domingo, 30 de junho de 2019

Elīna Garanča na Sala São Paulo (22 e 24 de junho de 2019)

Sala São Paulo em polvorosa no sábado e na segunda passados, devido à aparição brasileira, por obra do Mozarteum, sob a regência do maestro Constantine Orbelian e com o acompanhamento da Orquestra Acadêmica do Mozarteum, de Elīna Garanča, excepcional mezzo soprano letã que vem arrebatando os amantes de ópera por suas abordagens primorosas de personagens como o Octavian, do “Cavaleiro da Rosa”, de Strauss; a princesa Eboli, de “Don Carlos”, de Verdi, e Dalila, de “Samson et Dalila”, de Saint-Saëns – fruídos tanto nas salas de concerto quanto por meio das plataformas digitais (graças às variadas modalidades de divulgação, do live-streaming aos canais virtuais das grandes casas de ópera) e do cinema (a exemplo do Festival "Ópera na Tela" – sobre o qual já falei aqui, comentando, aliás, a montagem de “La Favorite” da Ópera da Baviera, na qual Garanča desempenhou a personagem-título). 
O público brasileiro (adictos de diversos Estados excursionaram para verem-na) realizou-se frente à mistura de profissionalismo, maestria vocal, graça e beleza (permeados por lampejos de ironia) que porejaram da artista, nessas duas históricas performances – no sábado houve mesmo uma sessão de autógrafos, tendo a artista simpaticamente atendido toda a serpenteante cauda que se formou no hall dos Arcos da Sala, para aferir se aquela aparição tinha mesmo figura humana ou se era um anjo caído do céu. 
Se era anjo, era um estranho anjo de rosto anguloso e olhos inquietos, muito pouco celestial malgrado a sua alvura barroca, que se latinizara por obra de uma porção de músicos europeus que cantaram em versos os abrasadores sóis dos países latinos do sul – quer por viverem-nos na pele, quer por sonharem-nos: os franceses Offenbach, Bizet e Saint-Saëns, os italianos Mascagni e Cilea, e os espanhóis Falla, Barbieri e Carné. Dentre os bis, surgiu transmutado o francês (pasmem) tão latino-americano Carlos Gardel, e seu cavalo de batalha “El Día que me Quieras”, permeado pela mistura de segura gravidade e doçura da voz de Garanča – o conhecido tango elevado a uma insuspeitada altura. 
O programa do concerto trazido a três países da América Latina – Argentina, Brasil e Peru – encampou as ficções de latinidade criadas pela arte entre fins do século XIX e princípios do XX (confesso que já fui mais crítica dos estereótipos do que sou agora que nós, os supostamente afáveis brasileiros, nos vemos imersos em disputas intestinas; vendo emergir ódios mortais dos lugares menos prováveis...). Já que a realidade é sombria e amarga, fiquemos, pois, com essa ficção de terra luminosa e alegre com que nos brindou a soberba Elīna nesses dois milagrosos dias, no palco da Sala São Paulo. 
Estruturalmente, o concerto dividiu-se, grosso modo, entre o erudito e o popular: a ópera séria e os chistosos gêneros musicais de palco, e, por fim, à canção eminentemente popular de cafés-concertos às telas do cinemão. 
A sua primeira parte voltou-se às árias de óperas italianas e francesas, a flertarem ora com o verismo, ora com o romantismo, ora com o exotismo: da ária com que Santuzza chora a perda do homem que ama, desencaminhado pela ex-amante (Voi lo sapete, o mamma, da “Cavalleria Rusticanna”, de Mascagni), à profissão de fé da modesta primadona Adriana Lecouvreur (Io son l’umile ancella), ao diametralmente oposto desejo incontrolável de sua rival, a Princesa de Bouillon, pelo homem que ambas amam (Acerba voluttá), à simulada declaração de amor de Dalila por Sansão, imediatamente anterior à destruição do pobre e devoto homem, pelas mãos da própria moça (Mon coeur s’ouvre à ta voix). 
