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quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

“Assassinato no Expresso do Oriente” (2017)

Uma versão cinematográfica notável do thriller romanesco de Agatha Christie Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express, 1934) chegou há pouco às telas. Dirigida por Keneth Branagh, a obra consegue num só tempo construir sequências visuais eletrizantes, no melhor estilo dos blockbusters rodados nos últimos anos, e efetuar um mergulho de fôlego no interior das personagens criadas pela gênia inglesa. 
Malgrado a quantidade considerável de suspense e ação que o filme abarca, há nele um potente e inesperado exercício teatral – que engole suas características eminentemente cinematográficas, regurgitando-as diante de um palco ilusório, com alta dose de ironia. 
Keneth Branagh é ator de sólida formação teatral. Construiu-se entre a tradicional “Royal Shakespeare Company” e a “Renaissance Theatre Company”, companhia fundada por ele. Sua aproximação do cinema deu-se a princípio na relação que a arte poderia estabelecer com o teatro: daí as versões cinematográficas das peças de Shakespeare “Henrique V” (1989), “Muito barulho por Nada” (1993) e “Hamlet” (1996), as quais ele além de dirigir, adaptou (tendo igualmente atuado nas duas tragédias). 
Branagh deixa o roteiro deste “Assassinato no Expresso do Oriente” nas mãos de Michael Green, desempenhando, além da direção, o papel de Hercules Poirot. Mesmo os leitores mais esporádicos de Agatha Christie certamente se lembrarão deste seu mais notório detetive, homenzinho esquemático e genial (hoje em dia, a literatura médica lhe diagnosticaria com um severo TOC...), cópia mal-disfarçada de Sherlock Holmes, a trocar o abuso das substâncias alucinógenas pelas iguarias culinárias. 
Qualquer intenção de retomada deste romance de Christie causa de saída ceticismo, depois de sua versão irrepreensível rodada sob a batuta de Sidney Lumet em 1974, com um elenco estelar do qual faziam parte, entre outros, Ingrid Bergman (que ganharia o Oscar de atriz coadjuvante pelo desempenho), Lauren Bacall, Jacqueline Bisset, Vanessa Redgrave, Sean Connery e Anthony Perkins, elenco chefiado por Albert Finney no papel de Hercule Poirot. 
Branagh surpreendentemente não busca o confronto. Orquestrador do conjunto, além de protagonista, o ator/diretor utiliza sua expertise na adaptação às telas de clássicos teatrais e romanescos, apropriando-se com distanciamento crítico da obra de Christie. 
O contorno irônico que ele imprime à sua personagem estende-se como nota dominante para o restante da obra. Daí às concessões que ele faz à estética do blockbuster – por exemplo, a perseguição de Poirot ao secretário do homem assassinado, sob as estruturas da ponte que sustenta o trem emperrado; ou o ultra-realismo com que pinta a avalanche que impede o desenrolar da viagem – se seguirem, ato-contínuo, às tomadas estáticas dos diálogos entre o detetive e os suspeitos, diante de cenários que aludem ao tableau teatral e ao trompe d’oeil, artifícios utilizados no tempo em que Agatha Christie era menina. 
O espaço da acariação remete à Mesa de Leitura, momento
fundamental das montagens teatrais
Se o all star cast é também característico desta versão de “Assassinato no Expresso do Oriente” – entre outros, Judi Dench, Michelle Pfeiffer, Penélope Cruz, Willem Dafoe e Johnny Depp –, o filme consegue, como na versão de 1974, construir as personagens a contrapelo dos rótulos que o star system lhes impôs. A partir de agora a análise se obrigará aos spoilers. Os pontos altos são Cruz, no papel da babá da menina sequestrada e morta (mesmo papel que deu à estatueta a Bergman), mas especialmente Pfeiffer, como a atriz afamada que perdera a filha e a neta, a grande engendradora do assassinato coletivo de Edward Ratchett - na atuação-dentro-da-atuação, Pfeiffer é uma variante das femme fatales que desempenhou durante a sua carreira, contraparte da mulher torturada que, ao cair do pano, ela se revelará. 
Qualquer adaptação diz mais sobre o momento histórico no qual ela foi criada do que sobre a obra da qual ela se originou. Este “Assassinato no Expresso do Oriente” traz como saldo uma dose amarga de melancolia, explícita no distanciamento com que se narra o episódio do sequestro da garotinha e os seus desdobramentos funestos – num branco e preto que o afasta do melodrama para aproximá-lo da frieza de um registro policial, mimese da frieza com que o crime conjunto foi planejado e executado. 
O filme repercute a busca, cada vez mais reverberada em nossa sociedade, da justiça pelas próprias mãos, diante de um dispositivo legal cada vez mais incompetente e/ou corruptível. A catarse atingida graças à destruição do mal, pedra de toque dos blockbusters - presente mesmo na obra de Christie e em sua versão de 1974 -, ganha, todavia, um segundo plano, ante ao peso sustentado pelo indivíduo que se obriga a assumir um papel que cabe ao Estado – em especial num caso desta natureza. 
A decisão final de Poirot, de não entregar o grupo à polícia, se deve menos à sua magnanimidade – ou à crença de que a justiça finalmente se realizara – e mais a um esforço de interromper a escalada de destruição deflagrada por Ratchett. Longe do Happy Ending, este “Assassinato no Expresso do Oriente” sublinha a linha tênue que separa a lucidez da loucura, o mal do bem, e enfim, o Jekyll e o Hyde que habitam cada um de nós. Para realizar o exercício reflexivo, o filme apresenta-se numa imagem em abismo, teatro dentro do cinema. Não por acaso, Michelle Pfeiffer ganha tanto relevo nesta adaptação, na pele da atriz que organiza um assassinato como a sua última grande performance, o seu canto dos cisnes.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

