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quarta-feira, 29 de maio de 2024

Jornada de expiação – “Suor Angelica” no Teatro Castro Mendes


Crítica publicada em Notas Musicais a 14 maio 2024.
A apresentação abriu a temporada 2024 da série “A Caminho do Interior”.
 
Suor Angelica (1918) 
Ópera em ato único 
Música: Giacomo Puccini (1858-1924) 
Libreto: Giovacchino Forzano (1883-1970) 
Teatro Castro Mendes (Campinas-SP), 09 de maio de 2024 
Direção musical: Cinthia Alireti 
Direção cênica: Caio Bichaff 
Cenografia: Luisa Almeida 
Suor Angelica: Mayra Terzian
La Zia Princessa: Nathalia Serrano 
Suor Genovieffa: Isabella Luchi 
Suor Osmina: Suzy Amaral 
La Badessa/La Zelatrice: Rafaela Duria 
Suor Dolcina/La Sorella Infirmiera: Alessandra Wingter 
Prima Sorella Cercatrice: Renata Fausto 
La Maestra delle Novizie/Seconda Sorella Cercatrice: Simone Luiz 
Una Novizia: Cintia Cunha 
Le Converse: Nathielle Rodrigues e Carolina Janson 
Piano, órgão e celesta: Fernando Carrera 
Orquestra Sinfônica da Unicamp 

Na quinta-feira, dia 09 de maio, o público campineiro pôde conferir a primeira de uma série de récitas de Suor Angelica (1918), ópera de Gicacomo Puccini, com libreto de Giovacchino Forzano que percorrerá o interior do estado de São Paulo dentro do projeto outrora denominado A caminho do interior, encabeçado pela Cia. Ópera São Paulo – que apresentou, nos últimos dois anos, respectivamente Paggliaci (música e libreto de Ruggero Leoncavallo, 1892) e Cavalleria Rusticana (música de Pietro Mascagni e libreto de Giovanni Targioni-Tozzetti e Guido Menasci, 1890). 
Essas obras têm como característica comum o fato de serem curtas. Embora isso não signifique que sejam musical e cenicamente fáceis, sua menor duração serve bem ao propósito do projeto, de montar um espetáculo de custo reduzido, permitindo não apenas que jovens cantores tenham espaço de atuação num gênero cujo mercado é ainda bastante restrito, mas também que plateias desacostumadas com espetáculos operísticos possam tomar contato com tais produções, ampliando os seus gostos artísticos. Esta Suor Angelica teve o seu elenco formado por participantes de diversas edições do Concurso Brasileiro de Canto Maria Callas, outra iniciativa importante da Cia. Ópera São Paulo por revelar talentos brasileiros e estrangeiros. 
Volto a repisar uma questão que já discuti ao resenhar O Barbeiro de Sevilha, montado pela Uniopera em abril deste ano: num momento em que artistas são surpreendidos com uma sequência de produções operísticas sendo canceladas de norte a sul do Brasil, é salutar ver um projeto como este ser viabilizado e encontrar o público, que é a razão de ser do teatro. Portanto, de antemão o projeto merece ser congratulado, sobretudo o responsável pela Cia. Ópera São Paulo e diretor geral e artístico deste espetáculo, o incansável Paulo Esper, mas também o Consolato Generale d’Italia em São Paulo e o Istituto Italiano di Cultura San Paolo, responsáveis pelo seu fomento. 
A obra em questão integra o Trittico, conjunto de três óperas em um ato de Puccini estreadas no Metropolitan de Nova York em 1918, e agora representadas muitas vezes separadamente – as demais são Il Tabarro e Gianni Schicchi, esta última uma obra-prima de comédia e a mais encenada das três. 
Suor Angelica se passa num convento nas imediações de Florença em fins do século XVII. O libreto aponta como indicação cênica a existência de uma igrejinha, do claustro e do cemitério. Trata-se, portanto, de um pequeno mundo que subsiste em si mesmo, do qual as internas não precisariam ou poderiam sair. Fabiana Crepaldi faz uma pormenorizada apresentação do enredo em texto que antecede a primeira exibição da ópera, cuja leitura recomendo. Limito-me aqui a trazer os elementos do enredo que colaborem para a leitura que faço da encenação objetivo desta resenha. 
A encenação reduz os elementos cênicos a um painel de Luisa Almeida que ocupa todo o palco ao fundo, representando a arcádia do convento, a partir da qual se advinha o seu interior. No primeiro plano, à esquerda, há a base de uma fonte, e ao fundo, uma escultura de uma mulher assemelhada a uma ninfa, que as internas associam à Virgem Maria – nada mais cabível, dado que o Renascimento italiano, que teve em Florença um dos seus principais palcos, apoiou-se na estética oriunda da Grécia antiga para esculpir estátuas cristãs. Esta imagem será, na porção final do espetáculo, colocada em perpendicular, fazendo com que o espectador divise a criança que está agarrada à ninfa, anunciando-se o vínculo entre Angelica e o filho. 

