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domingo, 16 de agosto de 2015

Último tango em Paris (1972)

Anos atrás, a Folha de S. Paulo publicou a imperdível coleção “Cine Europeu”, dedicada à produção dos autores fundamentais do continente. Além da obra que encima essas linhas, de Bernardo Bertolucci, há entre os escolhidos exemplares da cinematografia de Fellini, de Bergman, de Resnais, de Rossellini, de Truffaut, de Lang... Filmes para se fruir aos poucos, retornando-se a eles (à maioria deles, pelo menos), de tempos em tempos. Uma coleção, enfim, imperdível para os cinéfilos, sobre a qual estou me obrigando, agora, a comentar en passant durante o mês de agosto. Daqui para diante falaremos, portanto, de “Último tango em Paris” (Ultimo tango a Parigi), de “Os incompreendidos” (Les quatre cents coups, de François Truffaut, 1959) e de “Roma, cidade aberta” (Roma città aperta, de Roberto Rossellini, 1945). E que Deus me ajude. 
“Último tango em Paris” é precedido por uma reputação equívoca: de filme erótico, proibido pela censura militar brasileira até o ano de 1979 (pena mais branda do que a sofrida no Chile, onde ele permaneceu censurado por 30 anos, ou na Itália, onde foi recolhido até o final dos anos 80, e seu autor processado por obscenidade). A polêmica sem dúvida colaborou com o sucesso de público do filme – que, no entanto, se sobrepõe ao barulho para impor-se como obra de arte de relevância duradoura. 
O entrecho é possivelmente mais conhecido que o objeto fílmico: Marlon Brando (Paul) e Maria Schneider (Jeanne), um quarentão e uma mocinha, encontram-se casualmente num apartamento para alugar, em Paris, e encetam um relacionamento a princípio intentado como puramente sexual. As propaladas cenas de sexo explícito – mesmo a famigerada cena da manteiga são, nesses nossos tempos de obscena explicitude, consideradas quase que pudicas. O filme sustenta-se altaneiro à passagem do tempo por conta da sufocante densidade do conjunto – algo a que ainda não estamos acostumados. 
Surpreende pelo antiglamour – e, não obstante, a incontestável poesia – do intercurso amoroso do casal. Brando, que é muito bom ator, eu julgo que nunca esteve tão bem quanto aqui, dentro da pele do homem maduro, de beleza esvaecente, a quem o suicídio da esposa deixa no limite da sanidade. Schneider é repleta de beleza juvenil e carisma. Ambos têm grande química e, a despeito dos protestos posteriores da atriz – que se sentiu vilipendiada em momentos como o da tal cena de sexo anal, que teria sido rodada à sua revelia –, estão maravilhosamente bem. 
É certo que há uma exposição superabundante do corpo da atriz, em detrimento daquele do ator – mal notório da sociedade machista, para a qual o corpo da mulher é território tranquilamente explorado, nas mais variadas instâncias. Mas, em “Último tango...”, a nudez serve a um papel simbólico de despojamento que depõe a favor da sinceridade da cena. Para além de Paul e Jeanne, há o quarto mofado de apartamento, com seus exíquos móveis a servirem às necessidades imediatas do casal. Desnudam-se as máscaras sociais. Ambos tomam como parti pris existirem apenas para a completude dúbia do sexo, daí a imposição de Paul para que ambos sequer saibam dos primeiros nomes um do outro. 
O conhecimento do casal por parte do público se dá de forma errática, através da mais bela das cinematografias (de Vittorio Storaro), saturada em cálidos tons de vermelho, e de uma câmera que se alterna entre borboletear em longos planos pelos indoors e outdoors parisienses – de maneira entre dramática, acariciante e jocosa –, e tomar o casal protagonista em close, incluindo o espectador na tensão que escapa de ambos. Trata-se de um andamento musical, anunciado pela metáfora do tango que dá título à obra, e concretizado ao final dela – entre o plano-sequência que toma a passagem dos protagonistas pelo salão de dança repleto dos participantes do concurso de tango, e, enfim, a esdrúxula dança de Paul e Jeanne, cujo romantismo enviesado prenuncia o desenlace catastrófico do casal. 
A montagem fragmenta os mundos particulares de ambos, apresentados paulatinamente ao espectador: um e outro se caracterizam pela demasia, à qual o despojamento naquele quarto vazio que o casal passa a compartilhar é uma bem-vinda contraparte. O relacionamento às escondidas que Jeanne tem com Paul é o espelho invertido da relação exibicionista – à la Big Brother – que ela tem com seu namorado cineasta. A emergência da televisão é expressa de modo sardônico pelo filme, pelas histórias fake que ela veicula. Ao mesmo tempo em que o cinema ganha uma visada afetuosa, pela escolha de Jean-Pierre Léaud – o Antoine Doinel de Truffaut, a desempenhar, aqui, uma variação daquela sua célebre personagem – para o papel do noivo de Jeanne. 
“Último tango em Paris” é surpreendente. Pelo modo afirmativo como, à época, encenou o sexo  objeto “obsceno” (“fora de cena”, segundo a etimologia da palavra) por excelência , sem, com isso, atear-se à pornografia rasteira, como esse gênero de filmes fazia, então. Ao contrário, a obra é pontuada por diálogos lancinantes a respeito das relações humanas, a se equilibrarem entre o romantismo mais rasgado e a escatologia, ditos por um casal de atores de coragem ímpar. Isso, essa coragem de se atirar sem pudor dentro de um "outro", para se extrair o seu sumo, é o que transforma o ofício do ator n’algo que, suponho, transcende os limites do humano para atingir o sublime. No desempenho de Brando e Schneider, sobretudo, está a atemporalidade do filme.

