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quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Os melhores e piores de 2014 (III)

Enfim, a última parte da nossa lista de destaques cinematográficos do ano passado. Agora, os europeus. 
A começar pelo já aqui lembrado “Mil Vezes Boa Noite” (“Tusen ganger god natt”, 2013), de Erik Poppe, coprodução da Noruega, Irlanda e Suécia protagonizada pela sempre excelente Juliette Binoche, secundada por Nikolaj Coster-Waldau. Binoche consegue, como Marion Cotillard, a despersonalização completa. Ela é a personagem que desempenha. Sempre. Já o disse aqui anos atrás, na resenha de “Cópia Fiel”. Vejam-na aqui, perdida entre os vários idiomas que não são dela (o inglês, o norueguês), metáforas do apatriamento vivido pela fotógrafa de guerra – mais estranha ao seu lar que às longuras ásperas que ela registra. 
Outro grande filme, também coprodução (Dinamarca, Alemanha, Bélgica, Reino Unido e França) é “Ninfomaníaca” (“Nymphomaniac”, 2013), obra de fôlego de Lars von Trier, dividida em dois volumes, com os ótimos Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgård, Stacy Martin e Uma Thurman. Como “A praia do futuro”, a reputação da obra a antecedeu. Ela, todavia, também vale muito mais que os buchichos que gerou devido ao tema e à obscenidade de várias sequências. 
A Itália nos presenteou com uma obra-prima, “A grande beleza” (“La grande bellezza”, 2013),magnífico filme de Paolo Sorrentino, com um Toni Servillo em estado de graça – certamente iluminado pelo meu amado Marcello Mastroianni, de quem ele é uma espécie de alter-ego. Desempenha o papel de Jep Gambardella, jornalista bon vivant, meio flâneur, meio dândi, que espreme a secura de sua Itália contemporânea (são impagáveis suas tiradas à imprensa de celebridades, ramo de onde ele, para seu desprazer, tira o seu sustento) para extrair dela o maravilhamento. Voltam a infância, o primeiro amor, a religião, os grandes monumentos da pátria milenar – todos resignificados pelo palmilhar cativado e irônico do homem pela cidade. O filme poreja “La Dolce Vita”, sem ser derivativo da obra-prima de Federico Fellini. Uma grande, belíssima homenagem à Itália e ao cinema. 
Assim como “Que estranho chamar-se Federico (“Che strano chiamarsi Federico”, 2013), contação da trajetória de Fellini pelo seu grande amigo (e grande cineasta) Ettore Scola – ambos desempenhados, no docudrama, pelos netos de Scola; Tommaso Lazotti e Giacomo Lazotti. Certas obras estabelecem uma relação tão indissolúvel entre texto e contexto que é impossível enxergarmos um em detrimento do outro. Como atingir o distanciamento afetivo para analisar um filme que presta uma homenagem tão derramada ao cinema italiano; à Cinecittà, sua cidade dos sonhos; às grandes estrelas italianas desta arte e ao nosso imaginário, repleto dos flashes criados pela câmera mágica do brilhante Fellini? A tarefa é difícil (mas eu fiz o possível para realizá-la algo extensivamente, numa resenha publicada na Imagofagia, à qual remeto o leitor). 
Da França saiu “Saint Laurent” (2014), um belo filme de Bertrand Bonello, com Gaspard Ulliel excelente no papel do biografado Yves Saint Laurent, Jérémie Renier como Pierre Bergé, e Louis Garrel como Jacques Bascher, uma das pontas do triângulo amoroso. O notório estilista era poeta, quem diria. O filme consegue ganhos dramáticos ao abraçar, para a construção da narrativa, esta faceta pouco conhecida do homem. Ganham sopro de poesia não só o filme, mas também o métier, historicamente mais relacionado à manufatura que à arte. Recupera-se a importância simbólica dos tailleurs saídos do lápis do artista, que cooperaram no empoderamento das mulheres de seu tempo. Muito bom filme. 
Já “Amar, beber e cantar” (“Aimer, boire et chanter”, 2014) é para os amantes de Alain Resnais. No canto dos cisnes do grande diretor francês – premiado no Festival de Berlim pouco antes de falecer, aos 91 anos – retorna a célebre soma de elementos encontrados em suas obras: a troupe composta pela esposa Sabine Azéma, e por Hippolyte Girardot, Caroline Sihol et compagnie..., a adaptação de uma peça teatral (de Alan Ayckbourn), e a partir dela, a circulação pelos gêneros e o entremear da vida e da arte. Também volta o tema da morte, já presente no ótimo “Vocês ainda não viram nada”. Resnais deve ter sido um velho senhor lépido e faceiro, a contar pelo modo como ele retratou a morte, nesses últimos filmes. Com bom-humor, encena as pompas fúnebres de dois alter-egos seus. Sua morte real foi acompanhada pelos mesmos parceiros que acompanharam suas peripécias cinematográficas, os quais, junto ao seu caixão, mimetizaram fidedignamente a arte na vida. 
E, enfim, de Portugal veio-nos “Florbela” (2012), obra de Vicente Alves do Ó com a ótima Dalila Carmo, e Ivo Canelas (no papel de seu irmão) e Albano Jerónimo (seu marido). O filme privilegia a vida conturbada de Florbela Spanca – feminista avant-garde à sua obra poética. A perda da poesia, que tão bem faria ao filme, não o impede de ser um trabalho digno de atenção, com interpretações notáveis de Carmo e Canelas, irmãos que, nesta biografia dramática, nutrem um amor que resvala para o âmbito carnal. Entregues aos seus personagens, ambos conseguem construir duas densas psicologias, das quais emergem as angústias pelos sentimentos proibidos. 