Mayra Terzian na cena final de Suor Angelica 

A ação se dá na porção esquerda da cena, dado que o restante do palco é ocupado pela orquestra – a exemplo de tantos teatros do interior, o Castro Mendes não tem fosso. Se isso obriga os músicos a dividirem espaço com a cena, limitando-a, dá ao todo uma grande intimidade, além de desvelar ao público o funcionamento da orquestra, noutras palavras, a magia que faz o espetáculo acontecer. Este posicionamento pode prejudicar o elenco, que terá mais dificuldade de enxergar as indicações de entrada dadas pela regente. Isso, felizmente, não se deu na première de Suor Angelica, cantada por um elenco de onze solistas que primaram pela homogeneidade, com alguns destaques. 
No grupo estão postulantes, noviças, irmãs e a abadessa, uma hierarquia religiosa que ocupa das candidatas ao claustro às que se preparam para assumir a identidade de “irmãs” – quando, enfim, adentram efetivamente este mundo, professando votos de pobreza, castidade e obediência. Há entre elas uma melancólica sintonia, denotada desde os suspiros da irmã Genovieffa, cujo singelo desejo é encontrar um filhote de cordeiro e tocar-lhe o focinho frio, até o mal disfarçado sofrimento da irmã Angelica, ante a ausência de contato com a família. 
A música do espetáculo, executada com competência pela Orquestra Sinfônica da Unicamp, sob a regência de Cinthia Alireti, é melodramática, de cunho ilustrativo: os sinos a marcarem os tempos lentos e a solidão, os trêmulos da orquestra fazendo emergir os descompassos dos corações. A visita inesperada da tia elucida ao público os motivos que levam Angelica ao claustro: ela vivera uma paixão escusa e tivera um filho, do qual foi afastada logo após o parto, sete anos antes, após o que é obrigada a se internar naquele convento. As indicações cênicas do libreto da ópera matizam as reações da tia, a testamenteira de Angelica, que procura disfarçar a piedade que tem pela sobrinha, a quem visita com o fim prático de fazer a disposição da herança devido ao casamento da irmã da jovem. A encenação de Caio Bichaff procura criar uma tia puramente calculista, mesmo no momento em que narra a morte do filho de Angelica, apesar de ressaltar todos os cuidados dispensados ao menino ao longo da sua doença. 
Suor Angelica não conseguirá sobreviver à notícia. Conhecedora dos benefícios e malefícios de toda a sorte de ervas, caberá a ela preparar a poção que acabará com a sua vida e, assim, com o seu sofrimento. Ao ato se sucede a tomada de consciência de que o cristianismo fecha as portas do paraíso aos suicidas, o que a impediria de encontrar o filho. A contrição de Angelica fará, no entanto, com que os céus a perdoem. O libreto aponta como indicação cênica uma mutação: o céu escuro torna-se “resplandecente com luz mística”. Surge em cena a “Rainha do conforto” e, diante dela, uma criança loura vestida de branco, que abraçará a mãe moribunda. 
A encenação faz bom uso dos elementos mínimos dos quais dispõe, atingindo alguns resultados admiráveis. Nem todas as freiras vestem hábito, e isto aparentemente independe do seu grau no convento. Se tal escolha dá leveza à cena – Angelica, por exemplo, usa um belo vestido rosado que combina com a atmosfera primaveril –, confunde a leitura do público. Uma delas usa um traje típico de enfermeira, com touca, o que deixa o espaço com a aparência mais de sanatório que de convento. Dentre as jovens há uma que demonstra ter deficiências cognitivas, boa escolha da encenação, uma vez que esses espaços historicamente foram utilizados para a “desova” de mulheres que caminhavam na contracorrente de padrões, a exemplo das mães solteiras e das portadoras de deficiência mental. 

