Mostrando postagens com marcador Ricardo Darín. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Ricardo Darín. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

“Todos lo saben”/“Everybody knows” (Asghar Farhadi, 2018): melodrama revirado

Asghar Farhadi, artífice de duas obras premiadas com Oscars de Melhor Filme Estrangeiro entre em 2012 e 2017 – A Separação (Jodaeiye Nader az Simin, 2011) e O Apartamento (Forushande, 2016) –, redireciona a objetiva do Irã a um vilarejo enfronhado na Espanha, reino cuja luz dourada inesperadamente escamoteia arraigados preconceitos. 
Farhadi nunca consegue ser tão eficiente distante de sua terra natal quanto o é entre os seus. Seus filmes oscarizados – o primeiro, uma obra-prima – são bastante mais bem resolvidos que O Passado, filme realizado entre ambas, com o qual ele migra do Irã à França, debruçando-se longa e arrastadamente sobre um casal multiétnico composto por uma francesa (Bérénice Bejo) e um iraniano (Tahar Rahim), que a abandona e aos filhos para retornar à sua terra. 
A trama de O Passado equilibra-se de modo pouco estável entre o drama familiar e a trama policialesca – mistura equilibrada de forma modelar no extraordinário A Separação, e igualmente bem dosada em O Apartamento¸quiçá porque, nessas duas obras, os dramas individuais embebem-se na seara coletiva, já que o meio social é o responsável por forjar os silêncios e os cerceamentos. 
Todos lo saben, sem ser uma obra-prima, vai por este caminho mais sólido. Mergulha fundo numa família tradicional espanhola, lançando luzes sobre as suas fissuras. Eu ouso pensar que, nesta obra, o objeto central é o gênero melodramático: que ao mesmo tempo serve de molde à intriga narrada pela obra e é revirado e ironizado, já que é visto de fora, pela câmera migrante do diretor. 
Dificilmente poderíamos dizer que a cinematografia ocidental é uma estrangeira para Farhadi. A Separação é, pelo equilíbrio no trabalho entre o suspense e a surpresa que realiza, pelo timing preciso de thriller que tem, bastante tributário da obra de Hitchcock. Igualmente, a presença, em suas obras, da nata dos artistas estrangeiros, denota que o diretor tem trânsito fluído pela cinematografia mainstream
Em Todos lo saben, dividem a cena três grandes: Penélope Cruz, Javier Bardem e Ricardo Darín: um triângulo amoroso, percebido logo de saída pelo espectador – o melodrama é feito de maceradas convenções, que eliminam da narrativa quaisquer porosidades. 
A trama divide-se em três atos, a exemplo do que se dá nos clássicos do gênero melodramático: 
1- Laura, personagem de Penélope Cruz, chega ao vilarejo espanhol, vinda da Argentina, com os dois filhos, para o casamento da irmã. O marido argentino queda-se doente em casa, a filha constrói a ponte entre a família e as duas nacionalidades, por meio de uma chamada de vídeo ao pai. Para além da apresentação do núcleo familiar que se consegue daí, observa-se que a presença da câmera, o myse-en-abyme, é uma constante neste melodrama, o qual, sem negar as convenções do gênero, coloca-as diante de um espelho. Já no vilarejo, a terceira ponta do triângulo ingressa na obra: Bardem/Paco, namorado de juventude de Laura. 
2- Constroem-se as tensões: a saída de motocicleta da luminosa filha de Laura, com o seu namoradinho espanhol (repetição da história de Laura e Paco); o drama da irmã mais jovem, deixada com a filha pelo marido que vai tentar a sorte noutro país; a química inquestionável entre Laura e Paco. Casa-se a irmã, enquanto, na torre da igreja cujo sino fora anos antes consertado graças à doação de Laura e do marido, pombas desarvoradas chocam-se contra o vidro, e o namoradinho da menina lhe dá detalhes do affair pregresso entre Laura e Paco. A multidão ruidosa, observada numa subjetiva pelos olhos do pequeno filho de Laura e Alejandro (Darín), ganha contornos de turba descontrolada. Tempestade, queda de energia. O nó dramático chega ao ponto culminante. Farhadi, que é bom manejador do suspense, multiplica as veredas com inquestionável ironia, para que o público se perca por elas no intuito de desvendar um crime que ainda não se deu, todavia, é prenunciado desde antes da abertura da obra, já em seu cartaz. 