Convergiram na primeira parte variadas personagens de um conjunto de óperas sérias, as quais sucederam a "Ouverture" da opereta de Offenbach “Orfée aux Enfers”, que abriu o concerto – abertura insólita, que não estabelece diálogo com as obras apresentadas, servindo para introduzir o público num estado de espírito efusivo desnecessário (a presença de uma cantora do naipe de Garanča no palco da Sala já sobe a temperatura do local, não sendo necessário um apoio popularesco para tanto). 
A segunda parte do concerto consolidou o antevisto pela Abertura da opereta de Offenbach. Como o programa prenunciava, tal parte foi dedicada a “canções e óperas de inspiração espanhola”, melhor dizendo, a uma seleção de coplas de zarzuelas de relevância mais histórica que estética, como “El Barberillo de Lavapiés” e “El Niño Judío”, circundadas pelo par de árias inolvidáveis “Habanera” e “Chanson Bonhéme”, da maravilhosa opéra-comique “Carmen”, de Bizet. 
Historicamente, a ópera séria, fruída nos Teatros de Ópera (aí se encaixa também a “Carmen”, embora se denomine comique), conviveu com uma variedade dos denominados gêneros “cômico-musicados”, de faceta eminentemente popular, exibidos majoritariamente em salas de espetáculos de menor relevância, os quais se caracterizavam pelo riso fácil, pela pulsão paródica, pelo comentário aos fatos políticos e temas cotidianos contemporâneos à escrita do texto, pela ambiguidade vocabular: melodias para serem assoviadas por todas as classes sociais, do povaréu à burguesia, pelos quatro cantos da cidade. Música risonha – minha mãe comparou-a ao repertório das bandas marciais, ao assistirmos à paradigmática zarzuela "La Gran Vía", de Chuenca e Duran, enquanto eu me preparava para escrever este artigo. 
Efetivamente, a zarzuela trata-se de uma música urbana, nascida com a remodelação das grandes cidades segundo moldes franceses, comparada com a nossa popularíssima “revista de ano”, já que colocavam no palco a cidade em mutação, alegorizando os fatos do ano (em "La Gran Vía", como em “O Bilontra”, do nosso Arthur Azevedo, as ruas e as moléstias sociais são personificadas) e abrindo-os, como uma revista em papel, aos olhos do público. O tempo de marcha, tão presente nessas obras, repõe-nas na cidade em movimento desta virada de século, num só tempo sequiosa e temerosa do progresso urbano que tudo acelerava. Suas personagens tipificadas e episódicas, caricaturas sociais, têm em comum com a densa “Carmen” apenas a sua nacionalidade: se sobra graça à pomba-rola Paloma, que se apresenta tanto ao público quanto ao enamorado Lamparilla (paródia do Fígaro da ópera-bufa “O Barbeiro de Sevilha”, de Rossini) na "Canción de Paloma", entoada por Elīnafalta-lhe transcendência. 
Sobra, no entanto, transcendência à Elīna Garanča, deslumbrante em meio a um repertório de qualidade estética tão variada. O repertório oriundo do cancioneiro popular e da comédia-musicada impregnou o seu timbre de mezzo de um frescor inesperado, ao mesmo tempo em que a sua densidade dramática esteve toda presente na primeira parte do programa (com destaque absoluto para a sua interpretação da ária para soprano Io son l’umile ancella, entrega arrebatada, num só tempo potente e dócil, ao gênio criador). 
Ao atravessar um largo escopo, do baixo-cômico ao dramático, Elīna Garanča propiciou-nos um festim para os ouvidos, demonstrando-nos que nós, os educados espectadores do século XXI, temos muito mais em comum do que desejaríamos acreditar com os públicos dos circos e demais palcos populares do século XIX, aos quais o éthos exibicionista dos artistas líricos tanto encantavam. 