Elenco de Suor Angelica 

Há, no entanto, soluções menos bem-acabadas, que podem ser aprimoradas ao longo da turnê da companhia. Por exemplo, algumas cantoras e atrizes são mais econômicas que outras no uso de maquiagens. Outras usam mesmo esmaltes coloridos nas unhas, o que é incabível aos papéis que desempenham. 
Há, também, um problema de acabamento da encenação que começa na cena em que Angelica prepara o veneno, e perdura até o fim do espetáculo: as demais irmãs continuam no proscênio durante todo o ato, quando, segundo as indicações do libreto, deveriam estar entre o cemitério e a arcádia. Esta opção torna inverossímil a morte de Angelica, pois ela acaba ignorada pelas demais internas enquanto se contorce. 
Por fim, a ausência de efeitos de iluminação no espetáculo prejudicou o tableau final. Não fica claro ao público que um milagre aconteceu, uma vez que a parte dos anjos é entoada pelas irmãs do mesmo lugar onde elas desempenharam o restante da cena, sem que se estabeleça qualquer diferenciação entre umas e outros. É preciso um efeito mínimo de iluminação para que a mutação fique clara aos espectadores. Creio que a verossimilhança do quadro teria sido ressaltada se as demais irmãs se situassem ao fundo da cena durante toda a cena do suicídio e expiação de Angelica, ao invés de estarem junto dela, e dali entoassem o coro dos anjos. 
Houve mais homogeneidade no que diz respeito ao âmbito vocal do espetáculo. Neste critério, trata-se do melhor espetáculo da Cia. Ópera São Paulo a que já assisti. Estamos diante de onze solistas profissionais, mesmo que algumas sejam bastante jovens. 
Destaquem-se Alessandra Wingter, egressa da Academia de Ópera do Theatro São Pedro, que teve um belo desempenho no espetáculo de final de ano da Academia, em dezembro de 2023, ao lado de Bruno de Sá, e que, em Suor Angelica, desempenha dois pequenos papéis, o da Sorella Infermiera e o de Suor Dolcina; Rafaela Duria, prêmio Toriba Musical no Concurso Maria Callas de 2023, segura no papel de La Badessa; Isabella Luchi, soprano que neste ano se destacou como solista na Nona Sinfonia, de Beethoven, no Theatro Municipal de São Paulo, e, também, como vencedora do segundo prêmio feminino no Concurso Maria Callas, encantadora no papel de Suor Genovieffa, pelo brilho do seu timbre e pela delicadeza com que abordou o papel da irmã que, naquele mundo de abnegação, ainda insiste em ter sonhos; e sobretudo Mayra Terzian e Nathalia Serrano, nos papéis de Suor Angelica e da Zia Principessa. 
Serrano, que já frequenta os palcos paulistanos em papéis comprimários e solistas, tem um belo e promissor timbre, e cenicamente esteve bastante bem no papel de uma mulher decênios mais velha que ela – a tia que dará a Angelica a má-nova concernente ao seu filho. O embate de ambas teve força dramática, e imagino que crescerá ao longo da temporada. 
Já Mayra Terzian, a Mamma Lucia da Cavalleria Rusticana encenada pela Cia. Ópera São Paulo no ano passado, demonstrou grande amadurecimento, arrebatando o público como a irmã primeiramente contida e, enfim, sanguínea, ao procurar a morte para ir ao encontro do filho. Além de ter estado segura vocalmente, exibindo nos momentos mais dramáticos uma marcante voz pontuda, Terzian conseguiu criar uma curva dramática para a sua personagem, algo desusado mesmo entre artistas mais experientes. É uma cantora/atriz que merece ser observada com atenção. 

