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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Pigmaliões e Galateias modernos: a lenda grega renascida na cultura de massas

Pygmalion and Galatea, de Jean-Léon Gérôme (cerca de 1890)

Há muito tempo atrás, quando homens e mulheres nem sonhavam em se sentar lado ao lado no teatro e muito menos supunham que, num futuro muitíssimo distante, poderiam se sentar numa sala escura e assistir ao desempenho de artistas que nem ao menos estavam lá, havia um rei muito rico e idealista, tão dedicado à sua arte que afastava de si qualquer mulher (nenhuma era tão bela quanto suas criaturas). Uma criatura em especial - a mais perfeita - cativara-o: Galateia. E tanto ele a desejou que conseguiu que a deusa Afrodite transformasse-a em mulher. Enfim, ambos puderam se casar e foram felizes para sempre.
O momento da metamorfose da estátua em fêmea capturou a atenção de inúmeros artistas ao longo dos tempos. Gérôme pinta um Pigmalião poeta (daí as máscaras do teatro antigo dispostas na parede de sua oficina) que quase queda de joelhos ao ver seu sonho tornando-se realidade. Hoje, um par de mil anos depois, o conto de fadas continua impregnado na memória coletiva, que lhe deu novos contornos com o passar dos tempos. O amor romântico foi inventado, pondo em segundo plano os sentimentos que motivavam a união homem/mulher, e então Galateia não precisa mais dizer ao seu criador: "tu és o meu senhor, devo-lhe a vida, por isso serei sua esposa...". O renascimento de Pigmalião e Galateia no século XX é digno de um registro muito mais detalhado que este que vou fazer agora, neste feriado de folia carnavalesca. Mas como estou ansiosa para prestar uma homenagem à Lorena, minha amiga blogueira manauara admiradora da Julie Andrews, vou fazê-lo agora com o material que tenho em mãos e na cabeça.

Julie Andrews na montagem teatral de My fair lady (1956-1962).

Quando Julie Andrews subiu no palco do nova-iorquino Mark Hellinger Theater em 15 de março de 1956 para encarnar a encardida - mas o mais limpa que podia -, ingênua e desbocada Eliza Doolittle, ela carregava o peso da tradição. Somava-se à tradição milenar uma muito mais recente, que remontava à escritura do "romance em 5 atos Pygmalion" (1912-1914), da autoria do dramaturgo irlandês George Bernard Shaw e à película hollywoodiana homônima roteirizada por Shaw, Lipscomb, Cecil Lewis, Ian Dalrymple e Anatole de Grunwald (1938) - ambos sucessos de público.

Primeira página de Pigmalion publicada na Everybody's Magazine (novembro/1914)

