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quinta-feira, 24 de março de 2016

“O Filho de Saul” (2015): resistência à desumanização

Prometi, no artigo passado, me ater ao conjunto dos filmes estrangeiros concorrentes ao Oscar 2016. Os últimos desdobramentos políticos e sociais me obrigam a redefinir o fio da análise, concentrando-me no vencedor. 
Recebeu – merecidamente – o prêmio este ano uma obra cujo valor transcende o cinematográfico, e que procura estabelecer conosco, os brasileiros, um diálogo para o qual não devemos ousar virar as costas. 
"O Filho de Saul" (László Nemes, 2015) já esteve sob os holofotes no ano passado, quando ganhou o grand prix de Cannes, portanto seu enredo é possivelmente conhecido do público. Acompanha-se, ali, o dia-a-dia de um campo de extermínio nazista, nos estertores da guerra – momento em que recrudescia a “solução final”, ou seja, a destruição de qualquer traço do povo judeu, por meio da gasagem, da incineração dos corpos e da liquidação das cinzas. Os parafusos da engrenagem nazista eram, por mais hediondo que isso possa parecer, os próprios internos dos campos, responsáveis por encaminhar seus semelhantes ao fim que dali a pouco eles próprios teriam. 
 A narração é subjetiva: a câmera toma a cena a partir do protagonista Saul (Géza Röhrig), um membro do Sonderkommando, grupo ao qual cabia a função. E lê aquele sonho dantesco como ele o faz: a partir dos fragmentos que evocam a incompreensão do horror que se passava no entorno. Incompreensão que exacerba os limites dos campos para adentrar os tribunais de Nuremberg, ou o julgamento de Eichmann: como é possível o massacre de milhares de pessoas por dia, às barbas das populações que habitavam o entorno daquelas construções? A realidade chega a ser posta em dúvida devido à sua paradoxal inverossimilhança. O aparentemente impossível, no entanto, aconteceu. 
Saul tateia no escuro, vilipendiado por agressões que ele não sabe bem donde partem ou porque, naquele ambiente que perdeu todo traço de humanidade. Em meio aos restos mortais da última gasagem, a meio do caminho entre a sanidade e a loucura, o homem encontra o corpo de um garoto que adota por filho. O périplo ficcional de Saul em busca de um rabino que enterre o menino numa cerimônia judaica é perpassado por referências históricas concernentes à realidade dos campos: a hierarquia que surgia entre os prisioneiros, o esforço deles de registrar ao desvelamento da posteridade aquele cenário apocalíptico (em Images malgré tout, Didi-Huberman debruça-se sobre as fotografias concernentes aos momentos anteriores e posteriores da "solução final", tiradas por membros do Sonderkommando de certo campo de extermínio, e dali retiradas por certo membro da resistência polonesa). 
A busca insólita do protagonista ganha foros de parábola bíblica, explicada brilhantemente por Ilana Feldman num artigo que eu recomendo aos leitores. Por meio do funeral, Saul nega ao menino desconhecido o apagamento a que o nazismo procurava submeter o seu povo. A denominação do protagonista salienta o cunho profético da história: Saul é o líder guerreiro responsável pela fundação da nação israelita, tornando-se o primeiro rei de Israel. O filme de László Nemes confere não apenas subjetividade ao prisioneiro a que os nazistas excluíram do rol da humanidade, elevando-o ao status de pai fundador de uma civilização. 
O desfecho da história é condizente com o abismo erigido pelo filme, reflexo daquele construído pela História. Não é possível qualquer sopro de esperança, qualquer redenção catártica, quando o homem se recusa à sua principal premissa, a de ser humano. 