“Eu sou Ingrid Bergman” (Stig Björkman, 2015)

Lendo as sinopses de filmes pregadas no mural de um cinema paulistano, deparo-me com este título, o – segundo o ranking de uma determinada revista – melhor em cartaz em São Paulo. Um longa-metragem passa, então, em fast motion pela minha cabeça. 
Eu sou Ingrid Bergman. 
Certas coisas estão impregnadas de memória afetiva. Dez, doze anos atrás, esbarrei em Ingrid Bergman num filme de Hitchcock, e ela definiu o meu destino. Dali por diante eu precisava conhecer toda a sua obra: e de roldão conheci Hitchcock, Rossellini, George Cukor, Anna Magnani e uma porção não desprezível do céu estrelado onde a divindade da Sétima Arte repousa. 
O filme em questão nem é o que de melhor fez Hitchcock. Trata-se de “Quando fala o coração” (1944), um melodrama com laivos de psicanálise e muito mel – violinos insistentes torturando o tema amoroso enquanto os olhares da Dra. Constance Petersen se cruzam com os de John Ballantyne, seu suposto colega de trabalho acusado, não muito tempo mais tarde, do assassinato do psicanalista-chefe da casa. “Vou te curar e, se isso acontecer, permanecer contigo” – diz a psicanalista apaixonada. 
 Meloso, mas Miss Bergman já está toda aí, com os óculos de grau que deformam a aparência estelar que a Hollywood clássica lhe buscava imprimir, com a assertividade da mulher profissional que não se deixaria tanger pelos homens ou pelas circunstâncias. Foi isso, talvez, que fez os nossos caminhos se cruzarem. 
O enredo do documentário tece-se a partir da primeira pessoa – dos diários que Ingrid manteve durante toda a vida, quiçá desde que começou a escrever. É lido no original sueco por Alicia Vikander – ótima jovem atriz que o Oscar acabou de notar – e corroborado pelas vozes de Pia, Isabella, Ingrid Rossellini e Roberto Rossellini, os quatro filhos da atriz. É curioso ver um Roberto Rossellini belo e bonachão, mistura de Ingrid e Roberto, homem que construiu a vida distante das câmeras: nem a genética, nem o nome de batismo já de saída célebre, parecem tê-lo feito se envolver mais do que esparsamente com o cinema. 
Com os filhos Roberto e Isabella
A mais conhecida do quarteto é Isabella Rossellini, que herdou o rosto da mãe – a semelhança é mesmo assustadora – e os cabelos do pai. E o talento de ambos, que, notado unanimemente na ocasião do lançamento de “Veludo Azul” (David Lynch, 1986), continua a ser exercido, nos campos da atuação cinematográfica e teatral, e da produção. Tem a sede da mãe, ao que parece, já que envereda agora pelas searas do experimentalismo. 
O quarteto invoca a mãe de modo muito semelhante ao que fizera no DVD de The Hollywood Collection dedicado a ela. A Ingrid ausente, envolvida invariavelmente com o trabalho, a ver os filhos apenas nas férias, recupera-se na Ingrid fantasmática, a se desdobrar na tela num sem-fim de filmes de família, rodados desde que a jovem atriz era uma promessa ainda não concretizada, na pequena Suécia natal. 
Em "Anastácia" (1956)
O filme é doce, aparando as arestas de uma vida turbulenta de modo como nem mesmo a própria Ingrid Bergman procurou fazer em sua autobiografia, onde ela narra sem pecha sua necessidade de sistematicamente deixar os filhos para ir atrás do trabalho e dos amores. É como se, passado tanto tempo desde a sua morte, após o que Cannes lhe erigiu um portentoso memorial comemorativo aos seus 100 anos, Ingrid tenha sido transmutada, mesmo na memória dos filhos, de mulher a mito. Não acredito que ela o quisesse – sempre disposta que estava a descer do pedestal e se desgrenhar, sujar-se das cinzas do vulcão e viver plenamente a carreira e a vida, sem que os liames comezinhos da sociedade a prendessem. 
O documentário sustenta-se como o esforço das quatro crianças de emendarem os pedaços de vida da mãe aos seus. A Ingrid Bergman divertida e carinhosa emerge dos depoimentos e das imagens: a abraçar os filhos, a brincar com eles. A vida é transformada em espetáculo por meio das imagens silenciosas que mostram uma Ingrid desempenhando a contento um papel para o qual ela era talhada apenas ocasionalmente – como se fora contratada para um saltitante musical-família da MGM, após o qual ela precisava de trabalho sério. Felizmente. 
Em "À Meia Luz", 1944
Nenhuma atriz, como ela, passeou com tanta segurança pela Hollywood Clássica e pelas novas ondas italiana e francesa. Negando os rótulos, foi mulher de vida airada quando sua imagem de mocinha já estava consolidada (em “O Médico e o Monstro”, Victor Fleming, 1941); meteu-se com o Neorealismo Italiano e com Rossellini (em “Stromboli”, 1950) quando era a atriz mais celebrada nos Estados Unidos; no exílio obrigatório de quase dez anos, pela “imoralidade que cometera”, trabalhou com Jean Renoir e acabou por ganhar um Oscar, capitulação cabal de Hollywood... Gostava de um desafio – sua filmografia é um belo passaporte para um apaixonado por cinema adentrar pela cinematografia dos anos de 1930-1980. 
O documentário passeia por estas veredas todas, mas concentra-se na imagem da mãe. A Ingrid Bergman que eu amo é mais ardida que essa: como a Alicia Huberman de “Interlúdio” (Hitchcock, 1946), é meio a ébria, meio a prostituta, meio a santa, meio a apaixonada. A esta Ingrid eu devo a minha fascinação pela sétima arte.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Hitchcock, o gênio assombrado