Detentor de um extenso conhecimento sobre o teatro e a vida teatral londrina, Shaw começou sua carreira de dramaturgo em 1893 com Mrs. Warrens Profession. Antes disso, fora romancista e crítico musical nas folhas de Londres. Dois anos depois, assumiu o cargo de crítico de teatro no The Saturday Review, deixando impressas páginas formidáveis - modernas - de crítica teatral, que muito clareiam a compreensão de Pygmalion se a peça for lida à luz delas. Há no Professor Higgins de Pygmalion muito da irônica acidez que verte da pena de Shaw quando ele fala sobre os melodramas sanguinolentos e grandiloquentes de Sardou - desempenhados por uma Sarah Bernhardt que ele já julgava decadente, impossibilitada de levar o drama moderno à cena - ou quando se vira contra os artistas cujos sotaques tornavam Shakespeare risível no palco.
Shaw é Higgins. O modo como ele se vira contra as produções em cartaz nos palcos londrinos é muito semelhante àquele que Higgins usa para se referir à inaptidão do povo no que toca ao "Inglês" - variedade culta da língua que ele acreditava ser a "língua" por excelência, sinônimo de distinção social e responsável pela divisão da sociedade em estamentos.
Com Pygmalion, Shaw explicita o tipo de peça teatral que defende. Sua crítica ao melodramaturgo Sardou repousa no fato de ele escrever trabalhos pouco teatrais, por exemplo, de optar por desenvolver ações importantes fora do palco e colocar em cena um personagem que as relata ao público. Isto poderia ser narração ou oratória, mas estava muito distante do que ele considerava teatro. E não há nada dessa sardiotice (como ele próprio diz) em Pygmalion. Há, sim, diálogos brilhantes, réplicas coloridas e um mise-en-scéne perfeito. O dramaturgo irlandês mostrava-se um analista atilado de seu tempo. Este seu "romance em 5 atos", como outras peças suas, busca instruir a sociedade por meio do riso. Para que algo seja aprendido com a obra teatral era preciso que, antes, o espectador fosse convidado ao riso - crença que talvez fosse resquício dos dramas burgueses que povoaram os palcos do século XIX e objetivavam educar através do humor. Porém, Shaw é original quando distribui as forças entre membros de classes sociais tão distintas - Higgins é um intelectual de classe média que adquiriu notoriedade pelo nascimento e pela carreira; Eliza é uma vendedora de flores cuja vida beira a mendicidade, uma zé-ninguém aprisionada à sarjeta devido ao seu nascimento pobre e à sua parca educação.

Mrs. Patrick Campbell desempenhou Eliza Doolitle na primeira encenação de Pygmalion em Londres. A premiére foi em 11/4/1914.

Não há na peça uma defesa estrita da moral burguesa - como observa-se nos dramas burgueses. Ela é, sim, questionada por boa parte dos personagens principais de Pygmalion. Não só o pai de Eliza fala em tom de mofa da "middle-class morality" da qual ele foge com a mesma pertinácia com que o diabo foge da cruz, como o próprio Higgins critica a rigidez da pirâmide social ao atestar que ela se sustinha unicamente devido ao preconceito: uma moça que vendia flores nas ruas de Covent Garden não era em nada inferior a uma florista estabelecida numa loja, a uma duquesa ou à rainha de Sabá. Para comprová-lo, propõe uma profilaxia que ainda hoje é revolucionária - a educação. O fato de Eliza ser aprovada no duro exame que realiza no chá da mãe de Mrs. Higgins (no baile da embaixada, no caso de My fair lady) comprovam que a apropriação do conhecimento abre as portas para o sucesso social.

Mrs. Patrick Campbell (a fotografia é de antes de 1897)

Eliza e Higgins são extremamente humanos. Com eles, Shaw sobreviveu à prova do tempo - não podemos dizer isso de muitos dramaturgos do período. Higgins é um intelectual de meia idade que daria algum trabalho a Freud. Ele visivelmente tem uma fixação pela mãe (Shaw atesta isso literalmente ao falar da peça). Daí, talvez, o fato de nunca ter se casado. É uma criança grande. Uma fase de seu desenvolvimento psíquico certamente não foi fechada... Assim ele é descrito: "Ele aparece na luz da manhã como um robusto, vital, apetitoso tipo de homem de mais ou menos 43 anos (...). Ele é do tipo enérgico, científico, voraz, até mesmo violentamente interessado em tudo o que pode ser estudado como um objeto científico, e despreocupado consigo e com os outros, incluindo seus sentimentos. Ele é, de fato, a não ser por sua idade e tamanho, como um bebê muito impetuoso "anotando" ansiosamente em voz alta e requerindo quase o mesmo tanto de atenção para que seja impedido de cometer travessuras." (começo do ato 2 - perdoem a tradução apressada).