Malgrado a ausência de organicidade da maioria desses programas cantados por estrelas eminentes dos palcos estrangeiros que se apresentam entre nós – as quais se realizam mais plenamente no interior de espetáculos operísticos –, temos de comemorar muito a possibilidade de nos encontrarmos empiricamente com vozes que, não fossem iniciativas como a do Mozarteum Brasileiro, apenas nos chegariam por via digital.

Chanson Bohème, "Carmen"

quarta-feira, 19 de junho de 2019

84 Charing Cross Road/ Nunca te vi, sempre te amei (1987): amor às letras entre os Atlânticos


A proximidade afetiva, o companheirismo e a identidade espiritual precisam às vezes – hélas –, conviver com o distanciamento físico. Filme que apanha modelarmente uma relação do tipo é “84 Charing Cross Road”, ou, entre nós, brasileiros, “Nunca te vi, sempre te amei”, de David Hugh Jones, sobre o qual aqui falo a partir de agora. 
A obra ficcionaliza sobre um fato real: a troca de correspondência ocorrida entre fins da década de 1940 e fins da década de 1960, entre a nova-iorquina Helene Hanff e o londrino Frank P. Doel, co-proprietário da Marks & Co., “antiquário de livros” da cidade. 
84 Charing Cross Road, 1969.
A Helene Hanff histórica deu-se conta do traço romanesco da relação, publicando a este respeito, em 1970, a obra homônima que seria, em 1975, transformada em episódio da série radiofônica “Play for Today”, da BBC, tornando-se, por consequência, obra teatral exibida na Nova Iorque de princípios dos anos 80 e, enfim, obra fílmica. 
Malgrado um mundo de avanço tecnológico pareça separar tais correspondentes de nosso atual contexto, certas coisas permanecem iguais. A devoção passional às letras como forma de aproximar pessoas com traços característicos muitas vezes dessemelhantes, situadas a um oceano de distância, remonta ao menos ao século XIX: daí às muitas correspondências trocadas entre o Brasil e a Europa, por letrados que habitavam os dois extremos, muitas vezes mantidas na esfera particular, outras tantas publicizadas em volumes ou nas páginas de jornais. 
O romance de Helene Hanff flagra esta dobra do tempo, da correspondência pessoal cuidadosamente burilada ao e-mail despojado; da morosidade do correio transatlântico à instantaneidade das mensagens virtuais. 
O filme tem um sopro nostálgico não apenas porque remete à desolação restante do pós-guerra, e à reconstrução maior ou menor das nações que a enfrentaram, mas porque pressente os câmbios que viriam a ocorrer não muitos anos mais tarde ao tempo histórico de seu lançamento: o computador, já então uma novidade nos anos de 1970, data da escrita da obra literária, é uma realidade cada vez mais presente quando o filme é lançado. Não muito mais tarde, a “World wide web” já estaria vulgarizada, não apenas apressando as trocas interpessoais como criando ferramentas como os grandes e impessoais antiquários/sebos virtuais, os quais acabariam por inviabilizar o nascimento de uma relação como a de Helene e Frank. 
A obra fílmica recupera textualmente trechos do romance – o qual, por sua vez, cita, sabe-se lá com que grau de acuidade (falamos aqui de apropriação da realidade pela arte), as cartas trocadas entre o casal – mais tarde, entre Helene e todos os funcionários da loja, com os quais ela estabelecerá uma relação de crescente pessoalidade. Abre-se com um plano de Helene (Anne Bancroft) chegando a Londres, sua comoção desde a viagem aérea à circulação de táxi pelas ruas da cidade, a chegada ao hotel ecoada em off por excerto da primeira carta enviada à Marc & Co, tendo agora sob os pés a Londres que até então ela conhecera em letra de forma: “Seu anúncio na Saturday Review of Literatura diz que vocês são especializados em obras fora de catálogo. (...)”. 