Nathalia Serrano (Zia Principessa) e Mayra Terzian (Suor Angelica) 

Após incursionar por cidades como Americana, Araras e Rio Claro, esta Suor Angelica chegará em São Paulo nos dias 25 e 26 de julho deste ano, seguindo carreira pelo interior até fins de agosto. Convido fortemente o público paulista a prestigiá-la! 

Consulte aqui a programação da série A Caminho do Interior

Foto principal: Victor Lessa/CIDDIC/Unicamp. Demais fotos fornecidas pela soprano Isabella Luchi.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Diário do Metropolitan III: La Fanciulla del West

Sigo com este diário atípico, escrito num distanciamento de vinte dias dos fatos. Gosto do distanciamento, que nos permite lançar olhos mais agudos às coisas. Embora em absoluto eu desdenhe dos planos fechados, mais afetivos, minha personalidade se inclina aos mais distanciados, descritivos e analíticos... 
Eva-Maria Westbroek
Vi La Fanciulla del West (de Giacomo Puccini) duas vezes, naquela famigerada semana de idas e vindas ao Metropolitan: nos dias 12 e 17. O casting de ambas as récitas era substancialmente o mesmo: Eva-Maria Westbroek foi Minnie, a “garota do oeste dourado”, espécie de estadunidense “filha do regimento”; Zeljko Lucic foi Jack Rance, o xerife que a deseja. 
Ao redor dessas duas personagens orbita um conjunto de personagens que, embora vez por outra solem, funcionam sobretudo como coro; compondo o conjunto de imigrantes do sexo masculino importado da Europa ao distante meio Oeste norte-americano: gente que viaja sonhando fortuna, mas que ali peleja em trabalhos duríssimos e sem muita perspectiva de substancial retorno financeiro. A terceira personagem que se destaca do conjunto é Dick Johnson/Ramerrez, bandido mexicano que chega disfarçado ao salloon Polka, no intuito primeiro de roubá-lo, ganhando ali, num só tempo, o coração da jovem balconista Minnie e o desprezo de Rance. 
Kaufmann/Rammerez e
Westbroek/Minnie
Interpretado desde a abertura da temporada por Yusif Eyvazov, o vilão de voz melíflua e coração paulatinamente adoçado foi substituído, a 17 de outubro, por Jonas Kaufmann, que não por acaso segue sendo dos mais festejados tenores da atualidade. A lotação da casa esteve regular na primeira récita, tanto que comprei o ingresso no dia. Naquela modalidade “estudante” que mencionei no primeiro texto desta sequência, consegui um ingresso nas primeiras fileiras da plateia, reacomodando-me, ali, sem ter ninguém de ambos os meus lados ou diante de mim. 
Já o dia 17 estava um pouco mais concorrido. Vindo de uma série de cancelamentos no MET desde 2014, quando protagonizou com estrondoso sucesso Werther (Jules Massenet), Kaufmann foi visto com desconfiança pelo público nova-iorquino até a última hora: um dia antes da récita ainda havia quantidade expressiva de ingressos para todas as categorias; e mesmo no dia eu consegui trocar o meu (na mesma mencionada modalidade “estudante”), que era originalmente para o longínquo “Family Circle”, para a “Grand Tier” (no segundo andar da casa, orientação central, lugar bastante bom). 
Palco do MET visto da "Grand Tier"
Faço a perfumaria da coisa, aqui, por razões práticas. Primeiro, como sugestão aos eventuais novos frequentadores do local: embora eu tenha me mobilizado a adquirir ingressos com antecedência, em detrimento do que ocorre nas grandes casas de óperas do mundo no MET nós podemos, salvo raríssimas exceções, adquiri-los pessoalmente, na semana ou mesmo no dia da performance
