos dois astros de que eles vestiriam trajes mais elegantes do que os dela, Marilyn teria levantado a blusa - sem sutiã - e lhes dito: "But you don't have this". Gentil até a morte, Tony preferiu reafirmar para a sua estrela a imagem que temos dela nas duas horas em que a vemos: Linda, de uma sensualidade meio juvenil e tola mas tão doce quanto o "Sugar" que lhe dá o nome.
A Trivia de Hollywood nos mostra outra Marilyn: uma m ulher de saúde física e mental já abalada que teria quase que enlouquecido seu diretor pelos constantes atrasos com que chegava ao set de filmagem e pelo esquecimento dos diálogos (algumas cenas teriam precisado ser repetidas 60, 70 vezes). Graças à mágica do écran, não conhecemos essa Marilyn.
É possível também que muitas dessas assertivas tenham sido estabelecidas pelo departamento de marketing da MGM, especialmente considerando que, em fins dos anos 50, a atriz vinha de uma estada no nova-iorquino Actors Studio - e, ao que tudo indica, uma estada aplaudida, em que ela teria sido considerada pário para Marlon Brando.


Não vale a pena, nessas linhas, nos aprofundarmos na persona pública e privada da polêmica atriz. Àqueles que desejam conhecê-la, recomendo o documentário sobre ela da série "Hollywood Collection" (vendida por aqui desde meados do ano), que disseca com argúcia aspectos de sua vida e obra. Descobrimos, por exemplo, que a imagem de tolinha adorável que Hollywood colou na atriz - e que, em alguma medida, ela também construiu para si - mascarava uma mulher que, para galgar os degraus da fama, não deixou de agir com algum sangue frio.
Vemos também o quanto essa imagem obrigou-a a repetir constantemente os mesmos tipos, frustrando seu desejo de experimentar no campo do drama. Uma pena: ao vermos a delicadeza com que
ela interpreta uma mulher problemática no último filme de sua carreira, "The Misfits" (Os desajustados, 1961), chegamos à conclusão de que quem saiu perdendo foi seu público.
Mas aqui quem nos interessa é a Marilyn cômica, insuperável mas infelizmente subestimada, como aconteceu a tantos outros cômicos que a antecederam e sucederam - só de pensarmos que as atuações de Chaplin nunca foram premiadas pela Academia de Artes Cinematográficas...
Com Tony Curtis e Jack Lemmon, a atriz compõe um dos elencos mais impecáveis do cinema, naquela que foi considerada, pela Entertainment Weekly, a melhor comédia de todos os tempos. A opinião recente da crítica faz eco à reação do público na época em que ela foi lançada, quando atingiu uma bilheteria que a pagou várias vezes.
Em "Some like it hot", Billy Wilder prova porque é mestre em seu ofício - e seu ofício o fez passear pelo drama, pelo romance e pela comédia, sempre magistralmente, que o digam "Sunset Boulevard" e "Love in the afternoon", duas outras obras primas.
"Some like it hot" tem tudo para agradar as mais variadas parcelas do público, que vão do espectador de primeira viagem até os cinéfilos mais inveterados... A mim ela sempre revela coisas novas, e eu a adoro cada vez mais. Nela, Wilder se revela um exímio garimpeiro do campo cinematográfico. Do drama mais pungente à comédia do estilo mais pastelão, há de tudo na película - testamento pilhérico das explorações do cineasta nos domínios da Sétima Arte.
O enredo beira a todo tempo o absurdo: para fugirem de Chicago após terem presenciado assassinatos comandados pela máfia, dois músicos são obrigados a se travestirem de mulheres e ingressarem numa banda feminina de jazz...