Um flashback dá-nos conta das indagações vãs feitas por Helene num passado distante, nas livrarias nova-iorquinas, no intuito de encontrar edições de obras inglesas fora de catálogo, e de seu consequente contato com a Marks & Co., sob a sugestão de um livreiro da cidade. A sua chegada física a Londres, seguida da ida ao já familiar 84 Charing Cross Road, onde se situa a tal loja, desdobra-se em melancolia frente ao abandono em que se encontrava o local – às estantes despidas dos livros que a conectaram com o país longínquo. 
Um belo prólogo que prepara o espírito do público para uma possível história de amor, levando-o a antegozar a possível chegada de Frank (Anthony Hopkins), no desfecho da obra, entre os escombros da livraria, à la “Aconteceu naquela noite”. 
No entanto, no terço final da obra, e do modo menos altissonante possível, ficamos sabendo que o encontro seria impossível: certa carta dá à mulher a notícia do falecimento recente de Frank. O esqueleto da livraria torna-se, portanto, não ponto de encontro, mas túmulo, repositório derradeiro de uma história de caráter pessoal e de uma era. Sua visita, que na visada de Helene se deve à resolução de “negócios inacabados”, corresponde ao encontro derradeiro com os corpos defuntos no intuito de, a partir de sua materialidade, vivenciar-se o seu luto. 
Malgrado a melancolia de fundo, a história é bafejada por uma aragem leve. Trata-se, para além de uma história de amor – no sentido lato –, de um romance de formação conduzido com habilidade, cuja protagonista é Helene. 
Observa-se, neste sentido, a dicotomia entre o amadurecimento paulatino físico e intelectual da mulher, par a par com a sua ascensão profissional, desenhados pela obra, e as permanências vividas por Frank, constantemente entre a livraria e a casa da família. Dicotomia refletida sob os panos de fundo onde ambas as personagens circulam, o vicejante Upper West Side da Nova York dos anos de 1940-1960, cidade que apenas indiretamente sentiu os efeitos da Guerra (embora a fotografia assinada e emoldurada de um oficial, no apartamento de Helene, denote que ela sentira na pele os efeitos da conflagração), pintado por uma paleta saturada de cores; e a Londres do pós-guerra, a enfrentar severos racionamentos de gêneros alimentícios e vestuários – a Londres cujo principal bem era o espírito, conforme Helene de saída percebera – desenhada em tons terrosos. 
O distanciamento físico é coberto pela proximidade afetiva que emerge das cartas – visível no programa de rádio da BBC dedicado à obra, no qual as cartas ocupam um indiscutível primeiro plano (um excerto pode ser escutado aqui), o suporte radiofônico dando relevo ao caráter confessional do gênero; e é potencializado pela materialidade do cinema, pelo seu poder de sintetizar o tempo e o espaço, aproximando, na tela, os indivíduos afastados por milhares de milhas. 
A obra fílmica lida com questões intrincadas com tocante leveza. Vejo que o seu diretor visitou de passagem o cinema, concentrando-se na televisão. Certas estratégias fílmicas, como o direcionamento constante dos atores à câmera e ao espectador – modernas até hoje no tocante à cinematografia, por romperem com a ilusão fílmica –, são características incontornáveis de variados gêneros televisivos desde a sua gênese. 
Essas quebras de ilusão impedem que o filme descambe ao dramalhão ou torne-se um drama irrespirável. Os solitários últimos momentos de vida de certo velho funcionário da Marks & Co., as latas de conserva, presentes de Helene, recebidas com emoção pelos funcionários da loja que há tempos não viam certos alimentos, a impassibilidade esboçada pelo rosto de Frank frente aos dissabores da vida servem de planos de fundo às trocas espirituais entre os dois amigos que o Atlântico separava – primeiro plano absoluto da obra. A arte serve de ancoradouro frente ao mundo que se esboroa: organizando-o, fazendo emergir os seus amargores e doçuras, apontando, através da sua materialidade, para caminhos que o torvelinho da realidade torna invisíveis.