Mas quero também ponderar sobre as diferenças entre os públicos desta casa e de outras casas de óperas notórias: além dos frequentadores fiéis, e de gente que ali aporta ou porque ama ópera, ou porque foi seduzido pelo MET on HD, o grosso do público pareceu-me composto por turistas, que passam pelo MET para o incontornável lustro cultural da viagem. A considerar pela lotação da casa nas récitas a que compareci, Anna Netrebko parece ter sido a única cantora lírica a migrar do star system operístico à cultura massiva, atingindo o status de superstar
Eva-Maria Westbroek é Minnie em La Fanciulla Del West
Voltemos, agora à La Fanciulla..., esta ópera de forma e conteúdo tão deslocados da produção de Puccini. Em primeiro lugar, no que toca a um tema caríssimo meu, a relação da obra com o teatro e (especialmente) com o cinema. O compositor italiano foi criticado à época por tomar tema tão supostamente alheio à sua cultura. Um western à italiana? 
Não li, ainda, texto dedicado às bases cinematográficas desse enredo. O certo é que, embora o gênero western seja considerado tipicamente norte-americano (André Bazin considera-o mesmo uma das bases da cinematografia do país, além de construtor simbólico, no plano cinematográfico, da nação e do homem estadunidense), ele se espraiou rapidamente pelos países da Europa, por meio do cinema. 
Pesquisadora de cinema mudo de profissão, acompanhei surpresa, na Giornate del Cinema Muto do ano passado, a série de westerns rodados na Europa em paralelo aos produzidos nos Estados Unidos, entre fins de 1900 e princípio dos anos de 1910: produções francesas, italianas, de contornos próprios, mais livres e bem-humoradas que as norte-americanas, mas respeitosas à matriz estadunidense e fiéis à sua estrutura (os interessados podem ler as minhas notas de alguns exemplares desta produção aqui). 
Poster de Sulla Via Dell'Oro (1913), exemplo de western italiano
Blanche Bates em
The Girl of the Golden West
Se Puccini já provavelmente se havia deparado com o western a partir de filmes tanto europeus quanto norte-americanos, transladados para a Itália, ele teve acesso documentado a produções do gênero quando esteve no MET em 1907, para a produção de Madame Butterfly. Em Nova Iorque, compareceu a encenações de duas obras teatrais diferentes, adaptadas pelo dramaturgo, empresário e clérigo (!) David Belasco (autor da adaptação teatral de Madame Butterfly, encenada na Broadway umas poucas vezes no ano de 1900), ambas que tomavam como pano de fundo a Califórnia dos tempos da corrida do ouro: The Rose of the Rancho e The Girl of the Golden West. Esta última, que depois daria origem a La Fanciulla del West era protagonizada pela mesma atriz que dera vida à Cio-Cio-San de Butterfly, Blanche Bates. Foi sucesso estrondoso na Broadway, encenada mais de 250 vezes ao longo de três temporadas, de 1905 a 1908. 
Puccini se havia encantado pelo teatro de Belasco anos antes, quando assistiu à Madame Butterfly, também protagonizada por Bates. A atmosfera criada pela produção, sobretudo os jogos de luz que insinuam a passagem do tempo da noite à manhã que Cio-Cio-San espera pelo amado, o teriam seduzido ainda mais que o texto (parafraseio aqui o histórico da produção escrita na Playbill da peça, o qual, aliás, tem umas inconsistências que procurei corrigir usando o Internet Broadway Database). 
David Belasco
Neste encontro de Puccini com Belasco e Blanche Bates talvez se delineie um turning point na carreira do compositor. Em La Fanciulla del West, Puccini quase que totalmente abre mão no esquema tradicional de árias e duetos em prol de uma partitura que teça nexos dramáticos, em consonância com um libreto muito tributário do teatro. Tanto que porção não desprezível dos sons da obra é incidental, à maneira como se dava então no teatro. A música também coopera na construção daqueles espaços virgens e imensos, e dos dramas que emergem mais no jogo de cena que no canto, a exemplo do tenso carteado entre Minnie e Rance, o qual decidirá o destino de Ramerrez: apoiado em silêncios, na declamação e em pizzicatos
