Mostrando postagens com marcador Paris. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Paris. Mostrar todas as postagens

sábado, 11 de julho de 2015

“Minha Querida Dama” (2014)

A comédia romântica não morreu – é o que percebemos tão logo passamos os olhos por “Minha Querida Dama” (“My Old Lady”), um digno produto do gênero que arrebanhou legiões aos cinemas dos anos 90, iluminado por graciosidades como Meg Ryan (que é dela?), e que nos últimos tempos imiscuiu-se ao thriller-pipoca (ou ao drama-pipoca) para entreter as plateias adolescentes (definitivamente já passei da idade de “Crepúsculos”, “Escrito nas Estrelas” e companhia ilimitada). 
O diretor Israel Horovitz – também autor do roteiro e da peça teatral da qual ele é oriundo – comanda, aqui, uma trinca de ouro: Kevin Kline (Mathias Gold), Kristin Scott Thomas (Chloé Girard), e Maggie Smith (Mathilde Girard). Todos, na melhor forma.  

O enredo é repleto das peripécias inerentes ao gênero: Kline viaja à Paris no intuito de tomar posse da única herança que o pai lhe deixara, um casarão situado no coração da Cidade-Luz – necessitado de reforma, sim, porém, imenso, ajardinado, um daqueles imóveis cujos valores se multiplicaram esponencialmente graças à especulação imobiliária dos últimos anos. Uma herança não desprezível para o tipo looser, que chegara à maturidade sem nada nem ninguém para chamar de seu. 
No entanto, a herança se revelará um presente de grego, tão logo Mathias Gold percebe que seu pai adquirira o casarão por meio de uma transação truncada, segundo a qual ele deveria pagar prestações mensais à vendedora, enquanto (e apenas enquanto) ela vivesse. O problema é que, cinquenta anos após a formalização do negócio, Mathilde Girard, a vendedora em questão, ainda permanecia lépida e faceira, malgrados os seus 90 anos passados. A capitalização da herança não podendo se formalizar, o empobrecido Mathias Gold vê-se preso no mausoléu com a velhinha e a sua filha, obrigado, ainda, a pagar-lhes as tais prestações por meio das quais ele poderia, um dia, vir a ser dono do local. 
Acabei de espalhar uma série de spoilers que não parará por aí. Filmes como esse, sem grandes revoluções estéticas plano formal, sustentam-se em grande medida pelo cuidado com a amarração do entrecho e pelo carisma dos atores principais. 
Neste gênero de filmes, o herói de moldes Românticos (portanto, no qual se misturam faltas e virtudes) pena para subir a ladeira pedregosa rumo à elevação espiritual. Kevin Kline conduz a sua personagem com uma delicadeza comovente – é aplaudível quando um ator se entrega com tamanha hombridade a desvarios melodramáticos que historicamente são talhados às personagens femininas. Ele alça voo porque tem ao seu lado a ótima Kristin Scott Thomas: espelho invertido do herói, a quem as vicissitudes do destino transformam em sua meia-irmã de alma (e de outras coisas mais). Juntos, Kline e Thomas dão-nos a nostalgia do casal Meg Ryan e Tom Hanks. 
A história é agridoce. A fixação do eixo da trama em Maggie Smith atesta simbolicamente que o gênero envelheceu. O par romântico principal não esconde as suas rugas – elogiada por Mathias, Chloé afirma: “Eu não sou bonita. Eu sou quase uma velha.” É impossível não notarmos as marcas que a passagem o tempo deixou no rosto de Kristin Scott Thomas, ao contrapomo-la à sua etérea heroína de “O Paciente Inglês” (Anthony Minghella, 1996). Do mesmo modo, o grisalho Mathias, de barba sempre por fazer, passa anos-luz ao largo do bigodudo imponente que enreda Meg Ryan em “Surpresas do Coração” (Lawrence Kasdan, 1995) – comédia romântica que foi enterrada junto com a década de 90. E o que dizer, então, de Maggie Smith? Nossos ídolos das telas, imagens projetadas de nós mesmos, envelhecem como nós. 
A passagem do tempo é inexorável. Só os tolos a floreiam. Embora emoldurado pelas convenções do gênero, “Minha Querida Dama” tem o mérito de iluminar os dilemas daqueles que chegaram à maturidade sem realizar o ideal de “realização pessoal” que a civilização ocidental ferinamente apregoa. Sem, todavia, entregar-se ao desespero. Embora muito possa nos faltar, ainda restam os amigos, os diálogos surpreendentemente reveladores. E Paris... A sequência metonímica do filme é, para mim, o dueto operístico que a personagem de Kevin Kline, passada a tempestade, trava com uma soprano desconhecida, às margens do Sena. Há muitos modos de exacerbar a felicidade, mas não há nenhum melhor do que este em Paris, onde as ruas soam como música.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Entre Paris e Montreuil: Géorges Méliès e os irmãos Lumière