Ninguém mais ou menos familiar com a obra de Alfred Hitchcock é capaz de negar que ela apresenta um denso compêndio de neuroses.
Nela desfilam homens feridos física e/ou psicologicamente por armas às vezes tão mortais quanto desconhecidas. Homens fechados ao relacionamento amoroso, como o agente da inteligência norte-americana em tempos de guerra Cary Grant, de “Interlúdio” (Notorious, 1946), que convence a mulher de costumes fáceis Ingrid Bergman a se juntar aos Aliados, casando-se com um espião nazista. Homens aos quais a Guerra só fez emergir um complexo pré-existente, como o suposto médico e suposto assassino Gregory Peck de “Quando fala o coração(Spellbound, 1945), curado com a conjuração da psicanálise freudiana pela Dr. Constance Petersen (novamente Ingrid Bergman). Homens esquivos como o taxidermista Norman Bates de “Psicose”, que cobre com a capa da afabilidade outro feixe de complexos altamente tributários de Freud; cuja relação com a mãe se desdobra do complexo de Édipo para a projeção/identificação. 

Ou voyeristas como o fotógrafo ao qual James Stewart dá corpo em “Janela Indiscreta” (Rear window, 1954), a fugir da relação de carne e osso com a bela Grace Kelly para mergulhar o olhar na apreciação detalhada da vida alheia, a partir das lentes de aumento da teleobjetiva. 
Uma mente sã certamente não seria capaz de engendrar tais fantasmas. O próprio Hitchcock tratou de construir literatura a seu respeito, como forma de estabelecer os lastros reais, biográficos, das fantasias que dirigiu. A longa entrevista dada já no fim da vida a Truffaut é preciosa por mostrar, no esmiuçamento de alguns personagens, o quanto eles dialogam com as neuroses de seu diretor. A prisão que os pais lhe teriam impingido certa vez, quando ele ainda era garoto, se reproduz cinematograficamente, na sua obra, numa série de indivíduos atados. Atados, muitas vezes, por algemas empíricas, como a lourinha June de “O inquilino sinistro” (The lodger, 1927), presa pelo noivo como um simbólico (e sinistro) prelúdio do casamento; Madeleine Carroll, a quem Robert Donat subjulga nos “39 Degraus” (The 39 steps, 1935), a união forçada transformando-se rápido na aproximação amorosa; ou a algema do suspeito de terrorismo de “Sabotador” (Saboteur, 1942), a qual o tio cego da mocinha simbolicamente não enxerga – enquanto que a deficiência visual o faz ver aquilo que a aparência não mostra; a inocência do jovem perseguido. 
Os objetos cênicos adquirem valor simbólico nos filmes do mestre do suspense. Isso, claro, não é exceção em sua obra. Ocorre em todo grande cinema. Mas falamos de Alfred Hitchcock, que transformou-se a si num de seus mais interessantes personagens. O legado tão precioso que ele deixou à cultura não poderia deixar de motivar reflexões sobre a mente que o construiu. 
Um trabalho notável neste sentido é Fascinado pela beleza, de Donald Spoto, estudioso de cinema com longa lista de publicações na área e cujo estudo sobre a obra de Hitchcock gerou uma tríade de livros, da qual este é o último. Spoto abre o volume com uma longa lista de agradecimentos às atrizes que ele entrevistou. Nomes como Ingrid Bergman, Grace Kelly, Kim Novak, Eva Mary Saint, Tippi Hendren – praticamente todas as protagonistas figuram nela. Ao fim, uma bibliografia igualmente volumosa explicita que a obra não é fruto de meras conjecturas. Estas partes do texto são fundamentais, pois as conclusões da análise de Spoto são estrondosas. 

Os críticos que torcem o nariz para a leitura biografista do objeto artístico terão dificuldades de debelar a argumentação construída pelo crítico. Spoto soma às entrevistas com as atrizes, atores, roteiristas e assistentes, a análise dos textos originais dos roteiros dos filmes e outros documentos de produção, para pintar com cores penetrantes a imagem do homem Alfred Hitchcock: encarcerado no seu tipo físico de glutão, apaixonando-se como um jovem romântico por suas estrelas ao ponto de desejar possuir-lhes o corpo e a mente. 
Pode-se, no início, acusar o sr. Spoto de sensacionalista ou bradar acerca da inutilidade de sua empreitada. 
Mas em certos trechos brilhantes, em que o crítico consegue alinhar as informações de suas fontes ao rendimento cênico de sequências de alguns filmes, só nos resta concordar com ele. Um exemplo é a análise de como sua paixão por Ingrid Bergman, explicitada em convites para martinis noturnos e na escritura de uma cena de “Quando fala o coração” que claramente aludiria a esse sentimento unilateral (a saber: a conversa entre a Dr. Petersen e seu apaixonado colega de profissão, que culmina com a seguinte resposta da doutora: “Ao me tocar você sente apenas seus próprios desejos e pulsações. Eles em nada se parecem com os meus.”), leva-o a tomá-la em primeiros planos extremamente emocionais, a tornarem-na feminina, frágil, monumental. 