Julie Andrews na montagem teatral de My fair lady

Eliza é uma jovenzinha pobre igual a tantas outras, e prova disso é a cena um tanto quanto cruel que se desenvolve no ato 1 logo após ela lançar seu cesto de flores aos pés de Higgins e coletar a esmola que ele deposita nela:
Ela toma o taxi que Freddy pegara para ele, a mãe e a irmã, pronuncia desajeitadamente ao motorista que quer ir ao "Bucknan Pellis" ("Buckingham Palace", Shaw coloca ironicamente entre parênteses). Chegando lá, revolta-se com o motorista devido ao valor da tarifa e ele, penalizado, nada cobra. Já em casa, encontra as poucas tralhas que possui: papel de parede velho e respingado, uma fotografia de um artista popular (o cinema era a maior diversão das camadas populares da época), fotos de mulheres bem vestidas grudadas pela parede, uma gaiola vazia. Aqui, a rubrica dá lugar à veia discursiva de Shaw - Pygmalion mistura romance e teatro, esferas pelas quais seu dramaturgo movia-se sem dificuldades: "Aqui Eliza, muito cansada, mas excitada demais para ir para a cama, senta-se, contando suas novas riquezas e sonhando e planejando o que fazer com elas, até que o gás se apaga, quando ela aproveita pela primeira vez a sensação de poder colocar outro penny [no contador do gás] sem se recentir disso. Esse humor pródigo não extingue sua preocupação com a necessidade de economizar o suficiente para impedi-la de calcular que ela pode sonhar e planejar na cama de forma mais barata e quente do que sentada sem uma lareira. Por isso ela remove seu xale e saia e os inclui na sua micelânea de roupas de cama. Então ela tira seus sapatos e entra na cama sem se trocar." (fim do ato 1)

Audrey Hepburn na versão cinematográfica de My fair lady (1964)

As duas forças se chocarão quando Eliza decide tomar Higgins como seu professor de fonética. Depois de quase a escorraçar de sua casa do modo mais egoisticamente infantil possível, ("Pickering, devemos convidar esse repolho para se sentar, ou devemos jogá-la pela janela?"), ele aceita o desafio imposto por seu amigo intelectual e resolve ensinar à moça o inglês que lhe tiraria da sarjeta. Transforma-a em sua bonequinha - não creio que o sobrenome "Doolittle" tenha sido escolhido ao acaso - e a manipula à exaustão almejando soprar para dentro do cérebro da garota a alma que pairava no dele. Porém, durante o percurso, o professor Higgins descobrirá que ele é menos parecido com "Pigmalião" do que supunha. Sua pupila não era a pedra disforme que ele pudesse esculpir até dar vida - era um ser humano que tinha um caráter próprio e, nesse sentido, era muito parecida com o mestre. Nenhum deles se dobra ao outro.
Shaw não bafeja nenhum romantismo em Pygmalion. O egocêntrico Higgins, ao contrário do rei Pigmalião do Chipre, não se apaixona por Eliza, a qual, por sua vez, mostra-se muito mais inclinada ao jovem Freddy - abraçar o mestre devia assemelhar-se, para a moça, a abraçar o dicionário universal de fonética que ele escrevera. A cena em que Eliza abandona o mestre e foge com Freddy (transformada em My fair lady na bem escolhida canção "Show me") é prova disso. A jovenzinha, movida um pouco por seus instintos e outro pouco pelo que aprendia nos filmes, retribui a atenção daquele que alimentava seu romantismo com cartas de amor - daí os beijos que ambos trocavam no taxi que os levava para bem longe do frio e "científico" Higgins (cena suprimida de My fair lady).

Leslie Howard e Wendy Hiller na versão cinematográfica de "Pygmalion" (1938), que teve Shaw como principal roteirista.