3- No terceiro ato se esquadrinha o sofrimento de Laura e do marido – que àquela altura já se juntava à família espanhola – frente ao sequestro da menina. Cobra-se um resgate que os pais falidos não podem pagar. Paco, antigo funcionário dos pais de Laura, pobre e vilipendiado, que ascende socialmente depois de ter comprado as terras da antiga namorada, ouve dela a incontornável confissão da paternidade da menina sequestrada. Moralmente imbricado na ação, caberá a si o desenlace do conflito, que o obriga a abrir mão dos bens que conquistara. 
Contado assim, Todos lo saben soa um thriller previsível, já que subsumido na estrutura convencional do melodrama. A paternidade da menina é fato notório de todos, já diz o título; mesmo o público logo se dá conta do fato. 
A força do filme está, a meu ver, no olhar a contrapelo que ele lança ao gênero, minando-o a partir de sua base. 
Por exemplo, no âmbito da casa. Gênero burguês, o melodrama elege a propriedade (privada) e a família nuclear como o espaço da segurança, cercando-o por muros que explicitamente dividem o interno do externo. O vilão vem de fora, e ora insinua-se dentro do núcleo familiar, contaminando-o, ora carrega dali o herói. 
Todos lo saben adota a ambivalência, que é, no entanto, invertida. À medida que se esquadrinha a casa, a câmera faz emergir ódios vicerais. Paco é a todo o momento considerado “o estrangeiro” por aquela família tradicional; presença incômoda por sua ascensão social ocorrida após a aquisição da porção da propriedade familiar que cabia a Laura. E o mal brota, ali, não de fora, mas de dentro, cria do preconceito virulento nutrido pelo patriarca. 
Outra característica fundamental do gênero melodramático olhada com visada irônica por Farhadi é o cristianismo. Darín é Alejandro, o cristão carola que doa o dinheiro para a reforma do sino da igreja – personagem inglória, que ele desempenha com a sua costumeira agudeza. Na casa dos sogros, é ele quem puxa um anacrônico louvor à mesa, antes do café da manhã. A Paco, afirma que Deus o salvou ao ter adotado para si a filha do outro. E ao fim e ao cabo, prefere o silêncio a ter de revelar a verdade à filha. 
No plano fílmico, o silêncio ensurdecedor emerge no filme do casamento, que a família vê ad nauseam no intuito de encontrar algum indício do criminoso. Blow Up (1966), a obra-prima de Antonioni, é o mais cabal modelo de filme em que a câmera exerce o papel delator – thriller surpreendente, em que a câmera fotográfica ganha foros de câmera cinematográfica, em que os closes, manipulados pela revelação perspicaz, fazem emergir a verdade. Já em Todos lo saben, o notório conhecimento coletivo que dá título à obra surge aos olhos do mundo como escamoteamento. Nada se depreende daquelas imagens do casamento, que se desenrolam aos olhos do público enquanto a ficção feliz de uma família proba. 
Já a mencionada hipocrisia encoberta pelo manto da religião encontra outra bela imagem quando a matriarca da família narra ao pai a verdade sobre o sequestro, sob os jatos d’água do caminhão da prefeitura, que de uma mesma feita lava a ambos e ao cruzeiro, à guisa de perdão. Como se vê, embora a menina retorne, o final feliz típico do melodrama é, aqui, colocado entre aspas. O manto translúcido de água, que silencia e obnubila os velhos, ao final da obra, serve de metáfora ao barro putrefato dos preconceitos que corre subterrâneo no seio dessas famílias tradicionais pretensamente solares, emergindo a qualquer possibilidade de surgimento do novo, a qualquer ameaça de abalo do status quo, e engolindo tudo por onde passa, com a sua viscosidade inescapável.

