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terça-feira, 18 de junho de 2013

Machado de Assis, cineasta “avant la lettre” (?)


Machado morreu quando o cinema havia acabado de engrenar no Brasil, em 1908. Poderíamos dizer que isso o impediu de tratar do assunto nos textos cronísticos que publicou até então em jornais, não tivesse Arthur Azevedo, morto também nesse ano (em 22/10)*, se estendido em considerações sobre o assunto desde fins de 1890. O certo é que o célebre literato, presidente da Academia Brasileira de Letras desde sua fundação, pouco se interessava pelo aparato mecânico que divertia as mais diversas classes sociais. 
Daí a parecer estranho o corte cinematográfico que ele enceta nalgumas de suas produções anteriores ao surgimento do cinema. 
Machado de Assis
Pensei em escrever a respeito depois de o capítulo do delírio de Brás Cubas ressoar em minha mente durante a leitura de um corpus de crítica cinematográfica produzida nos primeiros tempos da arte. Escolhi o título provocador que anuncia essas linhas, mal esperando encontrar na web um artigo ainda mais enfático sobre o tema (“Machado de Assis, inventor do cinema”, de Pascoal Farinaccio). Aparentemente não há mais nada de novo sob o sol, mesmo... 
Uma vista d’olhos neste texto mostra, no entanto, que seu autor dedica-se a pensar sobretudo a metalinguagem (especialmente das Memórias Póstumas de Brás Cubas, saído em livro em 1881, no ano seguinte à sua publicação em folhetim), atrelando-a ao cinema da opacidade (ou seja, ao cinema que discute sobre o fazer fílmico no transcurso da obra). 
Autógrafo de Machado ao exemplar
do livro oferecido à Biblioteca Nacional
Brás Cubas fica toda a obra dando piscadelas ao leitor sobre seu modo de escrever. Ele questiona-se sobre o absurdo de seu papel de escritor d’além túmulo (capítulo “Óbito do autor”), antecipa a opinião do público (“Ao leitor”), chama a atenção para o modo como resolve certa passagem complicada do texto (“Transição”)... A amarração gera uma narrativa cheia de (intencionais) arestas; a forma e o conteúdo concorrendo para o tom cáustico do conjunto. 
Minha preocupação é menos englobante. Concentro-me no capítulo “O delírio”, no qual, como se sabe, o narrador moribundo, depois de se transformar num conjunto heterodoxo de coisas e objetos, vai dar no pico da montanha, de onde observa o acotovelar-se de todas as eras passadas e futuras; o combate universal sem trégua e vão. Um capítulo que o feérico Méliès faria mais a contento do que o fez André Klotzel na mais conhecida versão cinematográfica do romance (de 2001), creio eu. 
Afinal, o que há mais Méliès que a metamorfose sofrida pelo protagonista delirante? 
Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me pagava o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim. 

Logo depois, senti-me transformado na Suma Teologica de São Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampas; ideia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade. 
Fotograma de filme de Méliès
Cabeças a saltarem para folhas de música, bondes a transformarem-se em carroças, objetos a ganharem vida marcaram a obra produzida pelo cineasta francês entre as décadas de 1890 e 1910. 
A corrida leva Brás Cubas, no lombo de um hipopótamo, ao mais inóspito dos ambientes: “nada vi, além da imensa brancura da neve, que desta vez invadira o próprio céu, até ali azul.” Aqui e ali, plantas disformes balançavam ao vento no vazio, quando de repente, imensa, surge no quadro Pandora: 
um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. 
O sarcasmo que perpassa o texto do narrador, coalhado de digressões de cunho crítico/jocoso às pessoas de sua convivência, faz-me aproximar a quase onipresente Pandora do perigosíssimo monstro criado por Méliès para a fita “À la conquête du pôle” (1912). O vídeo todo está online no Youtube, mas me interessa especialmente a parte abaixo, filmada na exposição sobre o cineasta que esteve no MIS no ano passado: 
  