Para sustentá-lo, Wilder apoia-se nas tópicas que o cinema já havia produzido nos mais variados gêneros: o suspense, a ação, o romance, o musical e, é claro, a comédia. A história se passa em 1929, época em que a Bolsa de N.Y. estava prestes a colapsar, em que o comércio de bebidas alcoólicas era proibido, em que Mary Pickford era a maior estrela do cinema, as mulheres atingiram a tão almejada liberação feminina e o jazz era o ritmo que por excelência traduzia a euforia da sociedade moderna. A soma de referências a esse passado distante três décadas (mas cujos efeitos eram bem conhecidos) e dos gêneros cinematográficos que ainda faziam sucesso é responsável pelo surgimento de uma obra deliciosamente crítica e afiada.
A perícia com que Billy Wilder discorre sobre a linguagem dos mais variados gêneros cinematográficos à medida em que os alinha em seu filme soma-se aos três incríveis personagens principais que constrói: todos tão absurdos e geniais quanto a iniciativa do diretor de ironizar o modus operandi da indústria do cinema norte-americano à medida em que produzia um produto dela.
O passeio de Wilder pelos gêneros consolidados pela cinematografia é regido por um timing perfeito de comédia. O filme começa numa sequência que em nada deve aos filmes de gangsters protagonizados por James Cagney nos anos 30, regado a perseguições de mafiosos e sucessivas saraivadas de balas. Os bandidos vão dar num velório que se revela um bar ilícito, e a tensa trilha sonora é substituída pelo mais vigoroso jazz enquanto as pernas das coristas são enquadradas em primeiros planos. A alegria motivada pelo consumo do álcool nos remete às películas de William Powell & Myrna Loy, rodadas pouco depois do fim da proibição ao consumo de bebidas, nas quais o galã se revelava uma companhia mais interessante quando estava embriagado do que quando sóbrio. Todavia, Wilder não para nas referências ao passado, já que traz para sua obra um pimenta que, se o jazz ajudou a inventar desde os anos 20, por certo só pôde ser completamente saboreada nos 60, quando a censura do Hays Code recolhia os tentáculos que estendera sobre a indústria do cinema.
A principal responsável por temperar a película com erotismo é obviamente Marilyn. A atriz, aqui, repete mais uma vez o tipo da mulher sexy e inocente que tornou célebre. Porém, se essa obra se destaca em sua filmografia é porque o diretor conseguiu trabalhar ao longo dela símbolos que acenam para essa tensão entre a sexualidade e a ingenuidade. Por mais decotada que se apresente, a atriz nunca aparece vulgar. Nela, aquele desejo de ascenção social que sua personagem de Gentlemen prefer blondes" (Os homens preferem as loiras, 1953) já hilariamente verbalizara se soma ao sonho patético e genuíno de encontrar um saxofonista que a ame (já que ela só consegue se apaixonar por saxofonistas). A personagem realiza seu sonho romântico de um modo um tanto quanto enviesado, ao apaixonar-se por um suposto milionário arremedo de Cary Grant que não é outro que não... o que fugia da máfia.
O ponto alto do filme é justamente a releitura que Wilder faz da temática romântica. O plano de conjunto que toma pela primeira vez o hotel paradisíaco de Miami onde a comédia sexual se desenrolará, com direito a um coro de moças que canta uma canção alegre, nos dá a impressão de que veremos um daqueles adoráveis musicais da MGM. No entanto, uma outra redefinição nos rumos da fita se opera quando nos é apresentado aquele que (surpreendentemente) se tornará o par romântico de Jack Lemmon, um velho gabiru milionário.
Aliás, a sequência que narra o desenvolvimento dos dois pares românticos é uma das melhores de todos os tempos. Por meio de uma montagem paralela vemos a evolução de duas conquistas atípicas. Enquanto uma canção sensual acompanha as investidas de Marilyn ao supostamente frígido Curtis, um passional tango argentino mostra que Lemmon e o gabiru foram feitos um para o outro...

