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quarta-feira, 21 de março de 2012

“A invenção de Hugo Cabret” e a redescoberta da magia do cinema

O final de março geralmente coincide com a retirada das salas de exibição dos oscarizáveis e oscarizados do ano. Por isso, essa minha leitura de “A Invenção de Hugo Cabret” chega um pouco atrasada. Porém, escrevo porque ainda dá tempo de convidar enfaticamente o leitor a ir apreciar essa obra-prima no cinema.
“Hugo” foi o grande injustiçado do Oscar 2012, tendo perdido os principais prêmios (Melhor Filme em Língua Inglesa e de Melhor Diretor) para um filme que, embora gracioso, não lhe chega aos pés. Mas eu quero pensar que Martin Scorsese é um novo Georges Meliés, e, como ocorreu ao seu biografado, daqui a uns anos essa sua criação vai cair nas mãos de um par de críticos sensíveis e finalmente será descoberta. A história do cinema tem dessas coisas cinematográficas...
O problema de Scorsese talvez tenha sido o de Méliès: ambos lançaram mãos dos recursos tecnológicos dos quais dispunham para contarem histórias ao mesmo tempo cativantes e despretensiosas, portanto, não chamaram a atenção da Academia de Artes Cinematográficas – cuja cegueira na maior parte das vezes só lhe permite perceber o caráter “artístico” da produção quando ele é sinalizado por bandeirolas; mas aí já não falamos de obra de arte, mas de obra de presunção.

Vejamos o enredo do filme: Hugo (Asa Butterfield) é um moleque de rua que vaga por uma estação de trem parisiense cujos relógios ele opera na surdina, fazendo-se passar pelo tio, velho beberrão de quem aprendeu o ofício e que some no mundo. Nem o tio, nem o menino são moralmente irrepreensíveis. O primeiro tirou-o da escola depois da morte de seu pai e sem dó o bota para trabalhar. E este, vive dos pequenos furtos que realiza na estação. Mas nenhum deles é personagem plano. Ao tio, que aparece pouco, cabe ensinar o menino a sedutora vida das ruas parisienses. Hugo torna-se ladrão também alimentado pelo sonho de ver funcionando o autômato que herdou do pai, brinquedo que, supõe ele, lhe traria um sinal do homem que a fatalidade lhe tirara tão cedo. Nem o tio é um crápula, nem o menino um pobre coitado, por isso é que este combina tão bem com o velho casmurro dono da loja de brinquedos da estação – ninguém menos do que o até então esquecido cineasta Georges Méliès.
O filme de Scorsese tem dois méritos fundamentais, desde meu ponto de vista: no plano histórico, o de recontar com razoável fidedignidade a história do sucesso, esquecimento e renascimento de Méliès; no plano cinematográfico, o de reproduzir, em seus momentos fundamentais, a estética do cineasta francês. Quem nunca ouviu falar desse homem, a quem o cinema deve muito, aproveita a lição dada com graça por Scorsese. Já eu, que estou mergulhada nesse mundo faz um tempo, quase morri de emoção ao vê-lo em todas as suas cores vibrantes na tela cheia, plenamente apetecível para as plateias do século XXI. Sei, parece exagero, mas vou tentar demonstrar porque não é:

Para isso, outra história, dessa vez a de Georges Méliès (Ben Kingsley). Oriundo de uma família de industriários, Meliés decidiu dedicar-se ao mundo do faz de conta, primeiro como mágico aprendiz do célebre mágico francês Robert-Houdin, depois como fazedor de cinema, invento que então também parecia imbuído de magia. O impacto que o cinema lhe gerou foi tão grande que, depois de assistir às vistas dos irmãos Lumière (1895), o homem se convenceu de que o futuro do invento estava na criação ficcional e não no registro de fatos do cotidiano (coisa que os Lumière faziam). Vendeu o teatro Houdin, que já àquela altura lhe pertencia, e montou um estúdio de vidro (fantasticamente recriado para “Hugo”); e nele recriou as mágicas que faziam sucesso no teatro – aproveitando-se para isso da montagem, elemento primordial da linguagem cinematográfica, que ele inventou. O artifício é igualmente mostrado ao público, de modo pedagógico e ao mesmo tempo com ótimo rendimento narrativo. Do final do século XIX até os primeiros anos do XX, Méliès evoluiu para uma estética que usava as mágicas de palco como matérias primas de filmes fantásticos, recheados de diabos, seres mitológicos, ETs, aproveitando-se copiosamente da montagem para criar uma realidade ágil e em constante mutação, outra característica fundamental da linguagem cinematográfica. Falido em meados dos anos 10, só em meados dos 20 é redescoberto, por estudiosos do cinema e cineastas de vanguarda.

Georges Méliès (1861-1938)

Os filmes de Méliès podem ser considerados bobos demais para os olhos do público de hoje. Para que se compreenda o que eles representaram para a sociedade da virada do século, eu recomendaria primeiro uma visita a “A invenção de Hugo Cabret”, que não apenas conta textualmente essa importância – impondo ao público a voz de estudiosos do cinema, também personagens do filme – mas dá a ver o fato, ao maravilhá-lo com as sequências apresentadas. Fiz um trabalho de pesquisa e saí inquirindo espectadores bem diferentes sobre o que acharam dele, e ouvi deles que o filme era uma delícia/ adorável/ leve/ divertido. Adjetivos semelhantes aos que o público do começo do século passado usava para se referir aos filmes de Méliès.
Scorsese atinge o feito notável de traduzir, para o público contemporâneo, a magia do cinema do cineasta francês, e o faz apropriando-se de tecnologia de ponta. Nunca o 3D foi tão bem utilizado como aqui. Especialmente porque ele não está de enfeite em “Hugo”. Cumpre, sim, função prática – função, porque não dizer, análoga a que tinha a paleta de cores, também naquele momento “tecnologia de ponta”, nos filmes do cineasta francês. Para multiplicar o encantamento, Georges Méliès se dava ao trabalho de mandar pintar fotograma por fotograma de seus filmes, rodados
em preto-e-branco. O resultado são cores berrantes, vivíssimas. Quem os vê hoje pode achá-los demasiado artificiais, mas que efeito não fizeram nas primeiras plateias?! Quem tem curiosidade de conhecer a importância que as cores têm na criação do mundo mágico de Méliès precisa fazer o teste: ver o histórico “A viagem à Lua” (Le voyage dans la lune, 1902) primeiro em preto e branco e depois na versão colorizada, heroicamente resgatada das ruínas e apresentada ao público em Cannes no ano passado (os vídeos estão abaixo). Parecem dois filmes diferentes, o segundo infinitamente mais rico que o primeiro.
“A invenção de Hugo Cabret” é o filme dos últimos tempos que melhor pinta o amor pelo cinema – amor que nele se desdobra em várias facetas: na menina que descobre o cinema pela primeira vez e se deslumbra, no menino que entra escondido nas salas de exibição e conhece todos os artistas e fitas, nos acadêmicos que redescobrem o cineasta esquecido e o devolvem ao público. E isso numa linguagem que, de tão apaixonada por seu objeto, o mimetiza: Pouco a pouco, as cores brilhantes das fitas de Meliés, ora reencenadas, ora apresentadas em seu original, acabam se impregnando na materialidade do filme. Paris torna-se cada vez mais sépia quando posta diante dos coloridos filmes do mago-cineasta. Conduzido por Martin Scorsese, é o cinema que salva o menino, como por muitas vezes já deve ter salvo o diretor – também ele cinéfilo apaixonado.