O desfecho da peça - Eliza despedindo-se orgulhosa de Higgins depois de anunciar que se casaria com Freddy - parece, portanto, cabível. Ela conclui sua formação parecendo-se bem pouco com a submissa Galateia.
Shaw levava muito a sério a sua revitalização da história clássica no panorama moderno. Para que não restasse dúvidas sobre suas decisões, escreveu um posfácio a Pygmalion em que explicava que o casamento dos jovens efetivamente ocorrera e que Higgins, a princípio reticente, depois acolhera o casal em casa e o sustentava - afinal de contas, a moça o divertia (argumento infantil que mostra a coerência do personagem). Tal nota, não sei por que motivo, foi suprimida da edição de Pygmalion e My fair lady que possuo (edição que comemora os 50 anos da estreia de My fair lady na Broadway). No entanto, li-a numa versão brasileira da peça, publicada juntamente com "Santa Joana" em 1964 (a Estante Virtual tem dezenas de cópias disponíveis de tal versão).

Pygmalion e My fair lady - edição de 50º aniversário (Signet Classics), publicada pela Penguin.

Pygmalion virou filme em 1938. A versão cinematográfica é interessante porque captura muito da peça. O Higgins de Leslie Howard tem toda a arrogância e frieza do personagem criado por Shaw, além de ter muito pouco charme. O final do filme, todavia, foi modificado. A jovem e o mestre acabam por se entender e se gostar. Porém, esse par romântico não é muito convincente. Ao ser questionado sobre a transposição da peça ao cinema, o escritor demonstra não ter se sentido muito a vontade com algumas cenas, mas usa de sua habitual ironia ao dizer que estava velho demais para se bater contra a maquinaria de Hollywood (ele tinha 83 anos na época). Além disso, mostra que sua leitura da relação travada entre Elisa e Higgins em nada mudara passados quase 30 anos da escrita do drama. Isso fica claro em sua resposta ao questionamento de Dennison Thornton, do Reynolds News londrino (de 1939).

"Numa nota à versão teatral de 'Pygmalion' você deplorava o que denominou 'finais felizes prontos que desajustam todas as histórias.' No entanto, você permitiu que fosse inserido um final feliz pronto na versão cinematográfica de 'Pygmalion'. Por quê?

Eu não permiti. Não posso conceber um final menos feliz à história de Pygmalion que um caso de amor entre um homem de classe média e meia idade, um confirmado solteirão com fixação pela mãe, e uma florista de 18. Nada do tipo foi enfatizado em meu roteiro, no qual enfatizei a fuga de Eliza da tirania de Higgins por meio de um natural relacionamento amoroso com Freddy.
Mas não posso, em minha idade, empreender trabalho de estúdio: e em torno de 20 diretores parecem ter aparecido por lá e passado seu tempo tentando pôr de lado a mim e ao Sr. Gabriel Pascal, que realmente sabe diferenciar giz de queijo. Eles planejaram uma cena para dar um aspecto de desilusão amorosa no final ao Sr. Leslie Howard: mas isso é muito inconclusivo para que valha a pena criar rebuliço a respeito."

Leslie Howard e Wendy Hiller, "Pygmalion" (1938)

My fair lady, versão musical de Pygmalion que tornaria Julie Andrews mundialmente conhecida, subiu no palco da Broadway poucos anos depois do falecimento de Shaw (que viveu 94 anos). Tenho minhas dúvidas se ele ficaria satisfeito com tal desdobramento de sua peça. Além de ser muito consciencioso sobre sua missão de teatrólogo que deveria educar a sociedade em detrimento de suprir seus anseios românticos, o escritor não parecia demonstrar grande admiração pelos espetáculos cômico-musicados. Porém, isso pouco importa. My fair lady é uma das maiores realizações do gênero. Sua coesão em muito supera "Pygmalion" de 1938.
Sim, seus personagens são muito mais leves que os criados por Shaw. Nele, Eliza encara a vida de modo muito mais otimista do que ocorre na peça que lhe deu origem. Em My fair lady não há espaço para um narrador que demonstre de forma incisiva a pobreza material e espiritual de Eliza. Há a música, que faz com que Eliza enfrente os percalços de sua miserável existência acreditando que quem canta, seus males espanta. Depois de receber a esmola de Higgins, a Eliza de Julie Andrews não vai para casa juntar-se aos molambos de sua cama para sonhar com as coisas que não pode ter. Ela parodia uma lady - serve-se de um jantar fino irreal e despede-se dos amigos em sua carruagem que é, na verdade, uma carroça que carrega a xepa para longe de Covent Garden. E canta abrindo bem as vogais à maneira como faria uma jovenzinha cockney: "All I wa[a]nt is a room somewhere/ Far awa[a]y from the cold night air...". A pronúncia culta do inglês seria [ã] e [e]. Desculpem, mas não consegui transcrever os fonemas aqui. A propósito, quem quiser se divertir com o alfabeto fonético internacional (ele não foi escrito pelo professor Higgins...) pode encontrá-lo aqui. A cena fica tão fascinante interpretada por Julie Andrews quanto por Audrey Hepburn, que deu vida nas telonas à Eliza de My fair lady. Graças ao youtube temos acesso a ambas:


Julie Andrews reproduz no Ed Sullivan Show a personagem a quem deu vida nos palcos.



Audrey Hepburn em "My fair lady" (1964). A atriz foi dublada por Marni Nixon. No entanto, seu audio original foi mais tarde recuperado e, depois, mixado à sequência. Podemos ouvi-lo aqui.


Lindas, cada uma do seu modo.
A qualidade de My fair lady deve-se à perspicácia com que Alan Jay Lerner e Frederick Loewe somaram suas habilidades como letrista e músico - respectivamente - aos argutos diálogos de Shaw, muitos usados literalmente na comédia musicada. Mas o mais evidente tour de force que a dupla enfrentou foi no momento de transformar as falas em canções. Penso que eles se desincumbiram da tarefa brilhantemente.

Cartaz de divulgação da versão teatral de My fair lady.

É claro que as danças e canções tiraram da peça algo de sua gravidade. Todavia, não vi filme musical que conseguiu capturar com mais brilhantismo a essência de seu original. Verdade que Rex Harrison tornou Higgins charmoso, acenando desde o início para a possibilidade de um relacionamento amoroso entre ele e Eliza - o qual é anunciado no final. No entanto, ele conseguiu manter a acidez do Higgins original mesmo em "I've grown accustomed to her face", canção em que declara o amor que nutre pela pupila. O modo como ele a interpreta é muito pertinente: assombrado, incrédulo. Basta ouvirmos a (bela) romântica interpretação que Nat King Cole faz da canção para percebemos como Harrison acertou em não injetar quantidade demasiada desse sentimento nela. Minha preferida de Harrison é "Why can't the English?", que tem uma importância simbólica em minha descoberta do cinema clássico: comprei o CD com a trilha original do filme nos idos de 1998, depois de tê-lo visto na TV, e cantei-a à exaustão, com a letra em punho, até memorizá-la por completo, para o desespero de minha mãe...

A letra afiada da canção sintetiza o posicionamento intelectual do professor apresentado nos primeiros atos da peça: "Olhem para ela, uma prisioneira da sarjeta/ Condenada por cada sílaba que profere/ (...)/ Ouçam-nos na rua Soho/ Derrubando os "hs" por todos os lados/ Falando Inglês do jeito que querem/(...)/ Por que os ingleses não ensinam suas crianças a falar/ Essa distinção verbal já deveria ser considerada antiquada/ (...)/ O modo como um Inglês fala classifica-o/ (...)/ Na França cada francês sabe sua língua de A a Z (na verdade, os franceses não ligam para o que fazem, contanto que o pronunciem corretamente)"... Fantástico! Aliás, essa formulação concernente aos franceses não está em Shaw, é obra de Lerner e Loewe. Como eles apreenderam bem o espírito do escritor irlandês!
Embarcando no sucesso teatral de My fair lady nos palcos norte-americanos, Paulo Autran e Bibi Ferreira viveram Higgins e Eliza nos palcos brasileiros. "Why can't the English?" ou "Por que não os ingleses?" é uma das versões brasileiras mais bem sucedidas das canções de Lerner e Loewe:


Paulo Autran canta "Por que não os ingleses" em Minha querida lady, versão brasileira de My fair lady (1962)


O sucesso de My fair lady na Broadway manteve a peça em cartaz por seis anos. Tão logo saiu, seus direitos foram comprados pela Warner e ela tornou-se veículo para Audrey Hepburn, atriz sólida e adorada pelo público, que dera até então vida às suas mais importantes personagens: a princesa Anna de "A princesa e o plebeu", Sabrina do filme homônimo e Holly Golightly de "Bonequinha de luxo".