Saímos agora de Montreuil rumo ao n. 14 do Boulevard des Capucines, em Paris, retrilhando o percurso seguido por Géorges Méliès naquele 28 de dezembro de 1895, data de seu primeiro encontro com as “imagens em movimento” dos Irmãos Lumière – encontro responsável por deflagrar seu desejo de explorar o novo medium; que culminou com a construção do estúdio de vidro que vimos no post anterior.
Os franceses Auguste e Louis Lumière, naturais de Besançon, passaram parte considerável da vida em Lyon, lá realizando sua formação técnica e ingressando no negócio da família, uma usina fotográfica – Auguste no cargo de gerente, Louis no de físico. Louis foi o responsável por descobertas importantes, que tornaram possível o desenvolvimento do cinema, como o processo de placa seca e a perfuração do rolo de celuloide como meio de se avançar o rolo de filme dentro da câmera.
Os irmãos primeiro apresentariam as primeiras vistas cinematográficas em 10 de junho de 1895, num congresso de fotografia em Lyon. A primeira exibição pública do cinematógrafo se daria, todavia, em Paris, no Salon Indien du Grand Café, situado no subsolo do n. 14 do Boulevard des Capucines.
A sala preparada para a primeira sessão
Hoje os desatentos deixariam passar o endereço célebre.  A especulação imobiliária transformou a construção no Hotel Scribe. De lembrança do Café resta apenas a placa comemorativa pregada na fachada do hotel (os curiosos chegam rapidamente à rua saltando no metrô Opéra - ela fica a uma quadra do metrô, na direção oposta à da Opéra Garnier).





Em compensação, sobejam registros históricos daquele dia, organizado como um espetáculo a se ficar pra história pelos irmãos empresários que de bobo nada tinham. Fotografias do salão, pôster alusivo ao evento e um cuidadoso anúncio descritivo a apresentá-lo, circulado pela imprensa:

O programa inaugural do cinematógrafo

O Cinematógrafo: Este aparelho, inventado pelos senhores Auguste e Louis Lumière, permite que se colete, por séries de provas instantâneas, todos os movimentos que, durante determinado espaço de tempo, sucedem-se diante da objetiva, e que se reproduzam em seguida tais movimentos em tamanho natural numa tela, diante de uma sala inteira.
Os irmãos Lumière