A influência é mais do espírito da época que direta. Méliès foi mágico e dono de teatro antes de se tornar cineasta. Machado de Assis acompanhou de perto o teatro de seu tempo, em que as mágicas tanto sucesso faziam entre o público. Foi igualmente dramaturgo e censor teatral antes de escrever Memórias Póstumas. O tom surreal de sua narrativa do delírio bebeu, portanto, de fontes semelhantes àquelas que influenciaram Méliès na virada do XIX e começo do XX. As mutações das mágicas teatrais ganham melhor acabamento no romance e no cinema que no palco. 
Arthur Azevedo e a atriz Pepa Ruiz; ele, grande teatrólogo, ela, a mais conhecida atriz de mágicas do Rio de Janeiro do fim do séc. XIX e começo do XX
Mas o maior prenúncio do cinema apresenta-se, neste capítulo de Memórias Póstumas, na ubiquidade da cena da passagem das eras, vista por Brás Cubas do alto da montanha. 
O trecho é grande e duvido (ceticismo machadiano) que muitos o leiam até o final, então deixo antes um par de conclusões sobre o cinematógrafo proferidas pelo escritor mexicano Amado Nervo (1898) e pelo cineasta americano D. W. Griffith (1912). Nervo vê o cinema como um potente instrumento de registro da realidade. A certa altura de sua crônica, diz (faço aqui uma tradução livre a partir da versão em francês do texto): 
Oh, se nos fosse dado assim reconstruir todas as épocas; se tivéssemos podido, graças a um aparelho mágico, contemplar, como do alto de uma estrela, o imenso desfile dos séculos; assistir à formidável marcha dos mortais através dos tempos. 

Como compreenderíamos então o vasto plano do universo!** 
Griffith anos depois discorre sobre a linguagem que torna possível tal desfile dentro de uma narrativa ficcional. O cineasta sublinha a grande quantidade de informação que o cinema do momento podia pôr em cena, algo impossível ao teatro. O cinema é “um cenário no qual seis ou sete eventos se desenrolam no mesmo tempo e lugar.”***, diz ele. A possibilidade da narração paralela de duas intrigas (Griffith fala sobre “Intolerância”, de 1916) faz emergir a noção de ubiquidade do cinema. A transição entre os temas é tornada possível pela inserção de um elemento tipicamente cinematográfico, como uma flor tomada em close
Fotogramas de "Intolerância" (Intolerance, 1916) Fonte: http://otroladodelaescena.blogspot.com.br/2010/12/intolerancia-de-david-w-griffith-1916.html
Penso nesse delírio machadiano feito de fúria, temor e delícia – afinal, como se verá, o narrador-personagem diverte-se imenso observando o delírio universal, como tivesse diante de si um espetáculo – e entrevejo o brilho dos olhos de Griffith enquanto ele escrevia esse texto no qual defende o cinema como o mais satisfatório objeto artístico de seu tempo. O estado de loucura de Brás Cubas o faz vislumbrar o futuro. Relendo este capítulo de Memórias Póstumas, fica difícil compreender por que Machado de Assis desdenhou do cinema. 

Abaixo, o trecho prometido do delírio: 
Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, — flagelos e delícias, — desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, — nada menos que a quimera da felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.
(...) 

ver os séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: — “Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e passará também, até o último, que me dará a decifração da eternidade.” E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então tranqüilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de idéias novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e atrás dele os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei de atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último, — o último!; mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, — menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...
* Data de morte de Arthur Azevedo atualizada em 24/6/13 (cometi um lapso na edição original do texto, ao apontar que o literato morrera em 1907).
** "Le cinéma: naissance d'un art: 1895-1920", Camps Arts, Paris, 2008, p. 60.
*** Idem, p. 393.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Entre Paris e Montreuil: Géorges Méliès e os irmãos Lumière

Saímos agora de Montreuil rumo ao n. 14 do Boulevard des Capucines, em Paris, retrilhando o percurso seguido por Géorges Méliès naquele 28 de dezembro de 1895, data de seu primeiro encontro com as “imagens em movimento” dos Irmãos Lumière – encontro responsável por deflagrar seu desejo de explorar o novo medium; que culminou com a construção do estúdio de vidro que vimos no post anterior.
Os franceses Auguste e Louis Lumière, naturais de Besançon, passaram parte considerável da vida em Lyon, lá realizando sua formação técnica e ingressando no negócio da família, uma usina fotográfica – Auguste no cargo de gerente, Louis no de físico. Louis foi o responsável por descobertas importantes, que tornaram possível o desenvolvimento do cinema, como o processo de placa seca e a perfuração do rolo de celuloide como meio de se avançar o rolo de filme dentro da câmera.
Os irmãos primeiro apresentariam as primeiras vistas cinematográficas em 10 de junho de 1895, num congresso de fotografia em Lyon. A primeira exibição pública do cinematógrafo se daria, todavia, em Paris, no Salon Indien du Grand Café, situado no subsolo do n. 14 do Boulevard des Capucines.
A sala preparada para a primeira sessão
Hoje os desatentos deixariam passar o endereço célebre.  A especulação imobiliária transformou a construção no Hotel Scribe. De lembrança do Café resta apenas a placa comemorativa pregada na fachada do hotel (os curiosos chegam rapidamente à rua saltando no metrô Opéra - ela fica a uma quadra do metrô, na direção oposta à da Opéra Garnier).