Pôster da versão cinematográfica de "My fair lady" (1964). Audrey Hepburn e Rex Harrison interpretam Eliza e Higgins.

Miss Hepburn conheceu o céu e o inferno com esse papel. Interpretou-o com brilhantismo, protagonizando algumas das melhores sequências cômicas e dramáticas que desempenhou durante sua carreira: a reação entusiasmada de Eliza nas corridas da Ascot Gavotte e sua revolta contra o mestre - que culmina com sua partida da casa - são exemplos cabais disso. Não obstante, viu funcionar contra si o star system: foi denunciada por não ter sido a cantora das canções de Eliza (fato corriqueiro na Hollywood da época - Debora Kerr, por exemplo, foi dublada em O rei e eu) e condenada ao ostracismo (pelo menos no que toca à premiação no Oscar). A graciosidade com que a atriz se deixa fotografar com Julie Andrews - ganhadora do prêmio da Academia naquele ano pelo seu desempenho em "Mary Poppins" - demonstra que, se ela a princípio se importou com o modo como foi tratada, isso não durou muito tempo...

Audrey Hepburn e Julie Andrews na cerimônia do Oscar (1965)

Não era incomum, na época, que um artista fosse impedido de desempenhar no cinema um papel que tornara notório nos palcos (também hoje isso não é incomum): Audrey, que dera vida à Gigi na Broadway, viu Leslie Caron interpretá-la (brilhantemente, diga-se de passagem) nas telas. Todavia, a escolha da protagonista da versão cinematográfica de "My fair lady" deu ensejo a uma polêmica que, curiosamente, perdura até os dias de hoje. Lembram-se das brigas entre os admiradores das cantoras de rádio dos anos 40 e 50 - briga fomentada pelas próprias gravadoras? No caso de "My fair lady" não me parece diferente e parece servir a um mesmo objetivo: vender o objeto artístico em detrimento do objeto humano a ele relacionado.
Minha postura a esse respeito é menos incisiva. Eu não me canso de ver a Audrey vestida de Eliza - adoro-a. Emocionei-me ao ouvir a sua voz pouco potente cantando algumas canções do filme e não creio que tenha sido uma má escolha colocarem Marni Nixon para dublá-la - a trilha do filme é uma delícia de se ouvir. E fiquei fascinada - e ainda fico - quando ouço o vozerão de Julie Andrews cantando "Wouldn't it be lovely?", "I could have danced all night" e vejo-a no Ed Sullivan ou numas gravações promocionais do making off de My fair lady (outra pérola que encontrei a pouco no youtube) - é positivamente extraordinário como umas aulas de fonética fizeram com que a atriz classuda, numa "educação às avessas", se assemelhasse à garota cockney.




Making off da versão teatral de My fair lady (1956).

Todas essas histórias que ajudam a construir a História são fascinantes demais para serem resumidas a uma briga para que seja eleita a melhor. A propósito, a gravação brasileira, nos seus erros e acertos, não é menos interessante. Que presente tiveram aqueles que viram e ouviram Bibi Ferreira e Paulo Autran darem vida às versões nacionais de Eliza e Higgins - versões um pouco mais "eloquentes", mas nem por isso menos belas (aqueles que tiverem curiosidade podem encontrar as gravações aqui). Este post é, portanto, um brinde àqueles que, como o professor Higgins e eu, Cresceram acostumados com o rosto de Eliza: que seja por a terem visto encarnada em Julie Andrews, em Audrey Hepburn ou em Bibi Ferreira. E, por fim, um brinde a Shaw, que a tornou possível.