Vendo do distanciamento temporal, a descrição surpreende. Todavia, o que para nós é o óbvio ululante era completa novidade para o público da época. 
Embora Edison já tivesse posto em circulação o seu kinetoscópio (maquininha que apresentava a tal reprodução do movimento em tamanho diminuto, sendo o espectador obrigado a olhar as lunetas para dentro da caixa onde as cenas eram apresentadas), nunca antes o público fora confrontado com imagens em movimento em tamanho natural.
Daí, por exemplo, a funda impressão causada por cenas aparentemente banais de empregados saindo da fábrica da família Lumière, de um bebê sendo alimentado (ou brincando com peixinhos vermelhos), do grupo de homens a transformar uma colcha numa cama elástica ou de gente a simplesmente circular pela rua.
A apresentação inaugural do cinematógrafo contou com dez vistas de aproximadamente 50 segundos cada (a pequena extensão dos rolos de celuloide impediam cenas mais longas), rodadas nos meses anteriores sobretudo em Lyon e nas cidades do arredor: 1- La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon, 2- La Voltige, 3- La Pêche aux poissons rouges, 4- Le Débarquement du Congrès de Photographie à Lyon, 5- Les forgerons, 6- Le Jardinier (l'Arroseur arrosé), 7- Le repas de bébé, 8- Le Saut à la couverture, 9- La Place des Cordeliers à Lyon, 10- La Mer (Baignade en mer) – abaixo, uma lista dos cenários escolhidos acompanha um mapa da região e o link para as vistas.
Fotograma de Le Saut à la couverture
Do conjunto, saltam aos olhos ao mesmo tempo o anseio de se alcançar a naturalidade na representação da vida – coisa que a fotografia, naquele momento já vulgarizada, cada vez mais se preocupava em alcançar – e a impossibilidade de se deixar de lado o âmbito da representação. O peso subjetivo da câmera ainda era imenso, para aqueles primeiros sujeitos que a captavam. Tanto que a melhor atriz do conjunto é a bebê Andrée Lumière, a filha de Auguste protagonista de Le repas de bébé, dada à sua a inconsciência do dispositivo fílmico. 
Na vista que toma os membros do congresso de fotografia a desembarcar em Lyon, metade do grupo segue pelo lado direito, metade pelo esquerdo. Todos olham para a câmera. Os funcionários da firma dos Lumière não parecem menos posados, naquele porejar superabundante de vida que de repente invade o quadro (La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon): em questão de segundos cachorros, ciclistas, cavalos, carroça e centenas de pessoas surgem e desaparecem do enquadramento sem deixar vestígios.
Fotograma de Le repas du bébé.
Andrée Lumière morreria em 1918 aos 24 anos vítima da endemia de gripe espanhola
Importava, naquele primeiríssimo tempo do cinema, justificar as palavras que o definiam. O registro do movimento vira preocupação primeira. Gente a passar, coisas a passarem, a vida a passar. O cinema espacializava pela primeira vez a passagem do tempo. A tela branca torna-se um microcosmo de mundo, janela a partir as pessoas observavam a si e aos semelhantes sem se serem vistas. Máquina miraculosa, a guardar para a eternidade as caras, as conquistas, as imperfeições, as pequeninas vaidades do homem, aquela eterna criança que não tinha vergonha alguma de se ver retratada em atitudes infantis como a de dar cambalhotas numa cama-elástica improvisada...
Qual não teria sido a reação de Méliès diante da máquina que transformava o homem e o seu cotidiano em espetáculo?
Melies - L'homme à la tête de caoutchouc (1901)
Conhecemos apenas os desdobramentos do impacto causado por aquela séance inaugural do cinematógrafo sobre o prestidigitador: Imediatamente aparecerão vistas cinematográficas produzidas por Méliès. Vistas a fazerem uso pródigo do que ele descobrira quiçá acompanhando a reação da plateia aglomerada no Salão Indiano do Grand Café: Desde o princípio o artista investirá na invenção de efeitos no intuito de agradar aqueles homens que adorava aparecer. 
Suas trucagens potencializarão os resultados conseguidos pelos Lumière na aurora do cinema: cabeças humanas miraculosamente ganharão a propriedade da borracha – encolherão, aumentarão – ou então serão temerariamente guilhotinadas só para se transformarem em notas musicais; multidões citadinas inopinadamente se metamorfosearão diante dos olhos do público (Méliès é reputado como o inventor da trucagem, que ele teria descoberto por acaso, devido a um problema técnico). 
Mais que inventar um mundo mágico, Méliès materializa para o público aquilo que, no mundo, escapava da esfera da racionalidade. Oferece, como espetáculo leve, à bon marché, um homem feito não só de carne como também de sonhos - homem denso que é paradoxalmente feito de sombras. Homem depois multiplicado no estúdio de Montreuil, na centena de filmes de ficção a usarem e abusarem dos artifícios anunciados pelas vistas dos irmãos Lumière apresentadas primeiro ao público naquele histórico 28 de dezembro de 1895.

Os irmãos Lumière no mapa: endereços onde foram rodadas/apresentadas as primeiras vistas e (hiperlinks sobre os títulos dão acesso aos vídeos das mesmas):

1- La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon (situada no 25 da rua Saint Victor, em Lyon – França)
2- La Voltige (Lyon, Rhône, Rhône-Alpes – França)
4- Le Débarquement du Congrès de Photographie à Lyon (Neuville-Sur-Saône, Rhône, Rhône-Alpes)
6- Le Jardinier (l'Arroseur arrosé)
10- La Mer (Baignade en mer)



* Está no mapa igualmente "Entré d'un train en gare de la Ciotat" (Entrada do trem na estação de Ciotat), uma das mais célebres vistas dos irmãos, rodada em 1897. La Ciotat fica no extremo sul da França, na Provence, a um par de dezenas de quilômetros de Marseille.