Em compensação, sobejam registros históricos daquele dia, organizado como um espetáculo a se ficar pra história pelos irmãos empresários que de bobo nada tinham. Fotografias do salão, pôster alusivo ao evento e um cuidadoso anúncio descritivo a apresentá-lo, circulado pela imprensa:

O programa inaugural do cinematógrafo

O Cinematógrafo: Este aparelho, inventado pelos senhores Auguste e Louis Lumière, permite que se colete, por séries de provas instantâneas, todos os movimentos que, durante determinado espaço de tempo, sucedem-se diante da objetiva, e que se reproduzam em seguida tais movimentos em tamanho natural numa tela, diante de uma sala inteira.
Os irmãos Lumière

Vendo do distanciamento temporal, a descrição surpreende. Todavia, o que para nós é o óbvio ululante era completa novidade para o público da época. 
Embora Edison já tivesse posto em circulação o seu kinetoscópio (maquininha que apresentava a tal reprodução do movimento em tamanho diminuto, sendo o espectador obrigado a olhar as lunetas para dentro da caixa onde as cenas eram apresentadas), nunca antes o público fora confrontado com imagens em movimento em tamanho natural.
Daí, por exemplo, a funda impressão causada por cenas aparentemente banais de empregados saindo da fábrica da família Lumière, de um bebê sendo alimentado (ou brincando com peixinhos vermelhos), do grupo de homens a transformar uma colcha numa cama elástica ou de gente a simplesmente circular pela rua.
A apresentação inaugural do cinematógrafo contou com dez vistas de aproximadamente 50 segundos cada (a pequena extensão dos rolos de celuloide impediam cenas mais longas), rodadas nos meses anteriores sobretudo em Lyon e nas cidades do arredor: 1- La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon, 2- La Voltige, 3- La Pêche aux poissons rouges, 4- Le Débarquement du Congrès de Photographie à Lyon, 5- Les forgerons, 6- Le Jardinier (l'Arroseur arrosé), 7- Le repas de bébé, 8- Le Saut à la couverture, 9- La Place des Cordeliers à Lyon, 10- La Mer (Baignade en mer) – abaixo, uma lista dos cenários escolhidos acompanha um mapa da região e o link para as vistas.
Fotograma de Le Saut à la couverture
Do conjunto, saltam aos olhos ao mesmo tempo o anseio de se alcançar a naturalidade na representação da vida – coisa que a fotografia, naquele momento já vulgarizada, cada vez mais se preocupava em alcançar – e a impossibilidade de se deixar de lado o âmbito da representação. O peso subjetivo da câmera ainda era imenso, para aqueles primeiros sujeitos que a captavam. Tanto que a melhor atriz do conjunto é a bebê Andrée Lumière, a filha de Auguste protagonista de Le repas de bébé, dada à sua a inconsciência do dispositivo fílmico. 
Na vista que toma os membros do congresso de fotografia a desembarcar em Lyon, metade do grupo segue pelo lado direito, metade pelo esquerdo. Todos olham para a câmera. Os funcionários da firma dos Lumière não parecem menos posados, naquele porejar superabundante de vida que de repente invade o quadro (La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon): em questão de segundos cachorros, ciclistas, cavalos, carroça e centenas de pessoas surgem e desaparecem do enquadramento sem deixar vestígios.
Fotograma de Le repas du bébé.
Andrée Lumière morreria em 1918 aos 24 anos vítima da endemia de gripe espanhola
Importava, naquele primeiríssimo tempo do cinema, justificar as palavras que o definiam. O registro do movimento vira preocupação primeira. Gente a passar, coisas a passarem, a vida a passar. O cinema espacializava pela primeira vez a passagem do tempo. A tela branca torna-se um microcosmo de mundo, janela a partir as pessoas observavam a si e aos semelhantes sem se serem vistas. Máquina miraculosa, a guardar para a eternidade as caras, as conquistas, as imperfeições, as pequeninas vaidades do homem, aquela eterna criança que não tinha vergonha alguma de se ver retratada em atitudes infantis como a de dar cambalhotas numa cama-elástica improvisada...
Qual não teria sido a reação de Méliès diante da máquina que transformava o homem e o seu cotidiano em espetáculo?
Melies - L'homme à la tête de caoutchouc (1901)
Conhecemos apenas os desdobramentos do impacto causado por aquela séance inaugural do cinematógrafo sobre o prestidigitador: Imediatamente aparecerão vistas cinematográficas produzidas por Méliès. Vistas a fazerem uso pródigo do que ele descobrira quiçá acompanhando a reação da plateia aglomerada no Salão Indiano do Grand Café: Desde o princípio o artista investirá na invenção de efeitos no intuito de agradar aqueles homens que adorava aparecer. 
Suas trucagens potencializarão os resultados conseguidos pelos Lumière na aurora do cinema: cabeças humanas miraculosamente ganharão a propriedade da borracha – encolherão, aumentarão – ou então serão temerariamente guilhotinadas só para se transformarem em notas musicais; multidões citadinas inopinadamente se metamorfosearão diante dos olhos do público (Méliès é reputado como o inventor da trucagem, que ele teria descoberto por acaso, devido a um problema técnico). 
Mais que inventar um mundo mágico, Méliès materializa para o público aquilo que, no mundo, escapava da esfera da racionalidade. Oferece, como espetáculo leve, à bon marché, um homem feito não só de carne como também de sonhos - homem denso que é paradoxalmente feito de sombras. Homem depois multiplicado no estúdio de Montreuil, na centena de filmes de ficção a usarem e abusarem dos artifícios anunciados pelas vistas dos irmãos Lumière apresentadas primeiro ao público naquele histórico 28 de dezembro de 1895.