Ingrid Bergman e Cary Grant, "Interlúdio" (1946)

Ingrid conseguiu manter seu diretor nas rédeas, conservando com ele uma relação de amizade para toda a vida. O mesmo não se deu com Tippy Hendren. Descoberta pelo diretor numa publicidade, a modelo sem qualquer experiência cinematográfica viu-se uma Eliza Dollittle nas mãos de um Pigmalião (ou nas mãos de um Svengali, como o próprio Hitchcock  se chamava, variante do homem que molda um ser que sacie seus próprios desejos). No pico de sua popularidade, o diretor julgava-se intocável (e efetivamente o era, como prova Spoto). Daí as tentativas de afastar Tippi Hendren do restante dos elencos de “Os Pássaros” (The Birds, 1963) e “Marnie” (1964), de colocar, no encalço da atriz, informantes a relatarem seus passos, de lhe fazer propostas explícitas. Presa por um long term contract, Hendren não via escapatória. 
Ela era a versão humana da doentia relação amorosa que vive com Sean Connery em “Marnie”. Em entrevista, Hendren conta que, durante a rodagem deste filme, Hitchcock lhe informara de que, daquele momento em diante, ela deveria estar completamente disponível para ele; sexualmente, inclusive. Spoto lembra do que a personagem de Connery diz a Marnie a certa altura do filme: “Você acha que eu sou algum tipo de animal que você enredou”, diz ela. “É isso mesmo o que você é. Dessa vez peguei algo realmente selvagem. E pretendo mantê-la em minha posse.”, ele retruca. Em rompantes românticos, o diretor externava à sua estrela os sonhos cinematográficos que nutria com ela (“Sonhei que os raios do sol entravam pela nossa casa pela manhã”...), tal e qual um garoto incapaz de diferenciar ficção e realidade, ou então alguém demasiadamente enredado pelas imagens em movimento, desejoso de tomar objetivamente parte delas. O que fazer quando o garoto iludido é, ao mesmo tempo, o artista criador da ilusão? 
Ingrid, Hitch e Gregory Peck nos bastidores de "Quando fala o coração" (1945)

Spoto faz um trabalho relevante de desvelamento do eu conturbado de Hitchcock. Um trabalho fundamental, aliás, malgrado a animosidade com que o receberam os fãs mais ferrenhos do mestre. Puxado o véu, a imagem que aparece dele está longe de ser bela, mas ela ajuda a dar complexidade à reflexão sobre a Sétima Arte. 
O analista fala muito bem sobre os medos recônditos de Hitchcock emergirem, na imagem cinematográfica, por meio de símbolos. Há nessa assertiva um tanto da psicanálise que interessou ao diretor em dois pontos fundamentais de sua filmografia, distanciados quase 20 anos um do outro: “Quando fala o coração” e “Marnie”. Há, todavia, outro tanto de cinema. A imagem prenhe de sentido, ao ponto de atingir o valor de símbolo: esta não é também a especificidade do cinema? Hitchcock não nos deixa perder de vista o parentesco entre o símbolo que confere perenidade ao cinema e o símbolo por meio do qual o psicótico transfigura a realidade, já que é incapaz de lidar plenamente com ela. 
O cinema foi o divã e a fábrica de sonhos de Alfred Hitchcock. Deu-lhe a possibilidade de apresentar seus fantasmas à apreciação das massas. Exímio contador de histórias visuais que era, fê-las mergulhar em universos vários, na esteira das estrelas e de suas histórias de mistério. E acabou, ele próprio, por mergulhar neste mundo de faz-de-conta, Svengali sedento de novas Trilbies às quais pudesse transformar em rainhas para depois por elas se apaixonar. 
Kim Novak, "Um corpo que cai" (1958)

Há em sua trajetória muito do doentio percurso da personagem de James Stewart em “Um corpo que cai” (Vertigo, 1958), como bem observa Spoto. Apaixonando-se por uma mulher que não existe, já que é fruto da ficção inventada por um ex-colega de colégio no intuito de ludibriá-lo, Jimmy leva toda a segunda parte do filme a recriar a tão desejada figura feminina. Lá está ela, finalmente, à sua frente, arremedo quase perfeito da jovem supostamente louca e suicida: inclusos os cabelos louros que ele mandara tingir (os louros cabelos desde sempre objetos de desejo do fetichista Hitchcock) e o tailleur cinza que ele lhe comprara. Faltava apenas que ela prendesse seus cabelos num coque, e ele obriga a pobre moça a realizar o gesto final de despersonalização e, assim, dar acabamento à ficção. Anos depois Hitchcock diria a Truffaut: “era como se a mulher estivesse pronta para o amor, mas ainda assim se recusasse a tirar a calcinha”. A máscara corresponde ao desnudamento completo. Mais hitchcockiano que isso, impossível. 
Hitchcock e o apaixonado a quem James Stewart dá corpo, criador e criatura, descobrirão tarde a impossibilidade de realização completa da quimera. Porque, por mais deleitantes que possam ser as imagens cinematográficas, elas não passam de imagens: contornos feitos de luzes e sombras sem vida própria além daquela que nós lhes conferimos quando nelas nos detemos.