Endereços úteis:

Site sobre a primeira séance pública do cinematógrafo
O Salão Indien du Grand Café na Wikipedia

sábado, 6 de abril de 2013

Entre Paris e Montreuil: Georges Méliès e “The Queen of Montreuil”

Queen of Montreuil, 2012
tão Méliès esse fotograma...
Paris transpira cinema. Centenas de salas de projeção espalhadas pela cidade, oferecem séances para todos os bolsos e gostos: sessões promocionais a 3,50 euros são continuamente apresentadas pelas grandes redes, que dispõem do irresistível abonemment mensal ilimitado e não raras vezes incluem clássicos da Sétima Arte em seu programa (a MK2 ofereceu meses atrás um cardápio extenso de Chaplins); clássicos e novidades de todos os cantos do mundo visitam as salas de projeção, destaque para a produção francesa, que sempre ocupa lugares importantes nos box-office semanais. 
Como no Brasil... 
Não adiramos, no entanto, à xenomania acrítica. O imposto obrigatório redirecionado à produção cinematográfica joga no mercado com alguma frequência lixo cultural. Porém, não poucas vezes o incentivo estatal viabiliza trabalhos interessantes. Como esse “The Queen of Montreuil”, novinho em folha, trabalho luminoso de Solveig Anspach com Florence Loiret Caille, Didda Jonsdottir, Ulfur Aegisson, Eric Caruso e uma lista de nomes que até outro dia me eram ilustres desconhecidos. 
Como trombei justamente nele, na enxurrada que semanalmente altera a programação das salas? Foi durante uma visita à Montreuil, cidadezinha juste à côté de Paris onde Georges Méliès fez construir no fim do século XIX, no n. 3 da rue François Debergue, o primeiro estúdio cinematográfico do mundo (a história do mágico-cineasta é contada no recente “A invenção de Hugo Cabret”, de Martin Scorsese - resenhado aqui - , ao qual nunca é demais tecermos loas). 
O estúdio de vidro de Méliès em  Montreuil
Embarquei direção Mairie de Montreuil (parada final da linha 9 para os aventureiros) no intuito de pagar um óbvio tributo ao artista francês; trombei com um prédio de apartamentos que em nada lembrava o estúdio de vidro que o criativo cineasta construiu para aproveitar ao máximo a luz solar – estúdio cuja réplica pertence à coleção permanente do Museu da Cinemateca Francesa, que possui extenso conjunto de seus objetos e de objetos usados no filme de Scorsese, vários deles em exibição atualmente (acorde cedo no domingo que a visita é gratuita até às 13 hrs nesse dia...). 
Apenas uma placa indicativa lembra o outrora ilustre endereço. Mas o cinéfilo de carteirinha não teme vasculhar escombros em busca da aura do cinema. Um século atrás ali pisara Méliès, a transformar películas de celuloide em magia, desdobrando na tela branca o ofício de prestidigitador que exercera até então, nas soirées do Théâtre Houdin. 
Montreuil não parece estar colada em Paris, tal a simplicidade de suas residências e estabelecimentos comerciais. Pouco se afasta das cidadezinhas de interior do Brasil. O orgulho do passado mal se deixa entrever, na placa comemorativa colocada pela mairie, no complexo cinematográfico batizado segundo o morador ilustre ou no Centro de Informações Turísticas (fechado pela manhã nos dias de semana, o que denuncia a escassez de visitantes). 
3 François Debergue, Montreuil
As redondezas do antigo endereço de Méliès
Porém, se a lembrança do passado se esvai, a dedicação presente à Sétima Arte continua pulsante. “The Queen of Montreuil” era destaque da revista do complexo. 
Nada mais justo, porque o filme faz uma imersão nos meandros da cidade, lá muito além do que o metrô alcança. Imersão entre pitoresca e poética. A rainha do título é Agathe, jovem viúva que retorna do estrangeiro para a cidade com o objetivo de dispor das cinzas do marido morto num acidente automobilístico. Quererá o acaso que ela encontre, no setor de informações do aeroporto, uma senhora islandesa sem pouso definido e seu filho adolescente. 
A dupla suis generis terá papel preponderante para que Agathe sobreviva ao luto. 
Ambos são hippies calorosos. A cidade de Montreuil nos é mostrada em boa medida pelos seus olhos. Se a visada tem um tanto de amelipolinesca (acreditem, o nome “Amélie Poulain” é flexionado por aqui...) - as historietas vividas pelos habitantes da cidadezinha observadas a partir da grua onde a senhora passará a trabalhar; o périplo de uma foca abandonada no Bois de Vincennes... - ela ganha ancoragem na realidade por meio da figura da protagonista, desempenho matizado e tocante de Florence Loiret-Caille. Sua agridoce Agathe exala sinceridade: na sua dramática batalha para vencer o luto; na sua necessidade de calor humano, que a abre para doar-se aos desconhecidos. 
Sem ser uma obra-prima, “The Queen of Montreuil” oferece um sopro fresco de ar em meio à produção cinematográfica francesa, que apesar de vasta padece de problemas bem conhecidos de nós, brasileiros: a proliferação de comediazinhas românticas fáceis e pouco inspiradas, a se contentarem meramente com a reprodução dos pontos turísticos da cidade-luz. Arejamento em boa medida beneficiado – creio eu – pela locação escolhida. O cinema daqui bem que poderia criar o hábito de tomar o metrô rumo aos banlieues