sábado, 19 de julho de 2014

O encanto de Campanella: de novo “O segredo de seus olhos”

Vivendo dias de ressaca, passados os derradeiros momentos de escrita da tese. Retorno ao fundamental “El secreto de sus ojos” (2009), que vi pela primeira vez quando havia acabado de ingressar no doutorado. Apesar da aparência empedernida, sou um bocado nostálgica e emotiva. O mundo novo descortinado pela cinematografia de Campanella, descoberta a partir de “O segredo...”, encontrou ressonâncias no trabalho de pesquisa que eu acabava de engatar. Daí a revisitar tantas vezes o filme, em meio às alegrias (muitas) e aos dissabores (ocasionais) da vida acadêmica. 
Não surpreende, portanto, a escolha do tema deste post. Tampouco meu olhar renovado ao filme, que da primeira vez bebi com voracidade e, resenhando-o no calor da hora, talvez não lhe tenha feito justiça a contento. Porque, apesar de meu enamoramento instantâneo, vi nele, sobretudo, a ingenuidade de uma love story não consumada – anacronia mal resolvida mesmo com o recuo temporal de parte da história – quando, ao contrário, o filme tece uma ode ao amor Romântico cuja delicadeza (e, não obstante, densidade) encontra par num dos maiores monumentos do cinema mundial, que é “Um corpo que cai”/“Vertigo” (outro filme cujos sentidos multiplicam-se, escorrem-nos pelos dedos, malgrado a gente tente abarcá-los; obrigando-nos a constantes revisões). 
Na obra de Campanella, como na de Hitchcock, o envolvimento amoroso comezinho pouco importa. Em ambos, amor e morte também estão indissoluvelmente imbricados. E é comum, ao diretor argentino e ao inglês, a inserção, na história, de um dispositivo claramente ficcional: a ficção é o cadinho no qual a realidade amalgama-se à ilusão, funcionando, a mistura, como refrigério ao mundo pragmático e vazio: 
O John Fergusson de James Stewart compra a história do falso amigo, cuja mulher estaria supostamente possuída pelo fantasma de uma ancestral insana. Burila-a ele mesmo, à medida que segue Madeleine-Kim Novak: pelas ruas de São Francisco, pela herdade longínqua, pelo milenar vale de sequoias... Para, cada vez mais, tornar-se (e a nós) personagem da ficção de outrem, acabando por reescrevê-la sombriamente, quando sua amada é morta. A ressurreição de Madeleine, a partir do corpo pouco convincente de Judy – necrofilia simbólica de incrível sutileza, já que ambas as mulheres tratavam-se de uma só, a atriz que dá corpo à história do bandido –, faz-nos lembrar outra grande história de amor do passado, de mal-encoberta bizarrice e considerável dose de insanidade: Inês de Castro é, depois de morta, coroada rainha de Portugal – com direito mesmo a um séquito a beijar suas mãos pútridas, como nos lembra Camões. 
Em “O segredo de seus olhos”, Benjamín-Ricardo Darín vive com Irene-Soledad Villamil um amor platônico que resultaria ridículo, se a gente não o situasse neste mesmo enquadramento romântico stricto sensu; quase um amor cortês segundo o qual se sublima a conjunção carnal não porque ela levaria ao abalo da estrutura social, como soia na Idade Média, mas porque nenhum prazer efetivo é tão sublime quanto o imaginado. A substância, mesma, da imaginação, retira o ato de sua trivialidade para elevá-lo aos píncaros de um “ideal” que é, como patenteia o vocábulo, obviamente inatingível. No dia-a-dia estressante, o sexo rareia; o amor fenece em meio às incontáveis obrigações práticas e às crescentes diferenças entre o casal: a criação dos filhos, o pagamento dos carnês, os roncos do marido, a irascibilidade da sogra, a futilidade da esposa, etc., etc., etc. 
Certas diferenças fundamentais para a separação do casal fazem-se presentes desde sempre, sendo escamoteadas no instante primeiro do arrebatamento amoroso. E são para sempre enterradas, caso o par tragicamente se separe (como é o caso da mocinha assassinada e de seu marido), ou, então, nunca venha, de fato, a se unir (como Benjamín e Irene). Benjamín, alter-ego do diretor, reencontra Irene passados vinte e cinco anos da separação abrupta. Ambos estão no inverno da vida: ele, um doutor honoris causa divorciado e sozinho, ela, uma magistrada em plena função, casada e infeliz no amor. 
Benjamín olha para Irene, mas vê a advogada em início de carreira por quem se apaixonara à primeira vista. Deseja fazer literatura sobre o caso da mocinha estuprada, mas recria um passado embebido no presente: em que o amor prematuramente interrompido enlaça-se àquele nunca revelado – os olhos do criminoso passional e os do colega de trabalho enamorado misturados, num mesmo enlevo. Morte e amor unidos. Campanella, em entrevistas, faz eco ao que Benjamín reverbera no filme. Glosando seu personagem, surpreso com a intensidade do amor do jovem viúvo pela esposa morta (Um amor infenso à passagem do tempo, aos problemas cotidianos, para sempre imenso.), o diretor sublinhou interessarem-lhe, sobretudo, os sentimentos não realizados. 
A ficção é, desta vez, tecida de saída pelas mãos do protagonista. Cabe a si coordenar passado e presente, recompostos, ambos, na velha máquina de escrever quebrada que embalara o cotidiano da repartição e o nascimento do amor platônico. O instrumento dará corpo ao redescobrimento do tempo e à derradeira confissão do amor – velada aos olhos do público, piscadela de olhos matreira do diretor, a convidar também o espectador à ficcionalização; afinal, nada que o casal fizesse diante das câmeras seria mais intenso que o enlace antegozado do outro lado da tela, por quem acompanha a história. 
O encanto do filme está na originalidade com que ele desenvolve o tema. Campanella equilibra-se, como sempre, na corda bamba que separa o drama febriciante da comédia escrachada. Desliza entre acontecimentos e sentimentos com doses de autoironia, sensibilidade e surpresa notáveis: A cena inicial, das imagens nebulosas da estação e dos amantes a se separarem – terminando pelo rasgar da página manuscrita e pela censura de Benjamín a si próprio, por estar sendo piegas demais; os desdobramentos que levam o protagonista ao estádio de futebol – onde funde-se a paixão coletiva à do personagem e à do diretor –, cena das mais bem realizadas da cinematografia contemporânea; o papel dilacerante que cabe ao marido, obrigado pelas circunstâncias a revisitar diariamente a sua debacle, já que se torna carcereiro perpétuo do assassino... 
Para o sucesso da tessitura do drama, desempenha papel fundamental o glorioso elenco arrolado: comedido, sincero, entregue à proposta do diretor. Para além da estratégia acertada de se colocarem os mesmos artistas a desempenharem-se a si próprios, no passado e no presente – efetivação cabal da permanência de um tempo sobre o outro – está a qualidade do conjunto a tornar verossímil o tour de force. Notadamente de Villamil e Darín, dos quais sou fervorosa devota desde então. 
A tensão implantada pelo violento desaparecimento da jovenzinha é arejada por um bem-vindo humor portenho, que, se não desdenha do drama, também não se joga de cabeça nele. Por isso o desfecho luminoso, a acenar com a promessa de uma intraduzível felicidade. Daí, Campanella distancia-se do pessimismo hitchcockiano, a negar salvação à pecadora no alto do campanário, a contar uma história que ironicamente denuncia os perigos da ficção.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O show de Soledad Villamil no SESC Belenzinho, em São Paulo (25/08/2011)