Os irmãos Lumière no mapa: endereços onde foram rodadas/apresentadas as primeiras vistas e (hiperlinks sobre os títulos dão acesso aos vídeos das mesmas):

1- La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon (situada no 25 da rua Saint Victor, em Lyon – França)
2- La Voltige (Lyon, Rhône, Rhône-Alpes – França)
4- Le Débarquement du Congrès de Photographie à Lyon (Neuville-Sur-Saône, Rhône, Rhône-Alpes)
6- Le Jardinier (l'Arroseur arrosé)
10- La Mer (Baignade en mer)



* Está no mapa igualmente "Entré d'un train en gare de la Ciotat" (Entrada do trem na estação de Ciotat), uma das mais célebres vistas dos irmãos, rodada em 1897. La Ciotat fica no extremo sul da França, na Provence, a um par de dezenas de quilômetros de Marseille.


Endereços úteis:

Site sobre a primeira séance pública do cinematógrafo
O Salão Indien du Grand Café na Wikipedia

sábado, 6 de abril de 2013

Entre Paris e Montreuil: Georges Méliès e “The Queen of Montreuil”

Queen of Montreuil, 2012
tão Méliès esse fotograma...
Paris transpira cinema. Centenas de salas de projeção espalhadas pela cidade, oferecem séances para todos os bolsos e gostos: sessões promocionais a 3,50 euros são continuamente apresentadas pelas grandes redes, que dispõem do irresistível abonemment mensal ilimitado e não raras vezes incluem clássicos da Sétima Arte em seu programa (a MK2 ofereceu meses atrás um cardápio extenso de Chaplins); clássicos e novidades de todos os cantos do mundo visitam as salas de projeção, destaque para a produção francesa, que sempre ocupa lugares importantes nos box-office semanais. 
Como no Brasil... 
Não adiramos, no entanto, à xenomania acrítica. O imposto obrigatório redirecionado à produção cinematográfica joga no mercado com alguma frequência lixo cultural. Porém, não poucas vezes o incentivo estatal viabiliza trabalhos interessantes. Como esse “The Queen of Montreuil”, novinho em folha, trabalho luminoso de Solveig Anspach com Florence Loiret Caille, Didda Jonsdottir, Ulfur Aegisson, Eric Caruso e uma lista de nomes que até outro dia me eram ilustres desconhecidos. 
Como trombei justamente nele, na enxurrada que semanalmente altera a programação das salas? Foi durante uma visita à Montreuil, cidadezinha juste à côté de Paris onde Georges Méliès fez construir no fim do século XIX, no n. 3 da rue François Debergue, o primeiro estúdio cinematográfico do mundo (a história do mágico-cineasta é contada no recente “A invenção de Hugo Cabret”, de Martin Scorsese - resenhado aqui - , ao qual nunca é demais tecermos loas). 
O estúdio de vidro de Méliès em  Montreuil
Embarquei direção Mairie de Montreuil (parada final da linha 9 para os aventureiros) no intuito de pagar um óbvio tributo ao artista francês; trombei com um prédio de apartamentos que em nada lembrava o estúdio de vidro que o criativo cineasta construiu para aproveitar ao máximo a luz solar – estúdio cuja réplica pertence à coleção permanente do Museu da Cinemateca Francesa, que possui extenso conjunto de seus objetos e de objetos usados no filme de Scorsese, vários deles em exibição atualmente (acorde cedo no domingo que a visita é gratuita até às 13 hrs nesse dia...). 