Três anos atrás, quando as primeiras centenas de milhares de manifestantes ocuparam as ruas do norte ao sul do Brasil, numa tomada repentina de consciência política, procurei ler o evento à luz de Metrópolis e M., um par de filmes argutos de Fritz Lang que eu havia acabado de ver (ver o artigo). Endossei em parte o olhar temeroso que o autor volta às massas organizadas; o quão propensas elas estariam a ser cegamente enredadas, e o totalitarismo que poderia se originar dali. Não muitos anos depois dessas duas obras, os pesadelos ali explicitados materializariam-se no terror nazista, que agora ressurge com agudeza em “Os Filhos de Saul”. 
Dez anos depois da 2ª Grande Guerra, quando a escritura da história do Holocausto principiava a ganhar contornos, Alain Resnais rodou “Noite e Neblina” (1955). Não para embalsamar o passado e transformá-lo em item de museu, mas sim para torná-lo de novo presente, no espaço do filme, enfatizando quão tênue é o limite entre a civilização e a barbárie. O questionamento ali colocado pelo narrador – “Quem de nós ficará de vigília para nos advertir sobre a chegada de novos carrascos?” – é primordial ainda hoje. Nesse tempo em que a nossa pátria cordial está mergulhada em lutas intestinas que atingem perigosamente as raias da insânia, é nossa obrigação olharmos para as lições deixadas pela História. É fundamental lutarmos pela vitória da luz sobre as trevas, da democracia sobre o totalitarismo, e pelo desmascaramento dos tiranos travestidos de super-heróis.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O teatro no cinema: “Cesar doit mourir” (2012), “Vous n’avez encore rien vu” (2011), "Traviata et nous" (2012)


Três bons filmes em cartaz por aqui atualmente trazem a mesma questão de fundo, a de como o cinema representa o teatro: “Cesar doit mourir” (Cesare deve morire, 2012), dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani, vencedor do Urso de Ouro de Berlim; “Vous n’avez encore rien vu”, de Alain Resnais e Bruno Podalydès, nominado à Palma de Ouro, e “Traviata et nous”, de Philippe Béziat. Cada um se debruça sobre um gênero distinto – a tragédia, o drama e a ópera – e sobre o passado, fazendo-o reverberar novamente no palco, a arte da presença, e enfim na tela do cinema, lugar em que o passado é embalsamado, como diz André Bazin... 
Digna de nota é não apenas a escolha do assunto, mas o mise-en-scène dessas produções. 

Cesar...” toma a tragédia de William Shakespeare “Júlio César”, recriando a Roma do bardo inglês no seio de Rebbibia, prisão de segurança máxima romana. Internos transformam-se nos reis, tiranos, escravos e homens livres. Transformam-se neles e os transformam. No contexto de tolhimento da liberdade em que se encontram, quanto mais se aproximam de seus personagens, mais eles conseguem dar voz aos seus temores e anseios. A obra de Shakespeare é, então, impregnada dos dissabores individuais daqueles homens, alguns dos quais jamais transporão os muros da detenção. 
A recíproca também é verdadeira. Eles conhecem bem os coups de théâtre, as reviravoltas repentinas que determinam o futuro dos homens. Por isso parecem tão bem talhados a encenar o percurso do rei que se torna tirano, acabando, enfim, assassinado pelo seu círculo mais próximo. A prisão transforma-se em laboratório e divã. E a arte exerce, enfim, todo o seu potencial disruptor: dá asas ao grupo, que descobre sua força ao transcriar a tragédia shakespeariana, e tolhe-a, ao encerrar a Roma eterna do dramaturgo inglês em torno das grades de Rebbibia. Cosimo Rega, um dos internos do complexo, o Cassio da obra, sintetiza bem isso ao constatar que as grades apenas se tornaram para ele uma prisão depois que ele descobriu a arte. 

Vous n’avez encore rien vu” toma como objeto o drama “Eurydice”, de Jean Anouilh, encenado pela primeira vez no Théâtre de l’Atelier em 1941. Drama que, por sua vez, recria a fábula de Orfeu e Eurídice. Neste caso a protagonista é atriz de uma companhia mambembe que se apaixona perdida e reciprocamente pelo jovem músico que encontra na estação de trem. O realismo fantástico conduz a ação. Depois de morta a jovem, o rapaz conhece seus antigos relacionamentos. Louco de amor e ciúmes, ele aceita a ajuda de um deles para tornar a encontrá-la, apenas para perdê-la novamente, já que não respeita as exigências do homem e a olha. 
Diferente de “Cesar...”, o drama aqui dá os braços a um fio de enredo: dois elencos antigos de “Eurydice” encontram-se depois da morte de seu autor – personagem fictício – por uma disposição testamentária dele. Juntos devem assistir a uma recente encenação do drama e opinar sobre ela: encenação simbólica, bem ao gosto contemporâneo. Sentados na sala escura do cinema tornado teatro, os artistas que outrora deram vida à peça são pouco a pouco impregnados pelos personagens, até que novamente tornam-se eles, encetando uma relação dialética com o teatro-filme apresentado no écran
Cenas fundamentais da obra são recriadas, várias delas experimentadas por cada um dos dois pares românticos que até então ocupavam passivamente a plateia. Aqui o que importa não é o sentido completo da criação, mas a poesia das palavras e dos gestos. No fim temos um encorpado exercício de desdobramento. Não mais uma, mas três Eurydices e três Orpheus se alternam para demonstrar a inexistência de sentidos fechados, unívocos, para a obra artística. “Eurydice” pode sempre renascer. Ainda mais no centro do palco, onde tudo é sempre novo. Uma homenagem ao teatro que se rende até mesmo a um explícito coup de théâtre, que não conto para não estragar a surpresa do espectador... 
Para o público brasileiro o filme apresenta dois atrativos especiais: Lambert Wilson, do ótimo “Homens e Deuses” (Des hommes et des dieux, 2010) como um dos Orfeus e Michel Piccoli do igualmente ótimo “Habemus Papam” (2011) como os dois pais. Eles desempenham-se num só tempo a si próprios e aos papéis de “Eurydice”. Teriam eles efetivamente composto os elencos de duas montagens distintas da peça? Não consegui responder a questão. Gostei no entanto, do entremear da ficção na realidade. 