Conheci Soledad Villamil primeiro em “O segredo de seus olhos”, filme que tanto me encantou que eu o vi três vezes no cinema – e escrevi aqui uma resenha pra lá de passional, como mais de um leitor fez questão de ressaltar. A qualidade do roteiro, a interação impecável entre Soledad e o co-protagonista Ricardo Darin, a direção brilhante de Juan José Campanella: o “Segredo...” me proporcionou uma daquelas revelações que raras vezes tenho nas salas de cinema – embora seja assídua freqüentadora delas; por isso, aplaudi de pé a Academia de Artes Cinematográficas por premiá-lo com o Oscar de Melhor Filme e, assim, permitir sua carreira nas salas de cinema dos quatro cantos do mundo.
O filme também me é especial porque me ofereceu chave de entrada ao cinema argentino, que eu conhecia apenas esparsamente até que Soledad, Darin e Campanella me obrigaram a buscar avidamente suas filmografias. Do percurso pela produção do país vizinho me ficou a percepção de que há nele uma homogeneidade da qual nós infelizmente carecemos. Mas isso é questão para outro post. Neste, quero me concentrar em Soledad. Por um motivo muito simples. Porque a sensibilidade artística, a dedicação ao ofício, a sensatez e a modéstia são coisas que me comovem profundamente. E como é raro encontrar tudo isso num só corpo...
Que Soledad é uma grande atriz apercebe-se tão logo se põe os olhos na sua performance em “O segredo de seus olhos”, no qual ela realiza um tour de force ao interpretar as duas fases da vida da advogada que é objeto de devoção da personagem de Ricardo Darin. Também com o co-protagonismo de Darin e a direção de Campanella, a atriz protagonizou o belíssimo “O mesmo amor, a mesma chuva” (1999), saindo-se igualmente bem num papel menos idílico e que exigia maiores rasgos de emoção. E, pelas mãos de Adrián Caetano, despiu sua faceta romântica e incorporou magistralmente bem a esposa simples de um presidiário no drama-policial “Um oso rojo” (2002) - outro dos grandes filmes de sua carreira. Desde o romance mais rasgado ao realismo mais pungente, não há algo que Soledad não possa fazer ante as câmeras. E além disso, ela ainda canta!
Porém, não vá o leitor incluí-la no rol dos artistas (tão comuns por aqui) que enveredam pelos caminhos da música sem nenhum talento, apenas para promoverem por meio dela suas carreiras na televisão e vice-versa. Soledad é cantora de verdade: sábia na escolha do repertório, afinada, inteligente, dinâmica no palco. Poder-se-ia dizer que ela é uma verdadeira diva, mas não creio que ela, tão modesta, se entusiasmaria com um rótulo assim pomposo. Quem prestigiou os shows que ela fez em Porto Alegre e em São Paulo nos dias 23 e 25 deste mês entendem o que afirmo.
No de São Paulo, no qual estive, Soledad conseguiu materializar no palco a arte pura – aquela que rompe as barreiras da língua, das classes sociais, dos gêneros. Ela começou cativando o público não apenas com sua elegância e beleza, trocando com ele algumas palavras em português quase sem sotaque – prova objetiva da admiração que explicitou ter pelo nosso país. Mas isso adiantaria pouco se não estivesse somado àquela artistry que ela tem e que por certo foi buscar do passado – nos artistas cujas músicas ela escolheu interpretar ou nos grandes cantores da música mundial. Soledad deu ao público o que de melhor tem a oferecer como atriz e como cantora. Sua faceta de atriz compareceu no modo certeiro como que ela contextualizava cada música que iria cantar. Seu talento em engendrar personagens tão dessemelhantes nas telas permitiu-lhe atingir agudamente os sentimentos que cada letra pedia. E seu timbre caía como uma luva nas milongas e nos tangos de outros tempos que ela escolheu trazer ao palco.
Se isso não bastasse, sua qualidade de entertainer perpassou cada um dos minutos da apresentação: na alternância entre canções trágicas e bem-humoradas; na interação sempre inteligente com o público e no interesse que ela conseguiu fomentar para cada uma das canções escolhidas. Não pensei que outra artista, além de Judy Garland, pudesse borboletear com essa leveza e eficácia entre os gêneros e atingir sempre o ápice da emoção estética. Que alegria saber que ainda é possível fruir isso ao vivo. Prova mais aguda disso foi quando ela cantou “Maldigo del Alto Cielo”, canção composta por uma Violeta Parra às vésperas de cometer o suicídio por amor. Sua sublime interpretação – arrebatada e sincera – vivamente emocionou o público (e, pelo que pude perceber, também a cantora). Eu, que sempre procuro manter a compostura quando estou fora de casa, me vi em lágrimas neste e noutros momentos do show. Ao final, como não podia deixar de ser, Soledad foi ovacionada pelo público que ocupava a plateia do SESC Belenzinho – muitos que nunca a haviam visto no cinema ou cantar; outros que não conheciam o espanhol, porém, juraram compreender tudo o que ela dissera: prova enfática de que a língua da emoção é uma só.