domingo, 24 de novembro de 2013

A corrupção e outras drogas sedutoras: de "Blue Jasmine" (2013) à trambicagem nossa de cada dia

Um novo Woody Allen acabou de aportar por aqui. Junto, quase, do escândalo de dimensões faraônicas que sacudiu as estruturas – já não tão firmes – da prefeitura de São Paulo. A semelhança entre ambos os acontecimentos só é forçada aqui porque descobri, hoje, que a delatora da fraude do ISS é uma conterrânea minha. Il faut honrar a prata da casa... 
Allen voltou à boa forma. “Blue Valentine” é um filme bem feito, charmoso e volúvel como a corrupção de colarinho branco. Ao dizer que Cate Blanchett arrasa, choverei no molhado. De todo modo, cumpre reverberar a maestria, o domínio, a profundidade inequívoca com que ela dá vida à vulgaríssima esposa do ricaço de vida equívoca interpretado por Alec Baldwin - personagem não só verossímil como verdadeira, a contar pela valinhense que resolveu pôr a boca no trombone tão logo notou que sua fonte secaria. 
Incensa-se a semelhança entre "Blue Jasmine" e “Uma rua chamada pecado” ("A streetcar named desire", 1951), obra-prima de Kazan, Leigh e Brando. No entanto, a aproximação entre um filme e outro é tão gritante que a homenagem soa uma apropriação canhestra. Sally Hawkins (Ginger, irmã da protagonista) não é Kim Hunter; Andrew Dice Clay (o troglodita namorado de Ginger), embora muito bom, definitivamente não é Marlon Brando. Já Cate Blanchett é muito Vivien Leigh e, principalmente, muito Cate Blanchett. A atriz impregnou sua personagem de uma psicologia tão intensa quanto incabível para o papel da alpinista social cujo objetivo é sustentar a boa-vida de aparência que leva ao lado do marido. 
Blanchett tem estofo para vestir suas personagens como uma vida própria, mesmo que emprestada. No “Aviador”, ela desceu à essência de Kate Hepburn, embebendo-se da alma de sua biografada, mais do que de seus maneirismos superficiais. Em “Blue Jasmine” ela é uma perfeita descendente da Blanche Dubois de Vivien Leigh – mulher que ficcionalizava a existência para fazê-la mais palatável. A diferença entre ambas as atrizes está na densidade das personagens que representam. Leigh constrói em cima de uma personagem que já era profunda: mulher frágil levada à ruína física e moral por impossibilidade de suportar o esfarelar da família. O chão de nuvens sobre o qual a etérea Blanche passa a caminhar sustenta-lhe parcamente a sanidade. 
Jasmine não passa de uma arrivista a quem a cegueira é opção para a ascensão social. Sustenta seu casamento enquanto escolhe olhar para as joias que ganha do marido em detrimento das amantes e das falcatruas que ele comete, e caso clássico, resolve denunciá-lo quando se vê em vias de perder o prezado status. A história praticamente biografa o caso envolvendo minha conterrânea. 
Cate Blanchett dá foros de grandeza à mulher mesquinha. 
Espero não ter soado moralista, pois não é esse o caso. Woody Allen realiza neste filme uma leitura aguda da sociedade que obriga o forjamento de Jasmines para darem conta dos figurões a quem a mulher não passa de um brasão social. A história cruelmente se repete quando a mulher-atriz (afinal, a aristocrática Jasmine é na verdade Janette, flor nascida de solo muito mais reles) descobre-se, numa espécie de mercado de carnes da alta-sociedade, escolhida, conquistada e depois repudiada por certo diplomata/político – tipo bem acabado da política (inter)nacional. 
Jasmine caiu das nuvens douradas em que Blanche sonhava para chafurdar no esgoto da corrupção terrena. O microcosmo da sociedade criado por Allen tanto ganha em realismo quanto perde em poesia. Prezo o esforço do diretor, mas prefiro mil vezes os castelos que Blanche constrói no ar ao pouco charmoso pragmatismo de Jasmine – mesmo que ele esteja mergulhado no mais sedutor blues.