Traviata et nous” percorre os bastidores da montagem da célebre ópera de Verdi para um festival ocorrido em Aix-en-Provence na primavera de 2011 (mise-en-scène de Jean François Sivadier, maestro Louis Langrée). Uma espécie de making of, diríamos à primeira vista – já que a encenação da própria ópera já está disponível para a venda –, não fosse o esforço que faz o documentário em negar a obra teatral para se concentrar na maquinaria que a engendra. 
Ideia luminosa, pois por mais eficiente que parece ter sido esta montagem, a ópera de Verdi continua a ser a boa e velha “La Traviata” cujas árias caíram nas graças do público há mais de 100 anos, espalhadas por meio do palco, de partituras, do cinema e do teatro – lembrem-se, no que toca ao cinema, da Júlia Roberts de “Uma linda mulher” (Pretty Woman, 1990) banhada em lágrimas ao som de “Amami Alfredi” ou do ébrio de Ray Milland acompanhando sedento os copos em “Farrapo Humano” (The lost weekend, 1945) enquanto o tenor entoa “Libiamo ne’ lieti calici” (como a-do-ro o humor negro de Billy Wilder...). 
Ao jogar luzes para o processo de criação desta montagem de “La Traviata”, Philippe Béziat repõe o interesse intelectual por essa ópera já tão conhecida. 
“La Traviata” é obra de grande espetáculo adaptada por Verdi de um grande sucesso literário e teatral de meados do século XIX – “A Dama das Camélias”, de Dumas. É de uma época de teatros ruidosos, claros, aos quais importavam especialmente o aparato cênico e a voz; daí o transbordamento geral dos gestos e das notas. 
Béziat opta por dar destaque ao detalhe. Portanto sublinha o trabalho de Sivadier no sentido de reduzir os cenários, multiplicar os símbolos e ajudar Natalie Dessay a criar uma Violeta cujo rosto expressa tanto quanto a voz. O filme evidencia bem o esforço do encenador, ao recortar a atriz em primeiros planos quando ela está mais plenamente mergulhada na personagem. Um mover de olhos, as mãos que acariciam o amado corpo imaginado, nascido de um arranjo de flores esquecido no proscênio. Fundamental na ópera, a voz torna-se aqui só mais um elemento da criação. O filme investe na elucidação do mise-en-scène que tornou possível o resultado final. 
Mas o resultado final a gente não vê. Esse e os outros dois filmes partem do teatro para torná-lo cinema, por isso eles me são tão interessantes nesse momento. Um truc fundamental nesse sentido é a inserção, em “Traviata et nous”, de uma sequência em que se sucedem fragmentos da morte de Violeta, tomados durante os ensaios. Serviriam eles como metáfora do cinema, que prima pela reprodução, ao contrário do teatro, ao qual importa o gesto final, perfeito? Ainda não sei. Mas o fato de a produção cinematográfica de hoje estar insistindo em questões como essas me entusiasma a pensar um pouco mais sobre elas.

Violeta aprende a fazer Alfredo presente
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A parte da resenha referente a "Traviata et nous" foi ligeiramente reformulada em 15/11. Demorei uns dias para me dar conta de que o diretor do documentário e o responsável pela mise-en-scène da ópera não eram as mesmas pessoas, e outros tantos dias para ter tempo de consertar meu equívoco...