Deixo os leitores com o vídeo oficial de Soledad cantando “Maldigo Del alto cielo” e os convido enfaticamente a prestigiarem-na no teatro, no cinema, no Youtube... Nesse nosso tempo de malbarateamento da arte, como estamos precisados de artistas de verdade como ela!


*
As fotos eu emprestei da página da cantora no Facebook.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Ser ou não ser, eis a questão...

Não, não estou em meio a uma crise existencial. Antes o contrário: depois de terminada a correria do semestre, deu-me uma vontade imensa que retomar um projeto de post sobre alguns usos que o cinema fez do famoso monólogo em que o torturado príncipe da Dinamarca, depois de assombrado pelo espectro do pai, faz desfilar seus fantasmas diante da audiência. A cena, que abre o terceiro ato e situa-se bem no meio de Hamlet, sublinha com maestria (e a partir de agora deixarei de lado os óbvios adjetivos elogiosos, desnecessários, já que falamos de Shakespeare) o desespero vivido pelo protagonista - cristão e político exemplar que almeja punir a mãe pela entrega sexual desta ao assassino do pai dele, o qual além de tudo era cunhado da mulher, ligação considerada incestuosa naquela corte. A célebre cena se sucede ao encontro entre a rainha, o novo rei e os dois amigos de infância de Hamlet, convocados à Dinamarca pelo rei para que pusessem um freio na loucura cada vez mais flagrante do herdeiro do trono. Na cena, Hamlet examina dialeticamente, sob a ótica cristã, o porquê de os sofredores não colocarem fim às suas vidas:

Morrer - dormir -
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!
Os sonhos que hão de vir no sono da morte
Quando tivermos escapado ao tumulto vital
Nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão
Que dá à desventura uma vida tão longa.
(tradução de Millôr Fernandes)

E paramos por aí na citação porque o solilóquio já é bem conhecido, se não por meio da peça, por meio das dezenas (literalmente) de versões cinematográficas dela rodadas desde que, em 1889, a diva Sarah Bernhardt aceitou a incumbência de desempenhar defronte de uma câmera da Pathé o duelo final entre Hamlet e Cláudio. As versões mais conhecidas da tragédia são a de 1948 e a de 1990, protagonizadas, respectivamente, por Laurence Olivier e Mel Gibson. Ainda que a primeira seja, sem dúvida, a melhor (dando ao talentoso ator-diretor o Oscar de melhor performance, além de outros três prêmios da academia, de melhor filme, direção de arte e figurino), não consigo gostar tanto dela quanto gosto da peça - talvez porque lhe falte aquele quê explosivo que torna as palavras impressas em cada página da peça mais resplandecentes que a tradução visual delas na película. E olhem que sou bastante adepta de adaptações de obras literárias ao cinema... Talvez seja esse desconforto que me faz preferir as leituras paródicas da cena. Por isso, e porque eu estou contagiada pela alegria de final de semestre e da aproximação do Natal, vou passar por duas dessas paródias a partir de agora.

