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sábado, 21 de dezembro de 2019

Sobre unanimidades: Fernanda Montenegro em “Nelson Rodrigues por ele mesmo”


Entrarei de sola no tema do post, sem fazer grandes comentários sobre a indesculpável distância de seis meses que separam este texto do último aqui publicado. Minha vida daria uma autobiografia bem menos interessante que a de Suzana Flag - mesmo (ou talvez por isso mesmo) sendo a minha verdadeira e a dela, falsa, forjada por Nelson Rodrigues num de seus arroubos criativos. 
A causa da volta é Fernanda Montenegro, mais especificamente a sua performance em “Nelson Rodrigues por ele mesmo”, costura feita pela atriz dos textos do cronista e dramaturgo ajambrados pela filha dele, no livro homônimo. O espetáculo foi apresentado no Teatro Municipal de São Paulo em 18 de novembro, após percorrer – como a própria atriz explicitou antes do início da apresentação – os arrabaldes cariocas (zonas tão caras a Nelson). Ela esteve igualmente uma outra vez no Municipal, em outubro deste ano, gerando novamente grande comoção: o público chegou a amargar dez horas na fila para conseguir um dos ingressos de R$ 5,00 da sessão popular; tumultos aconteceram devido aos inúmeros não atendidos. 
Para além da popularidade alcançada durante os seus mais de cinquenta anos de profissão, Montenegro (chamam-na agora de “Dona Fernanda”, epíteto que procura sublinhar a sua primazia dentre as demais damas da (tele-)dramaturgia nacional) transformou-se recentemente – e à sua revelia – no bode expiatório da classe artística, ao ser a destinatária das diatribes do responsável por certo órgão de cultura do país. 
O destino quis que Fernandona (prefiro conservar o velho epíteto com que a nomeio; a iconoclastia é um gesto crítico), embora não tenha se posicionado claramente em prol deste ou daquele governante, fosse acolhida com desvelo pelas massas num surpreendente gesto de defesa da nossa espoliada cultura. Quis, além disso, que, em detrimento de sua maestria altiva e de sua heráldica, ela fosse literalmente abraçada por moçoilas eufóricas, e com elas se debulhasse em lágrimas, sobre o mesmo palco no qual viera de fazer o seu espetáculo. No Municipal, a catarse rodrigueana não se deu durante a récita, deu-se durante a intervenção efusiva do público. 
Unanimidade. Fernanda Montenegro, praticamente ausente das telenovelas na última década, de presença bissexta em seriados – sua performance em “Doce de Mãe” (2014) deu ao Brasil um inédito Emmy –, e constante no nosso tão pouco assistido cinema, mantém, hoje, a dimensão totêmica da qual ela é dotada há décadas. Aplausos, gritos, uivos acompanharam seus passos até o centro da cena, no Municipal, e permaneceram altissonantes por 10 minutos. Não obstante, não muito tempo depois Montenegro diria, por meio de Nelson, que “Toda unanimidade é burra. A maioria geralmente está errada.”. 
Que duas pessoas dessemelhantes, ela e ele. E que admirável exemplo de profissional é ela! A amiga com quem eu fui vê-la, mulher de uma inteligência admirável, dizia, terminado o espetáculo, que Fernandona corroborava a sua tese de que o ator é um médium. Pouco importa o que ele pensa – ou se ele pensa algo – a respeito daquilo que interpreta. Importa a maestria com que o faz. Fernandona é o cavalo* de Nelson. Ela se desembaraça de seus 90 anos como se os portasse numa mochila, tão logo se senta sobre a escrivaninha que está no centro do palco – mítica escrivaninha situada nos fundos fumacentos do Jornal do Brasil, na qual Nelson Rodrigues burilou a sua obra –, fazendo com que a sua voz adquira um tônus masculino e um tempo martelado, rapsódico. 
O impressionante descompasso entre o que ela diz por meio da voz de Nelson Rodrigues e o contexto adorativo em pauta, entre a voz grave e firme com que o cético dramaturgo afirmava desconfiar da adoração dos homens e a voz débil e lacrimosa com que Fernanda entoa a cantilena de que “a cultura nos une, para além das opiniões políticas”, prova-nos que a grande arte sempre supera o seu intérprete, por mais aparatado que ele seja. Nelson era irônico à crueldade – sua acidez não poupava a direita ou a esquerda, sua crítica era tão severa àquele que o idolatrava quanto àquele que o vituperava. 
Fernanda Montenegro merece aplausos pela sua intenção louvável de colocar em cena Nelson Rodrigues. E, ao fazê-lo de forma rigorosa – preferindo dedicar-se aos textos cronísticos dele em detrimento dos ficcionais, e fazê-lo por meio de uma encenação reduzida ao mínimo, que coloca toda a sua ênfase na palavra –, só faz demonstrar que a altura de Nelson Rodrigues supera (perdoem-me os idólatras) a sua, por maior que ela seja. 

*Cavalo é, segundo o espiritismo, a pessoa que incorpora o espírito.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Uma anti-verdiana se encontra com Aida (Teatro Municipal de SP, 13/8)

Testemunho de uma cinéfila, até outro dia anti-verdiana, que experimenta a conversão completa depois de ter visto a montagem da Aida no Municipal de São Paulo... 