Apenas uma placa indicativa lembra o outrora ilustre endereço. Mas o cinéfilo de carteirinha não teme vasculhar escombros em busca da aura do cinema. Um século atrás ali pisara Méliès, a transformar películas de celuloide em magia, desdobrando na tela branca o ofício de prestidigitador que exercera até então, nas soirées do Théâtre Houdin. 
Montreuil não parece estar colada em Paris, tal a simplicidade de suas residências e estabelecimentos comerciais. Pouco se afasta das cidadezinhas de interior do Brasil. O orgulho do passado mal se deixa entrever, na placa comemorativa colocada pela mairie, no complexo cinematográfico batizado segundo o morador ilustre ou no Centro de Informações Turísticas (fechado pela manhã nos dias de semana, o que denuncia a escassez de visitantes). 
3 François Debergue, Montreuil
As redondezas do antigo endereço de Méliès
Porém, se a lembrança do passado se esvai, a dedicação presente à Sétima Arte continua pulsante. “The Queen of Montreuil” era destaque da revista do complexo. 
Nada mais justo, porque o filme faz uma imersão nos meandros da cidade, lá muito além do que o metrô alcança. Imersão entre pitoresca e poética. A rainha do título é Agathe, jovem viúva que retorna do estrangeiro para a cidade com o objetivo de dispor das cinzas do marido morto num acidente automobilístico. Quererá o acaso que ela encontre, no setor de informações do aeroporto, uma senhora islandesa sem pouso definido e seu filho adolescente. 
A dupla suis generis terá papel preponderante para que Agathe sobreviva ao luto. 
Ambos são hippies calorosos. A cidade de Montreuil nos é mostrada em boa medida pelos seus olhos. Se a visada tem um tanto de amelipolinesca (acreditem, o nome “Amélie Poulain” é flexionado por aqui...) - as historietas vividas pelos habitantes da cidadezinha observadas a partir da grua onde a senhora passará a trabalhar; o périplo de uma foca abandonada no Bois de Vincennes... - ela ganha ancoragem na realidade por meio da figura da protagonista, desempenho matizado e tocante de Florence Loiret-Caille. Sua agridoce Agathe exala sinceridade: na sua dramática batalha para vencer o luto; na sua necessidade de calor humano, que a abre para doar-se aos desconhecidos. 
Sem ser uma obra-prima, “The Queen of Montreuil” oferece um sopro fresco de ar em meio à produção cinematográfica francesa, que apesar de vasta padece de problemas bem conhecidos de nós, brasileiros: a proliferação de comediazinhas românticas fáceis e pouco inspiradas, a se contentarem meramente com a reprodução dos pontos turísticos da cidade-luz. Arejamento em boa medida beneficiado – creio eu – pela locação escolhida. O cinema daqui bem que poderia criar o hábito de tomar o metrô rumo aos banlieues

* Próximo capítulo: Paris e os irmãos Lumière.