*
Para quem se interessar pelo livro, segue sua referência completa: Fascinado pela beleza: Alfred Hitchcock e suas atrizes, de Donald Spoto, publicado pela Larousse do Brasil em 2009. A Estante Virtual oferece edições novas a preços bem convidativos. 
As citações dos livros, mesmo as entre aspas, foram tomadas de orelhada. Eles estão em minha prateleira e eu, na estrada...

terça-feira, 17 de julho de 2012

“Casablanca” (1942). Never out of date.

Enquanto eu via “Casablanca” pela última vez, na semana em que o filme completava 70 anos, procurei levantar as razões que o tornaram tão especial aos olhos da crítica e do público, da época e de hoje. Em 1943, a obra recebeu os Oscars de Melhor Diretor, Filme e Roteiro. Em 2007, ela passou a ocupar o 3º lugar na seleção da American Film Institute dos 100 melhores filmes americanos de todos os tempos. Hoje, ocupa o 20º lugar da sempre atualizada lista do IMDB dos 250 melhores do mundo. Uma unanimidade. 
Unanimidade merecida, nem é preciso dizer. 
“Casablanca” conseguiu, na época, a proeza de agradar as mais diversas camadas do público. Sucesso devido à competente mistura de gêneros que apresenta: É uma história de aventura, anunciada desde o princípio pela melodia épica de Max Steiner, enquanto um mapa-múndi a girar aponta o caminho palmilhado pelos personagens. Tem lastro forte com a realidade, que aparece fundida aos planos do mapa, nas imagens (provavelmente) de arquivo dos indivíduos que deixaram a Europa assolada pela guerra rumo ao Marrocos francês, de onde poderiam partir para a América, desvencilhando-se da fome, da pobreza e dos nazistas. E tem uma história de amor. Uma, não: tem a história de amor quintessencial, feita de lágrimas, fossas homéricas, abnegação; embalada pela canção que define cabalmente seus protagonistas. 

Moonlight and love songs 
Never out of date 
Hearts full of passion 
Jealousy and hate 
Woman needs man 
And man must have his mate 
That no one can deny. 

It’s still the same old story 
A fight for love and glory 
A case of do or die. 
The world will always welcome lovers 
As time goes by. 

 Ao emoldurar o idílio de Ingrid Bergman e Humprey Bogart, “As time goes by” – composta originalmente para um show de pouco brilho da Broadway e esquecida em 1932, junto com ele – torna-se atemporal. Sem a história de amor impossível que vive o casal não haveria uma sussurrante Barbra Streisand, trepada sobre o piano em “Esta pequena é uma parada” (1972), a cortejar Ryan O’Neal enquanto arrastava as letras da melodia. Ou Meg Ryan na busca insólita pelo homem por cuja voz ela se apaixonara em “Sintonia de Amor” (1993). A canção torna-se depois metonímia de cinema – já que o amor é o que, sobretudo, o nutre. Não é à toa que ela foi escolhida pela Warner na altura dos anos 2000, para embalar o clipe comemorativo de seus 75 anos, e desde então serve de trilha sonora ao logotipo da companhia. 
Parte considerável do charme duradouro do filme está na escolha dos protagonistas. Ingrid chegara a Hollywood havia pouco, vinda da Suécia, país onde fizera poucas protagonistas. Graças a uma delas, a jovem pianista de “Intermezzo” (1936), a atriz é descoberta por David Selznick e, então, convidada a repetir o papel em versão norte-americana da película. Sua beleza natural a torna objeto de atenção na Hollywood maxfactorizada da entrada dos anos 40, multiplicando-lhe as chances de trabalho e atrelando-se imediatamente a ela uma imagem de pureza e magnificência da qual ela forçou-se por se desvencilhar, na vida e na arte, em papéis como o da dançarina de cabaré de “O Médico e o Monstro” (1941) ou em sua escapada rumo ao neo-realismo de Roberto Rossellini em 1949, do qual ela retornaria apenas sete anos mais tarde, mãe de três filhos de seu marido-diretor. Humprey Bogart ingressara na Sétima Arte corporificando uma variante de facínoras, ocasionalmente desdobrados em toda sorte de indivíduos de caracteres dúbios. Trabalhando constantemente desde 1930, ainda em 1940 ele raramente via seu nome encabeçar os créditos das produções – vilães raramente faziam papéis principais. 
“Casablanca” colocou em cena os opostos, redesenhando os tipos no curso da ação. Redesenhou menos a bela Ingrid – que no filme desempenha uma variante das mulheres esplendorosas das quais ela tentava fugir – que Bogart, que se vê transformado numa versão atualizada de romantic knight, a torturar-se pelo amor da misteriosa europeia por quem se apaixonara durante a guerra, e que agora ele via à sua frente, supostamente inatingível porque casada com um homem moralmente superior. Cabe a Bogey os gestos mais românticos da história. Ingrid é, durante boa parte do filme, a mulher racional, fiel acompanhante do marido, líder da resistência francesa durante a 2ª Guerra. Toda a frieza de Bogey, desdobramento dos inúmeros personagens frios que ele interpretara no curso de sua carreira, desfragmenta-se quando ele reencontra a personagem de Ingrid na “espelunca” que possuía em Marrocos. “As time goes by”, que novamente materializa o caso de amor ao ser tocada por Sam no Rick’s Café Americain, é primeiro relembrada por Ilsa, mas comove sobretudo Rick. É ele que, na escuridão do bar fechado, bêbado, pede que o pianista – testemunha da história – toque novamente a canção: 

Rick: You know what I want to hear. 
Sam: No, I don't. 
Rick: You played it for her, you can play it for me! 
Sam: Well, I don't think I can remember... 
Rick: If she can stand it, I can! Play it! 