Testemunho é algo que este blog não está muito acostumado a ver, ele que padece do defeito da blogueira-acadêmica de querer ajuntar a tudo o esquema apresentação (seguida de exemplos) - análise objetiva - conclusão. 
O formato novo deriva de um assunto (quase) novo nestas paragens, a ópera. 
Pouco sei de ópera. Até pouco tempo atrás, só sabia que desgostava de Giuseppe Verdi. Resquício de minha pesquisa de mestrado... Estudei a produção teatral de alguns wagnerianos de fins do século XIX. Eles odiavam o compositor italiano, cuja música remetia a um passado monárquico que desejavam esquecer; eu comprei a briga (culpada de novo...). 
Resultado: vi à época uma porção de montagens de obras de Verdi em DVD. Ri da “Traviata” (1853) – mulher submissa à moda das sofredoras do melodrama europeu, simples brinquedo nas mãos dos homens da sociedade, a ter como única salvação possível a morte. Ri muito de “Aida” (1871), sua companheira de infortúnio – esta, coitada, escrava despossuída até mesmo de seu corpo, à qual a morte seria um privilégio. 
Em Paris para desenvolvimento de parte de minha pesquisa de Doutorado, já no fim de 2012, o baú das memórias é revirado pelas comemorações referentes ao bicentenário de Verdi (1813-1901) e Wagner (1813-1883). No cinema, o rosto da primadona Natalie Dessay enche a tela no documentário “Traviata et nous”, no momento do “É strano”, e por meses o meu cinematógrafo cerebral insiste em reproduzi-lo. Na Opéra Bastille, uma noite de festa é dedicada à obra dos dois músicos. A música de ambos espalha-se harmonicamente pela sala, e eu decido que já é hora de enterrar os velhos fantasmas e entrar no coro: Verdi é, sim, genial. 
Verdi
A Aida encenada no Municipal de São Paulo (regida por John Neschling, cenografia de Italo Grassi) só vem sublinhar o fato. Se ali pulsa o melodrama – nos sofrimentos da princesa Etíope feita escrava, impossibilitada de se unir ao amado Radamés, filho do Egito rival, prestes a se casar com a princesa egípcia Amneris – pulsa com mesmo peso a tragédia. Se algo aprendi nesses meses em que vivenciei (um tanto quanto intensamente) a ópera, é a respeito do papel que o mise-en-scène tem no resultado final. Esta Aida explora com a mesma maestria os momentos operísticos de grande espetáculo – que Verdi soube como poucos criar – e as árias e duetos de revelação íntima. 
O recuo temporal na direção de um passado milenar que só pode ressuscitar como fantasia tira do melodrama o gosto rançoso do atrelamento histórico. Ganham destaque os dilemas internos dos personagens. Aida é aqui uma meia-irmã da Antígona de Sófocles, cujo coração pende com a mesma intensidade entre dois polos: o amor ao pai (e à mãe-Pátria) e a Radamés. 
O líder do exército egípcio ganha humanidade ao resistir em deixar a pátria (e a glória recém-alcançada) por Aida. A jovem é num só tempo escrava e dona do amor do melhor dos homens. É mocinha tingida do cálculo da femme fatale, já que, por ter o coração dividido entre o amor e a obrigação filial, precisa nalgum momento trair Radamés para salvar o pai. Como a protagonista do trágico grego, presa entre duas obrigações de peso análogo, só encontra coesão na morte. 
Aida/Municipal-SP
A extinção de Aida é um recomeço. Porque ela só poderá encontrar o descanso ao lado de Radamés naquela Eternidade – pagã, e não obstante, tão cristã – onde todos os liames são dirimidos. Por isso, o sepultamento de ambos em vida ganha conotações múltiplas; sublinhadas pela encenação: a exiguidade do espaço que os prende retumba com suas juras de amor eterno, finalmente reverberadas em uníssono; a luz celestial os ilumina; enquanto que os cantos fúnebres ecoam no exterior da tumba, interrompidos pelos reclamos lancinantes da princesa Amneris. 
Amneris também é múltipla – pelo menos o foi a jovem que a cantou no dia 13, Tuija Knihtlä, em cuja voz ficaram bem marcados o amor por Radamés, a piedade – e depois o ódio – por Aida e o dilaceramento pela morte do guerreiro. Maria Josè Siri e Stuart Neill estiveram igualmente sensacionais. Impecáveis de corpo, alma e voz as duas cantoras, estrondoso o tenor (não vou estranhar se sua voz tiver sido ouvida do lado de fora do Teatro). 
Aida/Municipal-SP
Fonte: operaeballet.blogspot.com
Aida. Enquanto eu voltava para casa assoviando trechos de suas inesquecíveis árias, ia me lembrando de como aqueles escritores de fins do XIX criticavam a popularidade de seu autor, como se popularidade implicasse na diminuição de valor. A vida que pulsa de ti, jovem donzela na flor dos seus 142 anos, não cabe no libreto que li faz anos e me soou tão antigo; não cabe no quadrado da TV da sala. Precisa ser gritada em plenos pulmões, numa sala tão grande (e simbólica) quanto a do Municipal, por essas vozes que parecem brotadas do centro da terra, e que me são cada vez mais caras, a despeito de mim mesma.