*

Comecemos pela screwball comedy "Ser ou não ser" (To be or not to be, 1942), dirigida pelo alemão Ernst Lubitsch. A comédia ocupa com razão posto em todas as listas dos 100 melhores filmes que eu conheço: ela não só é divertidíssima, com um elenco de afinação ímpar - encabeçado por dois grandes comediantes da época, Jack Benny e Carole Lombard -, mas também faz uma crítica incisiva ao Nazismo. O filme merece um post bem detido só para si, que trate dos incríveis trocadilhos a la Lubitsch e demonstre como sua estrela estava bela e impecável na pele da atriz sedutora, mas como estou preguiçosa na mesma medida em que estou alegre, deixarei a tarefa para outro dia. Usarei esse espaço para recomendá-lo entusiasticamente àqueles que admiram "O grande ditador" (1940), "Bastardos inglórios" (2009) e "Vincere" (2009) - obra prima do cinema italiano que deu o ar da graça bastante rapidamente por aqui faz algumas semanas -, pois "Ser ou não ser" sem dúvida seguiu a linhagem fundada por Chaplin e inspirou muitas sátiras maravilhosas a malucos como Hitler e Mussollini.

Carole Lombard

Nesta película de Lubitsch, a crise existencial vivida por Hamlet ganha um plano muito mais palpável. O inimigo também apresenta-se na pele de um governante autoritário, mas mil vezes mais mortal: Hitler invade a Polônia, onde habita a troupe de teatro oficial - oficial mas, não obstante, extremamente canastrona... - chefiada pelo exibido Joseph Tura, interpretado por Benny. Por meio de sucessivos usos do teatro-dentro-do-teatro - estratégia tão querida por Shakespeare e fundamental em Hamlet para que o príncipe se certifique de que o tio efetivamente matara-lhe o pai - Lubitsch faz sua troupe polonesa exercer papel fundamental na resistência ao nazismo e, por fim, escapar ilesa do país. O uso da representação dentro da representação é tão engenhoso na película que deixa o espectador de primeira viagem completamente perdido - o grupo atrapalhado personifica tão bem o alto escalão nazista que torna difícil sabermos quem é o ator e quem não é, o que, em última instância, sublinha a crítica, já que, como bem mostrara Chaplin, os dois ditadores europeus, embora perigosos, não passavam de dois canastrões.
"Ser ou não ser", portanto, desce da esfera religiosa para empunhar as armas na luta pela liberdade individual - armas que são, neste contexto, o mise-en-scène e as interpretações. O Shakespeare é aqui modernizado não apenas para saciar o gosto do público mas para atender a um anseio do momento histórico. O famigerado monólogo, dito textualmente por Tura, salienta o fato ainda uma vez, já que apenas tem como utilidade servir de deixa para que os apaixonados de sua esposa deixem a plateia para irem se encontrar com ela. Vejamos a sequência, deixando de lado a ironia trágica que o filme encerra - já que foi o último rodado por Carole Lombard, morta no auge do talento e da juventude quando o avião onde viajava foi abatido pelo mesmo inimigo contra o qual "Ser ou não ser" se bateu.