Belasco é personagem fundamental ao teatro e ao cinema do período, tendo descoberto, entre artistas notórios, Mary Pickford e Barbara Stanwyck (as quais rapidamente migraram para o cinema). Interessado pela cena teatral, não é exagero afirmar-se que Puccini contribui para que se migre a estrutura e a mise-en-scène deste âmbito (e do âmbito cinematográfico, que tanto dialogava com o teatral) para a ópera. Se La Fanciulla del West tem uma fluidez desusada quando consideramos a produção do compositor, é porque ela é tanto mais melodrama (na acepção primeira: drama teatrao acompanhado de música) que ópera. 
Poster da montagem teatral
No plano temático, todas as coordenadas do melodrama western estão presentes na ópera. Eu poderia fazer correr rios de tinta (ou, neste caso, de bits...) discorrendo sobre o melodrama teatral e a sua apropriação pelo cinema, coisas que pesquiso há tempos e que já se transformaram em partes inalienáveis de mim mesma. Para resumir a ópera: a recessão econômica norte-americana das últimas décadas do século XIX obrigou a união de companhias fixas especializadas em teatro melodramático e em musicais, determinando a concepção de uma nova dramaturgia, que passava a valorizar tanto os bailados quanto o drama. 
Se já o melodrama histórico oriundo da Europa tem como característica primordial a mistura do alto e do baixo, do páthos e do humor, isto se intensifica no contexto norte-americano. Obras como The Girl of the Golden West testemunham esta evolução do gênero no “novo mundo”. 
Apropriada por Puccini (o libreto é de Guelfo Civinini e Carlo Zangarini), La Fanciulla del West tem como protagonista uma virginal heroína melodramática, que, todavia, ao contrário das personagens congêneres europeias, frágeis e submissas, é forte e ativa. Em torno de si, orbitam dois homens cuja vilania é relativizada: Rance e Rammerez. 
Rance, o xerife, é personagem fundamental dos westerns – homem que simboliza a implantação da justiça naqueles vastos rincões. 
O gênero western epiciza a saga da civilização do Oeste americano, a paulatina imposição da lei escrita como substituta da vingança individual (o olho-por-olho, dente-por-dente). 
La Fanciulla... flagra este desdobramento, colocando em cena um juiz que, para fazer justiça, precisa refrear seus instintos amorosos cocom m relação à mocinha e, por conseguinte, sanguinários em relação ao homem que ela ama. Juiz que, no entanto, é dividido entre a lei e o cavalheirismo: ao ponto de permitir que Minnie reste com Ramerrez, ao perder para ela no carteado. Nem Minnie é a pureza stricto sensu – já que, para conservar o seu amado, trapaceia no jogo –, nem Ramerrez é o herói típico melodramático, desprovido de máculas: 
Entra em cena disfarçado, topos clássico do gênero. É mexicano, nacionalidade por excelência dos vilões dos westerns teatrais/cinematográficos do período. Mas é homem dividido entre o papel de bandoleiro – herança maldita deixada pelo pai, diz ele de modo pungente – e o desejo de ascensão moral. A elevação espiritual/purificação moral que ele vivencia, sob o teto de Minnie – como ela diz de boca-cheia, no desfecho da história –, e o final feliz de ambos são exceção se considerarmos o gênero melodramático, nos quais ao bandido é dado usualmente o patíbulo. 