George Bernard Shaw aos 78 anos (1934)

terça-feira, 23 de junho de 2009

Brindemos a um mundo que pode ser maravilhoso: Holiday (Boêmio Encantador, 1938)


O Boêmio Encantador do título é novamente o Cary Grant, mas para que eu não seja acusada de ser cinéfila de um artista só, preciso explicar que quem me moveu a assistir a esse filme foi a sra. Hepburn, depois d’eu ter sido conduzida por ela a um passeio por sua filmografia. O documentário no qual isso se deu compõe os extras de “Núpcias de Escândalo” (Philadelphia Story, 1940), filme que me fascinou à primeira vista, daí a curiosidade de ver “Holiday”, no qual ela também é dirigida por George Cukor e divide a cena com Grant.
Somava à minha curiosidade o fato de ambas as produções terem sido separadas pelo fosso no qual mergulhou a carreira de Katharine e quase determinou seu abandono das telas, para as quais apenas voltou depois do sucesso que fez nos palcos interpretando a astuta e inflexível (mas nem tanto) herdeira Tracy Lord, sucesso que depois repetiu no cinema naquela que é uma das grandes comédias de todos os tempos.

E que surpresa agradável não tive eu ao encontrar em “Holiday” uma atmosfera tão semelhante à de “Philadelphia Story”: a mesma sensibilidade nas atuações e mesma maestria na direção.
O gosto do público é complicado de se entender – Katharine, aquela que fora considerada box office poison por filmes como “Holiday”, depois foi consagrada fazendo um trabalho bastante parecido...
Aliás, o retorno da estrela ao cinema não foi acompanhado da mudança de norte de sua carreira. Ao contrário, ao se assistir extensivamente à sua produção, observa-se nela uma unidade. A pose ereta, a cabeça erguida, a flexibilidade e o tom de voz tornaram Katharine tão fácil de ser parodiada e, ao mesmo tempo, impossível de ser copiada. E quantas produções não se beneficiaram de sua prosódia peculiar, misto de fala corriqueira, declamação e música, que cooperou para deslocar seus filmes da realidade imediata e os lançou em um mundo que parece tão longínquo e sedutor. E se isso é verdade em “A bill of divorcement” (1932), película que a apresentou ao grande público, na qual interpretava a mocinha assombrada pela aparentemente irrevogável herança paterna – a loucura – tanto mais é verdade em “Holiday”.
Nesta deliciosa comédia romântica, o galã, e os coadjuvantes – entre esses últimos, Edward Everett Horton, num de seus papéis cômicos mais sóbrios – unem-se à musicalidade da voz e dos gestos de Katharine. E o diretor, grande maestro que é, conduz o bailado de modo tão afinado, leve e adorável, que também eu tenho vontade de sair dançando sempre que vejo o filme.
A pobre menina rica é trancafiada num palacete e obrigada a aderir à hipocrisia do meio que a circunda, sofrimento que divide com o infeliz irmão, o qual fora obrigado a seguir a carreira imposta pelo pai. Porém, ela é salva pelo belo e idealista jovem para quem os bens materiais ficam num plano muito distante. Quem nunca ouviu história semelhante? Mas por certo não a ouviu do modo como Katharine Hepburn, Cary Grant, Henry Kolker, Edward Horton, Jean Dixon e George Cukor a contam. Ora, também os contos de fadas são mais que conhecidos, mas “O mágico de Oz” (1939) é único. Também o tema amoroso é um só, e Cole Porter ou Gus Kahn apresentam-no de mil maneiras diferentes. A razão é a mesma para todos, que imprimem um ritmo original e único à obra que criam, que deleita e nos faz querer repetir a dose mais e mais vezes, até memorizar os diálogos, as letras e a melodia.