A fragilidade que subjaz a casca supostamente impermeável reproduz-se numa série de gestos que devem ter surpreendido os homens, acostumados ao tipo usualmente desempenhado pelo ator, e posto as mulheres para suspirar. Esta que aqui escreve julga o diálogo entre Rick e Ilsa, na mesa compartilhada também pelo marido Victor Laszlo (Paul Heinreid) e pelo capitão francês Louis Renault (Claude Rains), uma das mais belas cenas da história do cinema. É Rick que lembra os detalhes do último encontro de ambos, no dia em que os Alemães sitiaram Paris: “[It] was La Belle Aurore. I remember every detail. The Germans wore gray, you wore blue.” Uma cena que patenteia a quebra do estereótipo de machão é sempre digna de nota, especialmente quando ela tem como interlocutor um personagem também superior de marido, que silenciosamente compreende a dor da esposa que o julgava morto e, portanto, na solidão da guerra, se envolvera com outro. 
A Guerra é a mola propulsora da história. “Casablanca” compõe, sem dúvida, parte do esforço norte-americano de propaganda antinazista e em prol dos aliados. Os EUA entraram objetivamente no conflito em dezembro de 1941, após a invasão de Pearl Harbour comandada pelos japoneses. O filme estreou um ano depois, durante a fase mais cruenta do conflito. Era o momento em que a França subjugada pela Alemanha era dobrada a gestos moralmente condenáveis, como a caça aos judeus franceses e a entrega dos mesmos à oficialidade alemã. O momento em que os campos de concentração transformaram-se em campos de extermínio – aliás, um documentário imperdível sobre a questão é “Noite e Neblina” (Nuit et Brouillard, 1955), de Alain Resnais. 
O filme encara com força essas questões, batendo de frente, de modo surpreendente, com a Casablanca prenhe de exotismo – e, portanto, muito pouco verossímil – que ele constrói no âmbito do cenário. Numa época em que teoricamente pouco se sabia sobre quão nocivos eram os campos de concentração ou sobre o envolvimento escuso da França com a Alemanha nazista, Victor Laszlo, tendo recentemente escapado de um campo e fugido para o Marrocos, afirma: “In a concentration camp, one is apt to lose a little weight.” Para também colocar em questionamento o papel desempenhado pela França no conflito: “The present French administration hasn’t always been so cordial.” Representante, no filme, da administração francesa, é o Capitain Louis Renault: charmoso, corrupto, a flertar com a oficialidade alemã durante o transcurso da película. Suas atitudes subscrevem a assertiva de Laszlo. Porém, o desfecho obrigará não só Renault, mas todos os demais personagens, a rever suas posições.
Obra produzida para o esforço de guerra, “Casablanca” tem um fecho inclinado ao idealismo. Idealismo adolescente, com direito a exaltações cívicas e a corações a falarem mais alto. Porém, ainda assim, comovente. Que cena é mais tocante que aquela na qual os europeus espoliados de Casablanca silenciam o hino alemão ao entoarem em uníssono a Marselhesa? A união de Rick e Laszlo, rivais no amor, porém, partidários da liberdade anunciada pelo hino; o grito final de “Vive la liberté”, enunciado pela ex-namorada de Rick, agora amante de um alemão, porém, acima de tudo partidária da França... A cena que botou lágrimas nos olhos dos roteiristas, como é dito nos extras da edição de 60 anos da película, provoca em mim reação análoga sempre que a vejo, mesmo transcorridos 70 anos de sua rodagem. Os céticos dirão que o cinema era aliado valioso na transformação do povo em massa de manobra do Estado. Eu prefiro pensar que os ideais conflagrados pelo filme são das mais belas ficções que aprendemos. A vitória da liberdade e o amor. “A fight for love and glory”, nos dizeres da eterna canção. “Casablanca” vive até hoje porque eles ainda não morreram. 
Tais ideias não são alardeadas num filme puramente de palanque, como Hollywood usava fazer naquele tempo. Ganham corpo por meio de uma cinematografia coesa, que procura responder aos anseios do público sem, para isso, precisar abdicar da qualidade estética. O diretor Michael Curtiz era um dos multifacetados da indústria do cinema, eficiente na direção de dramas, comédias, musicais, thrillers. Aqui, sua união com os roteiristas Julius e Philip G. Epstein e Howard Koch faz brotar uma história que une com precisão a comédia, o drama, a tragédia e a música. 
O cancioneiro americano é reverberado de modo acolhedor pelo piano de Sam, algumas vezes acompanhado de coreografia, à moda dos musicais, outras se atrelando intimamente à história narrada – “Love for sale” (Cole Porter), por exemplo, é tocada quando Renault se junta a Ilsa e Laszlo no Rick’s Café, ironizando a suposta volubilidade do coração  da mocinha. A comédia pontua o drama, nota dominante do filme, mas um riso de canto de boca perpassa mesmo os momentos mais dramáticos, já que o roteiro é absolutamente genial, repleto de movimento e  de frases inesquecíveis: “Round up the usual suspects.” (Renault), “Here’s looking at you, kid.”, “We’ll always have Paris.”, “I think this is the beginning of a beautiful friendship.” (Rick). A câmera desliza atrevida pelos eventos, a iluminar-lhes com uma precisão a toda prova. Só não penetra mesmo no coração da heroína, cujo dono a audiência apenas conhecerá ao fim da história, coroada por aquela cena final que todos já devem conhecer, ápice da abnegação e do romantismo. Porque a principal razão da perenidade de “Casablanca” está estampada nos versos de sua canção-tema: 