A ausência da censura permite que o diretor fale o mais abertamente possível sobre sexo, à maneira das películas anteriores à vigência do Hays Code e das comédias teatrais que influenciaram suas variantes cinematográficas. Além de finalmente poder povoar a ação de joelhos, pernas e decotes - algo impensável durante a censura -, Wilder pôde fazê-la ser perpassada por trocadilhos sexuais incisivos e modernos. A última sequência da película, em que o milionário aceita se casar com a personagem de Lemmon mesmo sabendo que ele é homem, já que "Nobody is perfect", é o mais perto que vi o cinema da época chegar da aceitação do homossexualismo. Sim, tal menção é feita por um viés cômico, porém, é reforçada pelo sentimento dúbio que Jerry (ops, Dafne) tem pelo noivo, "O homem que lhe daria segurança.", "O melhor homem que jamais conhecera.", "O homem cujos sentimentos ele não queria magoar.".

"Some like it hot" oferece uma deliciosa mistura de cinema clássico e modernidade que o torna uma das mais interessantes vias de acesso das novas gerações ao cinema produzido nos anos áureos de Hollywood.

domingo, 20 de setembro de 2009

Gloria Swanson & Cecil B. DeMille

Quem gosta dos clássicos de Hollywood certamente já passou por "Crepúsculo dos Deuses" (1950), o mais contundente filme sobre os bastidores da capital do cinema e, em minha opinião, um dos melhores filmes de todos os tempos. Depois de passear pelos extras da baratíssima edição de "Sunset Boulevard" distribuída pela Paramount, é bastante provável que o espectador se sinta compelido a procurar os filmes em que Miss Gloria Swanson foi dirigida por Cecil B. DeMille: retratado em "Sunset..." como um atarefado diretor que nem remotamente deseja tirar do ostracismo a outrora famosa atriz muda. É também possível que esse espectador procure saber um pouco mais sobre os outros artistas esquecidos que também comparecem no filme de Billy Wilder (Erich Von Stroheim, Hedda Hopper, Buster Keaton). Eu, pelo menos, saí atrás de toda essa gente.

O passeio me levou até "Don't change your husband" (1918), "Male and Female" (1919), "Why change your wife" (1920) e "The affairs of Anatol", películas em que uma Gloria Swanson no auge de sua juventude, beleza e popularidade é dirigida por Cecil B. DeMille.



Essas películas exemplificam bastante bem as diretrizes que determinavam o trabalho de DeMille
nos anos de 1910 e 1920. São comédias que seguem a linha das comédias de costumes teatrais, que buscam corrigir os vícios pelo riso. Daí a algumas delas não terem muita graça, por tentarem defender uma middle class morality de modo demasiado intencional. Por exemplo, a primeira e a terceira, "Não troque de marido" e "Porque trocar de esposa?", respectivamente. A apresentação do casal assemelha-se. No primeiro filme, a câmera delicia-se em apresentar pouco a pouco um marido relaxado: ele joga a sujeira do cachimbo no chão da sala, coloca os sapatos sujos sobre o lenço imaculado da esposa e não dá qualquer atenção a ela. A pobrezinha, que anseia por romance, encontra-o pouco depois no galanteador que a distraía no jantar em comemoração ao aniversário de casamento dela - ao qual o marido se esquecera de comparecer. No segundo é a vez de a câmera desnudar a pudica esposa que, por ser muito casta, acaba jogando o marido no colo de uma vamp (a hilária Bébé Daniels, num de seus muitos papéis de coquete espevitada). Num e noutro filme pululam as mensagens moralizantes do diretor, por meio de inúmeros intertítulos longuíssimos. A conclusão de ambos é: marido e mulher devem permanecer unidos para tentar resolver os problemas conjugais, pois nem sempre (nunca, de acordo com a filosofia demilliana) é bom negócio investir num novo consórcio. A leitura da questão é pretensamente inovadora quando DeMille propõe, em "Why change your wife", que a mulher deve deixar o puritanismo de lado para, de vez em quando ser também "amante" do marido. Porém, a dica parece servir unicamente ao objetivo de sustentar o lar burguês num momento em que não era tão difícil de se conseguir um divórcio (tanto que, nos dois filmes, o casal se divorcia, e os litigantes são punidos com segundos consórcios pouco deleitosos).
Além de acreditar que o casamento deveria durar até que a morte separasse o casal - mesmo que as diferenças já os tivessem separado muito antes -, outra crença alimentada pelo Sr. DeMille é a da estratificação das classes sociais, e isso fica muito claro em "Male and female", conto do mordomo que desejava a patroa rica mas, consciencioso de sua posição social, resolve casar-se com a criadinha sensaborona. O casamento entre a patroa e o empregado - enamorados um do outro - quase acontece. Isso enquanto ambos estão numa ilha deserta, onde vão parar depois que afunda o barco onde estão os ricos, o mordomo e a criada. Lá fundam uma nova sociedade, baseada na habilidade de cada um, e onde, pasmem, é a vez do esbelto mordomo tornar-se rei (literalmente). Só assim, superior à mocinha, ele poderia tê-la. O idílio dura pouco, pois os desaparecidos são resgatados, mas mesmo que não fossem, e que o casamento se consumasse, perduraria a visão machista do Sr. DeMille.