*


E agora, paremos um pouco em "O filho da noiva" (2001), do argentino Juan José Campanella - uma de minhas mais novas paixões.
Quando escrevi sobre "O Segredo de seus olhos" (2009), esbocei minha impressão de que seu diretor fora influenciado pelas screwball comedies. Depois de passear por sua filmografia, acho que posso transformar minha suspeita em certeza.
"O filho da noiva" não deixa nem um pouco a desejar quando comparado àquele que lhe deu o Oscar. Campanella aproveita-se mais uma vez da versatilidade de Ricardo Darín, que, se no "Segredo..." está um galã que nada deve a Clark Gable, aqui está magistral como o homem comum que luta para administrar uma ex-mulher, uma filha pré-adolescente, um restaurante e uma mãe cuja memória se esvai devido ao Alzheimer.
O filme abre num flashback nostálgico da infância do menino Rafael, na época em que ele era um Zorro de brinquedo e a mãe era sua heroína. Uma brusca viagem ao presente mostra uma mãe já num estado de avançada senilidade e um filho esquivo que em nada lembra o herói que fora em criança. A situação se agrava quando seu pai, um romântico à moda antiga, decide expor sua esposa aos olhos dos conhecidos, já que quer casar-se com ela na igreja e, assim, realizar o sonho de juventude da mulher.
O enredo, que daria um dramalhão bem ao gosto das películas de Carlos Gardel, dá as mãos à comédia devido à perícia com que Campanella conduz seu elenco amparado no excelente roteiro do qual foi um dos responsáveis.
O filme está recheado de saborosos diálogos e situações, os quais muito se aproximam daqueles que mestres do gênero criaram nos Estados Unidos entre 1930 e 1960 (o trecho que upei de "To be or not to be" oferece-nos exemplo cabal do quão bem aproveitado foi esse gênero). A réplica da ex-mulher de Rafael à afirmação dele que desejava mudar-se para o México e levar a filha consigo é impagável: "E quem vai dar aulas pra ela? O professor Girafales?". A sequência do casamento do velho casal é uma das melhores que já vi - nela, humor e poesia entremeiam-se de um modo como eu apenas vi antes em obras-primas da comédia amalucada: como a sequência de "Midnight" (1939) em que Don Ameche descobre o esconderijo de Claudette Colbert e, enquanto ambos trocam farpas, descobrimos que foram feitos um para o outro; ou a sequência do casamento de Tracy Loyd e C. K. Dexter Haven em "Núpcias de Escândalo" (1940). Como Mitchell Leisen e George Cukor, Campanella consegue criar situações cômicas extremamente humanas - o que é, como os mestres do ofício não me deixam mentir, o caminho seguro para a atemporalidade.
Agora, pararei de falar antes de inserir aqui mais algum spoiler - esse filme merece a visita do leitor e eu não tenho o direito de estragar sua fruição.
Porém, antes de tudo, Shakespeare: ele aqui surge na sequência mais hilária da película, quando o ator figurante Nino Belvedere (ótima performance de Héctor Altério), amigo do protagonista, conta-lhe que está apaixonado pela namorada daquele. O monólogo de Hamlet é declamado em primeiro plano, numa sequência deliciosamente estapafúdia que ganha ainda mais irrealidade na medida em que, em segundo plano, os amigos engendram um arranca-rabo que muito se aproxima daquelas loucuras dirigidas por Blake Edwards (diretor de Hollywood que melhor trabalha a relação entre primeiro plano e plano de fundo no gênero cômico, penso eu) entre os anos 60 e 80, como "Um convidado bem trapalhão" (1968). Como bem fizera Lubitsch no inicio dos anos 40, Campanella inverte aqui os ponteiros, transformando a mais viceral tragédia na mais arrematada comédia - comédia que não deixa de trazer consigo o gosto daqueles passionais - e belos - tangos argentinos cantados por Gardel, Hector Varella e pelo próprio Nino Belvedere quando este descreve ao amigo a fossa em que mergulhara quando perdeu esposa e filha. E, por falar em tango, alguém está se lembrando de Billy Wilder, de "Quanto mais quente melhor", do Jack Lemmon e do gabiru?

sexta-feira, 14 de maio de 2010

“O segredo de seus olhos” (2009): Ah, o amor... “That crazy little thing” numa boa lembrança do Oscar 2010.