 The world will always welcome lovers 
As time goes by

terça-feira, 6 de julho de 2010

Yes, nós temos bananas: o Rio no imaginário hollywoodiano


Começo o post pela cena que me motivou a escrevê-lo: Mickey Rooney imitando a Carmen

Miranda em "Babes on Broadway" (1941), um dos Rooney & Garland pictures. É certo que a imitação é mais uma homenagem que uma sátira, cumprindo o programa de irmandade cultural fomentado por ambos os países (tanto que há registros da própria Carmen ensinando o Mickey a balançar as cadeiras). O que mais me fascinou nela - não apenas nela, mas no grosso das películas que fazem alusão ao Brasil - é o olhar estereotipado que lançam ao país, mais especificamente ao Rio de Janeiro, metonímia do Brasil aos olhos do cinema standard norte-americano da época (e, ouso dizer, também de hoje).
É um prazer ver Mickey cantando "Mamá, yo quiero mamar.". O rapazinho é tão carismático que acabamos deixando de lado o quão perniciosa é a caracterização que junta todos países sul-americanos num mesmo pacote, amarrando-os com um laço bem grande e colorido que os transforma em charge. Outra coisa não era Carmen Miranda, uma das maiores cantoras nacionais que, em Hollywood, teve de se contentar com papéis de raparigas sensuais e exóticas, cujos sotaques estilizados não deixavam negar as origens: o país tropical, do calor e do sexo fácil. Carmen ganhou dinheiro e notoriedade, levando o nome do país aos quatro cantos do mundo através das películas em Tecnicolor rodadas pela Twentieth Century Fox. No entanto, contribuiu para que se perpetuasse no estrangeiro a imagem do país do eterno carnaval de acordo com a qual ainda somos conhecidos, imagem que nos trás turistas sedentos de calor e diversão, mas também motiva o turismo sexual.

Mas esse post está tomando um caminho pedregoso que não estou disposta a trilhar, não depois de ter separado com tanto entusiasmo uma porção de fotogramas de alguns filmes (dos quais gosto muito, aliás) em que o Brasil - ou melhor, o Rio - é personagem relevante.
Então vou agora mesmo mudar o rumo e tentar transformar isso aqui em um passeio turístico tão leve e agradável quanto aquele ao qual Hollywood buscava conduzir seus espectadores quando colocava em primeiro plano o brilho de nosso país, deixando de lado as nossas mazelas sociais. Lá vamos nós então.



Os primeiros fotogramas são do musical de 1933 "Flying down to Rio", no qual Ginger Rogers e Fred Astaire dividem a cena pela primeira vez, ainda como artistas coadjuvantes. O conjunto de cenas (parte delas stills), apresentados sucessivamente, dos pontos turísticos da ainda então capital da República, explicitam o imaginário que se construía do Brasil como um país de vicejante beleza natural e muita diversão. A Baía de Guanabara anunciando ao fundo o Pão de Açúcar; o Teatro Municipal, a Avenida Copacabana, o Hipódromo. Puxamos pela memória as últimas novelas das oito e vemos que o imaginário pouco mudou.
Contudo, nesses filmes antigos essas cenas, que não deixam de ser registro histórico de um tempo que há muito já se foi, ganham uma graça especial que sempre acaba por me entusiasmar. Bati os olhos no Hipódromo, hoje praticamente abandonado dada à decadência do esporte, e me lembrei do registro histórico/poético que Manuel Bandeira faz do local nos anos de 1940:

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo
(...)

E ao trombar com os "Turunas Band", banda nacional a princípio ironizada pelo conjunto comandado pela personagem de Astaire, me dei conta de quão up to date estavam os norte-americanos no que se tratava da cultura de nosso país. Para constar apenas de passagem, alguns "turunas" passaram pela cena artística de nosso país, a exemplo dos "Turunas da Mauriceia", grupo pernambucano que fez sucesso no Rio entre 1927 e 1930 tocando canções típicas do nordeste, como emboladas e cocos. Abaixo, um registro do grupo e, a seguir, dos "Turunas" inventados por Hollywood.



A disposição do conjunto nega o epíteto do grupo (turuna: forte, valente, ágil), deixando ainda mais claro aos brasileiros que aos norte-americanos o quanto ela tinha de pejorativa. Mas nem por isso ela deixa de ser engraçada, pois também os brasileiros redefiniam a cultura de seus vizinhos ao apreendê-la. O Brasil era um dos maiores mercados consumidores da produção cinematográfica norte-americana - o que o tornava, por extensão, consumidor do modo de vida daquele país. As jazz-bands pululavam em território nacional, alegrando os cassinos, as rádios, vendendo discos e divertindo as plateias do já abrasileirado teatro de revista. A "Turunas Band" inventada por Hollywood, que tocava foxtrote e a carioca, não ficava muito longe dos grupos compostos por elementos nacionais - no final dos anos 20, "Arthur Castro & American Jazz Band" fizeram sucesso com um maxixe chamado "Cristo nasceu na Bahia". O cosmopolitismo das bandas acenava para o cosmopolitismo instaurado pela indústria do cinema, em que tudo ganhava status semelhante de item de consumo para as massas. A própria "carioca" inventada na película mistura elementos norte-americanos e brasileiros, o violoncelo, o chocalho e o triângulo, os dançarinos de tap dancing e baiana sestrosa.