* Próximo capítulo: Paris e os irmãos Lumière.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Leslie Caron no Quartier Latin (8/1/2013)


A mostra "Paris vu par Hollywood", que encerrou carreira no Hôtel de Ville em meados do mês passado, ainda rende frutos. Diversos cinemas do Quartier Latin continuam a reverberar as clássicas canções norte-americanas que embalam gerações há 60, 70 anos, construindo no escuro da sala de projeção uma Paris afável, brilhante e musical. Impossível, depois de sermos embriagados por uma das stravaganzas da MGM, as ruas de Paris não passarem a soar o leitmotiv que serve de combustível aos passos do pintor Jerry de “An American in Paris”, ou o tema romântico que embala o idílio dele e de sua Lise às margens do Sena – grandes Gershwins, parisianíssimos americanos –, ou o “Bonjour Paris” com que Audrey, Freddy e Kay cantam os pontos turísticos da cidade. A mágica da projeção faz com que, caminhando por Paris, reencontremos a Paris de estúdio inventada por Hollywood. 
"An American in Paris" (1951)
A Rue Champolion, ruela do Quartier que abriga a homenagem, mal parece cruzar a movimentada Rue des Écoles e estar a dois passos dos concorridos Boulevards Saint Germain e Saint Michel. Apertada, a ponto de a fila de cinéfilos que a tomam antes das sessões impedirem a passagem dos carros por ela, parece mais é saída de um dos storyboards que engendraram o magnífico “An American in Paris” – encontro cabal entre ficção e realidade. Foi num desses cinemas da Champolion, a "Filmotheque du Quartier Latin", que Leslie Caron deu o ar da graça no último dia 8, numa séance (pra lá de) especial do filme em questão. 

Rue Champolion
Paris-cenário. Os leitores podem imaginar o que é para uma apaixonada pelo cinema clássico ver Mme Caron en personne!? Deixemos de lado, então, os desnecessários adjetivos e detenhamo-nos no ponto culminante, sua apresentação de “An American in Paris” (Un Americain à Paris/ Sinfonia de Paris, 1951). Leslie – licença agora para a intimidade tipicamente americana, perfeitamente cabível para o assunto em questão – é de uma lepidez que de modo algum acusa seus 81 anos. Longilínea, apesar do seu pouco menos de 1,60 m., elegante, desdobrou o charme físico em uma hora de um bem-humorado e profundo rememorar de sua carreira americana, focado neste filme que a lançou no cinema e no mercado mundial. 