Os amigos me lembraram que, ao longo dos balanços do ano, deixei de lado “Pais e filhos” (“Soshite chichi ni naru”, 2013), de Hirokazu Koreeda, aquele que seria o único representante japonês de nossa lista. Realmente, um ótimo filme. Parte de uma premissa banal – a troca de dois garotos na maternidade – para, com a sobriedade comum aos filmes (e à sociedade) do Japão, dar mergulhos de fôlego em questões como o amor paterno/filial, a configuração da sociedade japonesa (no que toca tanto às relações marido-mulher, pai-filho quando no que diz respeito às cobranças feitas desde à mais tenra infância, para que as crianças sejam bem-sucedidas). O mundo do pai workaholic vira do avesso quando descobre que o filho que ele vinha talhando ao feroz mercado de trabalho é, na verdade, o filho de um casal de hippies
E eu, de minha parte, me esqueci de “Até o fim” (“All is Lost”, 2013), de J. C. Chandor, com um excelente Robert Redford, vincado e maltrapilho, a depender exclusivamente de sua expertise de ator. Espécie de versão contemporânea do clássico de Hemingway “O velho e o mar”, aqui Redford é o velejador que se descobre náufrago, depois que restos da carga de um navio abrem o casco de sua embarcação. Sua luta pela vida é tão bem contada que nos resulta quase palpável. 

Quantos mais não foram deixados de lado nesta seleção. E ainda reclamam que o cinema está morto. As obras-primas realmente rareiam, quando comparamos nosso tempo aos tempos passados. Porém, as salas de exibição ainda podem nos comover, nos divertir e nos provocar. Viva o Cinema! Que é, aliás, o título de outro filme...

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Mil vezes boa noite: das seduções de um mundo em ruínas