Mais agradável é "The affairs of Anatol", onde há mais bom humor na narração das situações em que se envolve o "cavalheiresco" jovem Anatol (interpretado pelo belo Wallace Reid num dos últimos papéis de sua breve carreira), sempre às voltas com a salvação das belas mulheres. Os intertítulos, apesar de continuarem longos, são sarcásticos: "O cavalheiro andante só quer fazer o bem, mas o que sua esposa pensa disso?"; "Se bem que ele não iria querer salvar a moça se ela não fosse tão bonita, e ela não iria querer ser salva se ele não tivesse os ombros tão largos", coisas do tipo. Além disso, as interpretações são bastante satisfatórias. Gloria faz uma mocinha recém-casada bem engraçada: frívola, tímida, ciumenta. Wallace Reid tem uns trejeitos hilários - destaque para a cena em que ele, depois de ser enganado por uma Dulcineia e abandonado na estrada pela esposa, olha para uns patos ("Greetings, brothers", diz o intertítulo). Bébé Daniels novamente aparece, e é uma das personagens mais interessantes dos silents de DeMille: uma vamp de aparências, que habita um misto de caverna do Drácula e pirâmide do Egito, e tenta vampirizar o bobo Reid no intuito de conseguir o dinheiro para a cirurgia de seu esposo.

No conjunto, a colaboração Gloria/Cecil deixou produções de inegável valor histórico, mas que não são vistas com muito prazer nos dias de hoje. Não me agrada o modo como ele pinta as mulheres: ou bonecas tolas, seduzidas por galanteadores baratos, ou mulheres descaradas, desejosas especialmente de limpar os bolsos dos homens. E pinta de modo grave, quase sempre com o dedo em riste. Por isso, me diverti tanto com Bébé na pele da mulher casada que amava o esposo e para quem o vampirismo era meramente uma carreira artística... Mas, por outro lado, nesses filmes DeMille pôde vestir Gloria com os trajes mais extraordinários do final de 10 e começo de 20. E que, na época, fizeram tremendo sucesso inclusive por aqui. Não posso deixar de pensar o quanto a descrição de uma das personagem do João do Rio teve influência da atriz: "O seu passo tango, o exagero das modas, que lhe davam o aspecto semipersa (...)" (abaixo e acima há uma porção de fotos da atriz usando trajes estravagantes).
Gostei muito de ver esses filmes, que esclarecem a leitura inteligente que Billy Wilder e Gloria Swanson fazem da época - e a leitura irritou DeMille, o qual rompeu relações com Wilder, segundo a trívia hollywoodiana. Mas prefiro Gloria em "Sadie Thompson", (1928) ou então no sonoro "It's tonight or never" (1931). Aliás, sobre este, meu preferidíssimo, ainda falarei futuramente.