Narrou os bastidores de seu encontro com o Gene Kelly: o primeiro desencontro (já que ela, adolescente primeira-bailarina de um teatro parisiense, fora embora apressada tão logo terminara seu espetáculo visto por Gene, “como toda boa moça da época”); o posterior encontro, já contratada pela MGM, dentro da qual ela descobriria que, atriz iniciante e completa desconhecedora do inglês, faria nos Estados Unidos “apenas” um dos papéis principais daquele que era vendido como o “maior musical de todos os tempos”. Uma vez nos EUA, conta a atriz que se iniciou no curso de inglês pelas mãos de Shakespeare, lido, relido e memorizado. 
Escolha suis generis, se considerarmos o gênero popular em que ela seria iniciada. Escolha coerente, no entanto, constatamos ao olharmos a carreira de Leslie Caron em retrospectiva: além de graciosa parceira de monstros sagrados da dança como Gene Kelly e Fred Astaire, a atriz acumula trabalhos dramáticos e cômicos (dentre os quais eu ressalto – porque adoro – sua sátira de Alla Nazimova em "Valentino", 1977, que pode ser visto aqui). 
Em sua fala, Leslie esquadrinhou os bastidores da produção de “An American in Paris”: as longas horas de trabalho de segunda a sábado; sua relação com Oscar Levant, que ela afirma ter sido desde o princípio amistosas, (apesar do que sabemos sobre o humor do ator/pianista); os encontros do elenco aos domingos, onde por diversão rodavam filmes tétricos (dos quais o hipocondríaco-pessimista Levant se recusava a participar); a timidez de Vincente Minnelli e a direção segura que Gene Kelly dava aos seus diálogos de aprendiz de inglês. 
Estendeu-se sobre a relevância do papel de Kelly para o resultado final da produção. Coreógrafo, ele era o responsável igualmente por posicionar a câmera nos números musicais. 

Como Alla Nazimova em "Valentino" (1977)
Abertas as perguntas, Leslie Caron respondeu sem reservas e em detalhes a tudo o que lhe perguntaram. Falou com carinho sobre “Gigi” (1958), feito quando ela “finalmente sabia representar”, uma vez que nessa altura já havia tomado anos de cursos de atuação – disse ter se sentido tola ao ver-se Lise, na tela, pela primeira vez, a modesta! Lembrou “Valentino”, “que muitos de vocês não devem conhecer”. E neste rebaixamento de tom menos próprio à diva que ela é que às mocinhas como Lise e Gigi que ela foi (e para todo o sempre será) nas telas, brincou sobre o sucesso que anda fazendo no Quartier Latin (o "Reflet Medicis", também na Rue Champolion, exibe uma versão restaurada de Gigi): “Ah, mas isso não vai durar muito.” 
Neste sentido, a cereja do bolo foi pra mim sua resposta a um questionamento sobre o star system. “Hollywood, de certa forma, desdobrou nas telas a personalidade de seus artistas.” Isso, dito com tanta sinceridade por ela no contexto que acabei de narrar, bota-me no mínimo a repensar o papel da capital do cinema na construção dos mitos das telas. Porque não considerar que a natureza tenha, em alguns casos, se sobreposto às pinceladas da Max Factor e às canetadas dos departamentos de marketing dos estúdios? Parece ter sido esse o caso de Leslie Caron. 


Na ocasião do encontro, Mme Caron assinou sua biografia “Une Française à Hollywood”, versão francesa do original em inglês (quem quiser pode encontrá-la aqui).

"Gigi" (1958)

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Seguindo os passos de Sabrina

Pont des Arts

I used to walk everywhere in Paris. Along the Seine, there’s a four-mile walk... that goes from Isle Saint Germain to the Pont d’Austerlitz. It takes you past all the bridges of Paris... twenty-three of them. 

Quem fala não sou eu. É a Sabrina de Julia Ormond (“Sabrina”, 1995), com a qual já me encontrei seguramente pelo menos cem vezes, e que agora reencontro mentalmente sempre que faço uma dessas long walks por aqui. 

Flores num dos marchés do 12e.

Alimentando as gaivotas do Jardin de Luxembourg
Paris é cidade talhada à promenade. Os jardins sempre floridos – mesmo com a agora constante queda da temperatura – convida-nos a ganharmos as ruas, assim como os marchés a céu aberto, presentes em todos os quartiers, os estupendos bulevares haussmanianos, triunfos da engenharia de meados do XIX, e as ruelas que os costuram, repletas de marcas de um passado muito recuado. Restos da cidade primordial e medieval ainda perduram na Île de la Cité, como paredes de igrejinhas e árvores quadricentenárias. Saindo dali pela Pont de l’Archevêché, em direção à rue Monge, lá para as bandas do Quartier Latin, o Boulevard Saint Germain quase que dá as mãos às Arénes de Lutece, centro de diversões da Paris (ainda “Lutécia”) do século I - o monumento da cidade moderna a dois passos do monumento da cidade antiga; isto é Paris.
Quem preferir seguir os passos de Sabrina, como eu fiz domingo passado, pode saltar no metrô Gare d’Austerlitz, em direção ao Sena, e caminhar por ele. Nem é preciso de mapa. Cerca de um quilômetro e meio de graciosas lojinhas de livros e postais antigos, de lindas pontes, de weeping willows debruçados sobre o rio, de músicos de rua e de um rio iluminado separam a Pont d’Austerlitz do fim da Île de la Cité. O marco físico é a Pont Neuf, a primeira da cidade. Se mais alguém além de mim desejar conhecer o quartier de Sabrina, é só seguir mais uns 200 metros até depois da Pont des Arts e dobrar a Rue Bonaparte. A primeira travessa à esquerda é a Rue de Beaux Arts, ruela repleta de antiquários. No n. 13, residência da moça, funciona o hotel onde Borges constantemente se hospedava, e onde morreu Oscar Wilde... 