Nessa semana, voltei ao cinema para rever o filme que vi na semana passada. Como tenho muito menos tempo de ir ao cinema do que gostaria, raramente costumo fazer isso. O porquê de tê-lo feito talvez se explique na voz do beberrão Pablo Sandoval do filme argentino “ El Secreto de sus ojos”, (2009): “Una passión es uma passión”. Melhor não dizer muito mais do que isso mesmo. Agora, mais do que nunca, ando acreditando que o raciocínio lógico pode pouco quando é submetido a um sentimento de empatia que surge de modo quase que inexplicável e toca a alma.
Como explicar “El Secreto de sus ojos”?
É certo que ele não é um filme originalíssimo. Eu poderia listar as razões disso. Para começar, a love story açucarada e algo inverossímil de Irene e Benjamin – um amor à primeira vista, recíproco, mas que só se concretiza depois de 25 anos, é algo aceitável nos folhetins cinematográficos dos anos 40, não no ano de 2010, mesmo que retrate um acontecimento que teve lugar em meados de 1970 - ápice, aliás, da revolução sexual feminina. Aí o leitor me pergunta: mas então essa fantasia adolescente fora de época é dispensável.
Ao contrário. O filme é absolutamente imperdível. Belíssimo e divertido. Um “Aconteceu naquela noite” moderno. Não porque a narrativa dele tenha alguma relação com a película norte-americana. Talvez porque ambos trabalhem um mesmo símbolo. O casal que tem uma química impecável, mas que vive trocando farpas, remete ao arquétipo dos opostos que se atraem.
Lembrei-me do tour de force de Claudete Colbert e Clark Gable enquanto via o filme. Deliciei-me no cinema assistindo a uma comédia física e a um humor refinado bastante tributários das screwball comedies que vejo na sala de minha casa em branco-e-preto e tanto amo. Vê-los na tela grande foi um deleite.
Por outro lado, o filme tem uma visada moderna muito bem vinda. A trama se constrói sobre um caso de violência sexual seguida de assassinato, e isso é pintado com todas as cores, na explícita nudez da moça estuprada, no sangue que lhe empapa o corpo, nas genitálias do estuprador que se trai nas mãos da advogada e agente federal Irene. Entremeiam-na os atos estapafúrdios e ditos cômicos proferidos pelo Don Juan beberrão Sandoval, para a diversão e o desespero de Irene e Benjamin.
É certo que o artifício de se entremear cenas cômicas e dramáticas é velhíssimo – remonta ao menos ao melodrama, para ficarmos nesse gênero tão querido pelo cinema e não nos remetermos às tragédias de Shakespeare ou aos mistérios medievais. Aliás, sua própria idade mostra quão eficiente ele é.
Contudo, quem costuma passar os olhos na produção cinematográfica contemporânea percebe como é difícil tirar rendimento cênico desta receita. “O segredo...” consegue-o magistralmente. A reação do auxiliar de departamento Benjamin quando vê o corpo da morta, segundos depois de ter feito pilhéria sobre a tarefa da qual fora incumbido, é comovente. Seus olhos inquirem os olhos da vítima, sem vida e repletos de perplexidade. Eles o cativam. Sua missão, dali em diante, será ler aquilo que eles tentam dizer. O percurso leva-o ao álbum de fotografias da moça, guardado religiosamente por seu marido, como se os retratos fossem emanação dela, guardassem sua aura. Nos olhos com que um namorado de adolescência da morta a olha, Benjamin encontra a confissão de um crime que ainda estaria por vir.
Apenas Benjamin pode enxergar a confissão do amor no olhar do futuro criminoso passional, pois os olhos com que o próprio Benjamin sempre fitava sua supervisora também o traiam. “Ele olha adorando-a. Seus olhos dizem demais. Melhor seria que se calassem.”, Benjamin relembra a Irene 25 anos depois, também olhando-a no fundo dos olhos, confessando ainda uma vez o que sente. Tão piegas, mas narrado de um modo irresistivelmente bonito...

Os olhos do assassino, os olhos de Benjamin...

O modo como a narrativa é conduzida, aliás, é um dos pontos altos do filme. Os muitos flashbacks dos anos 70 constroem simbolicamente a presença indelével do passado no presente. A história é narrada quase em sua totalidade a partir do ponto de vista do protagonista. O romance sobre o episódio violento, escrito por ele 25 anos após o ocorrido, aponta sua preferência por viver o passado em detrimento do presente. Seu presente é vazio, tão cheio de “nadas” quanto a existência do esposo da moça assassinada (e quanto a existência que este tantas vezes reiterava desejar para o assassino dela). Benjamin revisita o passado lançando nele os olhos do presente. Quando se vê só, resolve desenterrar o caso da jovem professora morta. Não porque precisava lançar luzes sobre ele, mas porque a história passional parecia demasiadamente enlaçada à que vivera com Irene. Revelá-la significava trazer sua própria história de amor à baila, finalmente revelá-la e, quem sabe, modificar o seu desfecho.
Todas essas peças são bem amarradas no final: na coesão da atitude do marido da vítima; nas letras da velha Olivetti desde sempre usada pelo protagonista que finalmente o ajudam a dizer algo que ele temia verbalizar... E as atuações – especialmente de Ricardo Darín; Soledad Villamil e Guillermo Francella - são tão apaixonantes quanto a história. O que eu estou dizendo? São as grandes responsáveis pela história ser tão apaixonante. Vi que a dupla de protagonistas co-atuou noutra película, “El mismo amor, la misma lluvia” (1999), sob a batuta do mesmo diretor Juan José Campanella. Vou vê-lo... É tão bom descobrir caminhos que levam a outros lugares além de Hollywood...
Aliás, a Academia de Artes Cinematográficas premiou a película com o Oscar de melhor filme estrangeiro. Infelizmente pouco posso dizer dos demais concorrentes à categoria, que, pelo que ouvi, arrolou coisas muito mais interessantes que a referente aos títulos da casa. Está mais do que claro que aconselho uma visita ao filme, não?