Algumas vezes o cinema se impregna de visceralidade tal que se torna, pelo espaço de duas horas, o espelho dos meandros mais tortuosos das nossas almas. Digo isso depois de ver e rever “Mil vezes boa noite” (Tusen ganger got natt, 2013), ótimo filme de Erik Poppe, com uma Juliette Binoche de intensidade estonteante, secundada por um Nikolaj Coster-Waldau cheio de equilíbrio e uma jovem atriz com méritos de veterana (Lauryn Canny, em sua estreia no métier). 
“Mil vezes boa noite” fala de guerra. Daquelas travadas entre dois grupos oponentes, visando à supremacia de um sobre outro (governos versus grupos terroristas; governos versus civis; tribos rivais, etc.). Porém, sobretudo, daquela travada dentro de nós mesmos, silenciosa, mas nem por isso menos brutal. 
Juliette Binoche é Rebecca, francesa radicada na Noruega, fotógrafa de zonas de conflitos com marido e duas filhas pequenas. Seria a mocinha modular, à moda das heroínas americanas de guerra (uma delas, a Hana de “O Paciente Inglês”, deu-lhe mesmo um Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante), não se digladiassem dentro dela, em medidas análogas, o horror à barbárie e a incontrolável atração pelas situações-limites. 
É a clássica sedução do perigo – que movimenta o turismo de aventuras, dá altos retornos financeiros aos divertimentos radicais dos parques e arrasa multidões aos filmes-catástrofes; entretenimentos que oferecem ao público a possibilidade de viver em dimensão controlada as situações de tensão – que leva Rebecca a abandonar a família rumo aos fronts de batalha; para fruir a vivência do terror, desta vez empiricamente. 
Juliette é uma atriz experimentada. As heroínas convencionais são para as meninas – para as atrizes meninas; para as mentalidades meninas. A sinceridade com que ela traja as vestes da personagem, despindo-se de melodramatismos, e o despudor com que num só tempo bebe o sangue dos sujeitos que retrata e chora por eles, tornam-na a projeção de cada um de nós, da integridade que desejamos ostentar e das taras que procuramos esconder. 
A ambivalência se estabelece durante todo o curso da narração, com profundidade rara no cinema contemporâneo. O filme promove uma dissecção nas personagens de primeiro plano que me lembro de ter visto pela última vez em “Separação” (2010). 
Quem é Rebecca? A fotografa brilhante, vista como heroína pelos colegas de trabalho? A mulher cuja vida familiar é marcada pelas despedidas: esposa apaixonada porém ausente; mãe que amarga a culpa de não acompanhar o crescimento das filhas, não por amá-las de menos, mas por ser incompatível à maternidade padrão. Como ao casamento padrão. A mulher que busca transcender os limites do próprio corpo, como se quisesse fugir dele: dos mergulhos nas águas geladas do mar invernal norueguês, às corridas exaustivas a que se submete, estando ainda por cicatrizar das feridas abertas pelo último atentado a que presenciou. 
“Não podemos fugir do que somos”, ela diz ao esposo. Seu repúdio às marcas da violência que dilaceram os rostos dos outros – marcas que ela com tanto talento registra – convive dentro de si com uma sanha de atividade que a leva a querer mover-se; em detrimento das marcas que ela própria deixa pelo caminho – como a obrigação que impõe ao marido e à filha mais velha de viverem na contínua iminência de sua morte. 
É a gana de aventura, a “raiva não sei do quê” - que desde sempre habitava dentro de si – que a fazem tão boa. Rebecca, fotógrafa excepcional enquanto não se deixa envolver emocionalmente por aqueles aos quais fotografa, vê-se reduzida a frangalhos quando a filha lhe volta a objetiva, fotografando a mãe austera até que a transforma em objeto. Doravante, a profissional de sangue frio ganhará uma emotividade que, se a aproxima daqueles que constantemente a esperam em casa, também a incompatibilizará ao ofício. No rincão do Oriente Médio, Receba é incapaz de fotografar a menina-bomba que se prepara para o holocausto. A fotógrafa dá lugar à mãe. 
Mãe que, a certa altura, percebe ter se transformado no espelho da filha. Retorna de uma de suas constantes viagens para ver a garota prematuramente amadurecida. Também artista: desenhista, a traçar com o lápis o rosto morto da mãe, registro de um fato que cedo ou tarde acabaria por se consumar. Steph quererá seguir os passos de Rebecca. Descobrirá com ela os primeiros prazeres e temores das zonas de conflito, e semeará na mãe o temor primevo de perdê-la – explicitado na cena em que Rebecca vê a adolescente afegã ser preparada para morrer. 
O filme tece cinematograficamente a ambivalência, construindo imagens – fotografias e sequências – que primam num só tempo pela beleza e pelo horror. Rebecca desejava fazer os leitores de seu jornal engasgarem com os terrores que registrava; faz sua câmera funcionar à guisa de arma, transformando-se, ela, em soldada dos oprimidos; mas muitos daqueles que ela registra transbordam fotogenia. A sequência inicial, com o velório de uma mulher afegã viva – para que as rezas não se dirigissem a um corpo destroçado –, o último banho da vítima, a encomenda de sua alma ao seu Deus, e a impassibilidade com que a fotógrafa acompanha o evento antes e depois da explosão - ferida e amarfanhada -, é das mais belas rodadas nos últimos tempos. Ao iluminar os éthos guerreiros das duas mulheres, alinhando-as uma à outra, a sequência leva os espectadores a questioná-las a ambas. 
Ao mesmo tempo, as cenas da intimidade familiar dão-nos um estranhamento que também é o da protagonista, mais acostumada às suas “roupas que cheiram a morte” que à casa acolhedora da família. Embora breves sopros de felicidade façam resplandecer o belo rosto Juliette – a fotogenia em pessoa – a casa é sempre o âmbito da passagem, suas paredes a ecoarem despedidas.