13 rue de Beaux Arts
Sabrina habita Saint Germain, um dos quartiers mais valorizados de Paris, a 500 metros do Boulevard e uns poucos passos mais da Église de Saint Sulpice e do Jardin de Luxembourg. Pergunto-me como a filha do chofer poderia pagar por isso... 
"Sabrina"
Mas continuemos a segui-la, agora até o seu trabalho. Saindo da Rue de Beaux Arts, novamente em direção ao Sena, cruzamos a Île de la Cité pela Pont Neuf, até o Hôtel de Ville – o mesmo em que ainda acontece a exposição “Paris vu par Hollywood”. Uns poucos passos mais pela rue du Rennard e chegamos ao Centre Pompidou, cuja fonte modernosa serviu de cenário para um dos ensaios da Vogue, revista na qual a moça trabalhava. É lá que ela conhece o fotógrafo que a ensina a enxergar Paris pelos olhos da  câmera, e a ajuda a reconfigurar o seu olhar para o mundo. 
Fonte do Centre Pompidou, hoje

"Sabrina"
Sabrina paulatinamente deixa de ser a jovenzinha acanhada que morava sobre a garagem e sobre as árvores dos Larrabees, sempre apartada dos acontecimentos, para se tornar a mulher plenamente imersa na cidade cosmopolita, agora sua passarela, sua tela, seu tema. No ensaio fotográfico que tem como cenário a Tour Eiffel ela já enverga o hábito da parisiense típica, terninho e sapatos pretos e camisa branca, sobriedade e elegância a toda prova. Sob a chuva fina, também tão constante por aqui, preparará o parisianíssimo set para os amantes temas no ensaio: a névoa, o guarda-chuva e a echarpe vermelha solta ao vento – ponto de sedução em meio à reinante sobriedade ambiente. Sob os céus de Paris, a chofer’s daughter encarna cada vez mais as personagens glamourosas que ajuda a produzir para a Vogue
De volta ao apartamento de Saint Germain, a jovem que aprendera a enquadrar fotograficamente a cidade coloca diante da objetiva o filtro cor-de-rosa de Edith Piaf – que é surpreendentemente o filtro natural de Paris, mesmo de noite, mesmo de madrugada, mesmo sob a névoa desses dias cada vez mais frios. 

Across the street, someone is playing “La Vie en Rose.”. They do it for the tourists... but I’m always surprised at how it moves me. It means seeing life through rose-colored glasses. Only in Paris, where the light is pink... could that song make sense... 

Torre vista da altura da Pont Bir-Hakein
Sabrina escreve para o pai, mas suas palavras são, agora, também um pouco minhas. 
Descobri-me, em Paris, uma exímia escrevinhadora de cartas, uma ouvinte apaixonada de Piaf, uma fã entusiástica das longas promenades – a do domingo passado refez o trajeto do Sena, da Passerelle Simone de Beauvoir, ao lado da Cinemateca, até a Rue des Eaux, um pouco depois da Tour Eiffel, passando por um Jardin de Tuileries em festa, com direito a algodão doce e a roda gigante. 8,5 quilômetros de um rio luminoso e de gente entusiasmada andando de bicicleta, patinetes, patins, a pé. 
Quanto meus passos não se devem à “Sabrina”, que vejo religiosamente desde menina, quando a única viagem que podia fazer por Paris era a proporcionada pelo cinema? A cidade vivida em sonho durante tantos anos continua, para mim, a ser uma cidade mais ou menos sonhada, vista com olhos moldados pelo cinema...