Aliás, a baiana de "Flying down..." nega a informação historicamente consolidada de que a responsável por elevar o tipo, até então estigmatizado, foi Carmen Miranda. O tipo da brasileira/baiana já parecia bem introjetado no imaginário norte-americano quando Carmen apareceu por lá. Nas películas rodadas em Hollywood, a imagem edênica do país se sobrepõe à sua realidade empírica - não é atoa que, nos anos 50, "Orfeu negro" arrebatou os estrangeiros, apresentando-lhes um país desconhecido. Para a construção do imaginário ajudou o fato de os filmes serem costumeiramente rodados em estúdio, sendo a cor local dada por telões que impunham a magia do espaço físico assim como as fotografias turísticas que batemos dos lugares mais bonitos que visitamos. Fred e Ginger caminham contra o telão que registra a avenida Gonçalves Dias, ponto tradicional da boemia literária carioca, e vão dar num arremedo da Confeitaria Colombo.
Não muito longe dali, cartazes anunciam, em inglês, os "Yankees Clippers" no "Hotel Atlantico". Neles, coqueiros, a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar. Perdura a imagem do Rio como destino de turistas estrangeiros.

É digno de nota o fato de o Brasil comparecer especialmente em comédias musicais, produções em que a fantasia se sobrepõe à realidade. Em "Uma noite no Rio" (That night in Rio, 1941), fotografias da cidade são substituídas por registros pictóricos dela, que salientam a invenção do país em detrimento de seu registro objetivo.


Carmen surge em seguida com a vestimenta de baiana que se tornou a sua segunda pele.

Casais fantasiados dançam tendo ao fundo a Baía de Guanabara. O Technicolor permitiu que se salientasse o colorido que se queria imprimir para o país. O fotograma acena também para outra característica do país que o tornava destino privilegiado, o carnaval.

Isso é ressaltado noutra película dos anos 40, "Romance on the high seas" (1949), debut cinematográfico de Doris Day. O baile de carnaval que dá fecho ao filme, tornando possível o happy end, aponta cabalmente para como nosso país é imaginado lá fora. Inegavelmente, é uma propaganda aos quatro cantos do mundo de nossa cordialidade. Que viengan os turistas...

Antes de ser "feliz para sempre", Doris Day entoa "It's Magic" na Praia de Copacabana, canção que a tornará the toast of Hotel Atlântico, mimetizando a relevância que exerce na ascensão da jovem crooner a estrela da música e do cinema.


A praia de Copacabana e o carnaval retornam brevemente em "Papai Pernilongo" (Daddy long legs, 1955), e novamente enquanto pintura, numa sequência estilizada colorida e lúgubre que lembra (e lembra até demais, para o próprio bem do filme) o antológico balé de "Sinfonia de Paris" (1951).




Brasil, paraíso terrestre, lugar da fantasia, do escapismo. Não é um acaso que casais sexualmente reprimidos vivessem seu idílio envoltos por nossa brisa amena e sob os olhos amorosos do Pão de Açúcar. É o que acontece em "Estranha Passageira" (Now, voyager, 1940), no qual a personagem de Bette Davis torna-se "Camille" à medida em que se aproxima de nosso país tropical - alusão à heroína romântica de Dumas Filho que se entrega a um amor proibido e foge para o campo para vivê-lo. Camille e seu Armand (Paul Heinred) dormem lado a lado numa cabana abandonada na estrada rumo ao Pão de Açúcar, desafiando a moral vigente e a censura cinematográfica. Estou lembrando que já falei sobre esse filme em duas outras ocasiões, quando falava sobre o cigarro no cinema e o sexo em Hollywood... Nem preciso dizer que gosto muito dele, não?



O romance de Ingrid Bergman e Cary Grant também se beneficia das belezas naturais do Rio. Em "Notorious" (Interlúdio, 1946), um dos grandes Hitchcocks, a personagem de Ingrid é outra Dama das Camélias que encontra a regeneração no amor.


Porém, sabemos que o romantismo do diretor percorre vias tortuosas. Antes de oferecer a oportunidade de regeneração à heroína, o Rio torna-se palco de seu mais arrematado decaimento. O imaginário é desconstruído. O hipódromo, cuja elegância contribui para enfeitar as películas norte-americanas, ganha em "Notorious" aquele sabor amargo que adquire para Manuel Bandeira: "Os cavalinhos correndo,/ E nós, cavalões, comendo... (...)/O sol tão claro lá fora,/ O sol tão claro, Esmeralda,/ E em minhalma — anoitecendo!".




Nele, a personagem de Ingrid contará ao homem que ama: "Você pode colocar Sebastian em minha lista de admiradores." Ela sabe que o caminho não tem volta. Precisará se casar com o espião nazista para levar a cabo o plano do governo americano.
A Cinelândia, até então passarela de turistas despreocupados, impregna-se da carga dramática da personagem que, então, já caminhava numa corda bamba. O belo edifício da Biblioteca Nacional, o qual, junto ao Teatro Municipal, ajuda a compor o patrimônio artístico da capital, torna-se no filme a base de operações da polícia brasileira/ norte-americana. Sua magnificência esmaga a protagonista, tanto quanto as luzes da cidade cegam-na, tornando sua doença ainda mais insuportável. Graças à Hitchcock, o Adão e a Eva cinematográficos são finalmente expulsos do paraíso.