Essas características fazem de La Fanciulla del West uma obra preciosa. No que toca à protagonista, nenhuma ópera italiana tem personagem tão preponderante. O papel requer uma intérprete excepcional, única mulher a dividir a cena com as duas fortes personagens masculinas e um grande coro de homens. 
No Metropolitan, o papel coube a Eva-Maria Westbroek, que se saiu deslumbrantemente bem (foi, aliás, o meu maior encantamento naquela semana). Mulher alta, rosto firme, voz cheia e sensual, Eva-Maria é, em cena, daquelas fêmeas proverbiais. Além de ótima cantora e atriz, tem o physique du rôle perfeito para a personagem, que ela veste logo de saída, na brilhante cena inicial: quando, ao mesmo tempo firme e doce, adentra o salloon em meio a uma contenda, tingindo de lirismo, em consonância com as notas de Puccini tão bem conduzidas por Marco Armiliato, a testosterona ambiente. Falo de physique aqui no sentido lato. Ela e Kaufmann já não são os jovens requeridos para o papel. E, por isso mesmo, dão com extrema beleza corpo à dor da solidão e à necessidade de amor.
Nenhum dos dois vilões da obra é vilão clássico, incontornavelmente odiento. Zeljko Lucic, que é um brilhante Scarpia (arqui-vilão de Tosca),é um ótimo Jack Rance, obstinado e comovente. 
A cena que se segue ao pedido de casamento que ele faz a Minnie, no primeiro ato da ópera (quando ela lhe lembra risonha que ele já é casado), a narração de sua solidão e necessidade de afeto, é de comover as pedras. Além de grande cantor, que ator ele é! Saí de La Fanciulla mais mexida com Eva-Maria e com ele que com ambos os Ramerrez. 
Aliás, a personagem do barítono é, nesta obra, bastante mais interessante e assertiva que a do tenor. Ramerrez/Johnson tem em La Fanciulla a passividade dos mocinhos melodramáticos clássicos, conduzidos ao sabor do destino. Jonas Kaufmann percebe isso muito bem. Yusif Eyvazov – que achei um belíssimo cantor, no concerto que ele dividiu com Netrebko em São Paulo – desincumbiu-se com consistência da personagem, mas sem brilho. Kaufmann, além da sorte de ser lindo de morrer e ter sex appeal, tem ainda o carisma necessário para interpretar uma personagem que durante tempo considerável está em cena sem nada dizer. Ele tem o corpo/a inteligência para estar em cena sem nada dizer e, ainda assim, significar. 
Um exemplo: há uma cena passada na cabana de Minnie, no ato 2, em que Johnson, baleado, precisa se esconder de Rance. Há na casa um sótão, para onde ele sobe (a produção faz uso dos cenários milimetricamente realistas produzidos nos anos 90). Desenrola-se então uma longíssima cena entre Minnie e Rance, que culmina com a descoberta de Rammerez. Durante toda a cena, Yusif manteve-se deitado, longe dos olhos do público. Kaufmann demora longo tempo para desmoronar, sustentando-se nas paredes do sótão até que seu personagem não aguente mais e deslize para o chão. Ópera é também teatro, ele o sabe. 
Mas Ramerrez sem dúvida protagoniza o último ato da ópera, onde há uma das poucas árias da produção: Ch’ella mi creda, na qual o bandido corrigido por amor, e que agora está prestes a ser enforcado, pede aos perpetradores que Minnie não fique sabendo de seu destino. 
O Kaufmann que amamos, repleto de drama, delicadeza e paixão, aparece todo ali, com seu timbre escuro tão bem dominado. Ele e a maravilhosa Eva-Maria (que pessoalmente é tímida!...) – a qual interrompe intempestivamente o evento funesto para salvar o seu homem – muito se merecem. 

Remeto aqueles que quiserem uma comparação mais detalhada entre os dois Rammerez à resenha publicada pelo New York Times por ocasião da estreia de Kaufmann, que pode ser acessada por aqui.

Vi o terço final da ópera de um assento que vagou na plateia, a partir 
do qual registrei os aplausos finais.