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quarta-feira, 1 de março de 2017

Balanço do Oscar 2017


Este balanço do Oscar 2017 será, ainda uma vez, elíptico – como sempre, não consegui ver todos os indicados. Quem acompanha aqui os posts anuais sobre o assunto sabe que eles são invariavelmente antecedidos por preâmbulos explicativos sobre a não objetividade da premiação, ou o caráter endógeno de Hollywood – que inventou uma categoria para premiar os filmes estrangeiros justamente para separá-los da produção norte-americana. Raros, raríssimos artistas estrangeiros, falando suas línguas maternas, conseguiram arrebatar os cobiçados prêmios de Melhor Ator e Atriz, por exemplo – Roberto Benini ao que eu me lembre é a exceção, mas a xaropada dos campos de concentração que é A Vida é Bela (1998) só tem de exógena a língua, empregando até a medula a estética mainstream americana. 

Daí ao prêmio de melhor atriz ir às mãos de Emma Stone – que, sendo uma ótima jovem atriz, está a anos luz da esplendorosa Isabelle Huppert. Ridículo é compará-las, absurdo é colocá-las em pário de igualdade na disputa por um prêmio (como fora anos atrás a disputa entre Enmanuelle Riva e Jennifer Lawrence). A derrota da madura atriz francesa sobre a moçoila estadunidense – num caso como no outro – simboliza, de modo mais geral, a infantilização da sociedade norte-americana (e, por extensão, da nossa, nós que a consumimos tão entusiasticamente), e, num contexto cinematográfico, a morte da cinefilia. A vitória altissonante de La La Land – apesar do rolo insólito atinente ao prêmio de Melhor Filme – deixa isso claro: em terra que dá as costas à história, repudiando o passado por velho, a novidade banal ganha foros de conquista extraordinária. 
Considerando as diretrizes do Oscar, extraordinário é quando acontecem no evento coisas disruptivas, a exemplo do equívoco de se entregar o prêmio principal da noite ao filme errado. Em tempo real, milhões de espectadores ao redor do mundo viram a vida imitar a arte. Spoiler: ao final de La La Land, o bem-sucedido jazzista vê seu grande amor d’outrora, agora uma atriz renomada, sair de seu “clube” hipster nos braços de outro. Dado o lamentoso presente consumado, ele prefere refugiar-se na fantasia, refazendo mentalmente o percurso de ambos, do primeiro encontro à reviravolta do destino, de modo a perpetuar a união do par romântico, nem que seja apenas no plano imaginativo. A imposição stricto sensu da clássica “magia” de Hollywood fecha a película. O sonho dourado cala a realidade. 
Quando foi anunciado o recorde de indicações a La La Land, perguntei-me se, num tempo de alçamento ao poder do ultraconservador Trump, valia a pena perpetuar-se esta versão algodão-doce da vida. Eu não sou seu negro, ótimo documentário indicado à premiação da categoria, lança luzes sobre o histórico apagamento dos afro-americanos da cinematografia pátria – espelhamento da segregação racial em voga até os anos 70. O filme trabalha com os diários de James Baldwin, escritor negro amigo de Martin Luther King, Medgar Evers e Malcom X – três mártires da causa da igualdade. A violência do preconceito é materializada, no filme, por dois heróis tipicamente americanos, a girl next door Doris Day e o machão John Wayne. 
A destruição do índio pelo branco ganha, pelo cinema clássico, foros de saga de construção da nação. A “pureza branca” simbolizada por Doris Day anula outros matizes – a voz poderosa de Lena Horne soa na banda sonora do documentário, lembrando dos muitos papéis que o preconceito racial vetou a atriz de ter (o mais notório é o da comediante negra de Show Boat, filme que questionava justamente a lei que proibia o casamento inter-racial). 
É tempo de se questionarem as mitologias inventadas por Hollywood, e de se inventarem novas mitologias, que lancem luzes sobre esses tempos lúgubres que vivemos. O quiproquó referente à premiação final do Oscar serviu para ilustrar – à la La La Land – qual o resultado de se premiar a frivolidade saltitante. Tivemos chances de escutar a uma carrada de discursos do mais motivacional e nefasto teor do keep dreaming: sonhe, os sonhos se transformam em realidade se você lutar com força suficiente, etc. etc. A alva meritocracia neoliberal foi colhida em pleno voo, e ao seu discurso sucedeu-se um bem-vindo libelo em favor da igualdade. 
No âmbito artístico, sem ser uma obra-prima, Moonlight conta com sensibilidade a história de um menino negro nascido em meio ao tráfico em Atlanta – capital da Georgia, destruída durante a Guerra Civil: a mãe viciada, o bullying e o homossexualismo são a base de uma história que não trata em primeiro plano do preconceito racial, talvez porque ele seja a pedra angular daquela sociedade: a comunidade pobre/ negra habita os arredores da boca comandada por um chefe a quem Chiron toma como sucedâneo de pai. Sua aderência à vida do crime parece um caminho óbvio depois do reformatório, não tivesse o seu melhor amigo de colégio seguido o caminho contrário, encarando uma vida de legalidade – e o labor que ela significa, especialmente para alguém recém-saído da prisão. Quase todo subjetivo e elíptico, o filme evita a dicotomia e a moralização. Fá-lo com bastante precisão e raras vezes resvala à estetização. Seu mérito principal está em dar voz e subjetividade a uma personagem historicamente apagada da cinematografia do Norte – ou retratada, como o escravo “Pai Thomás” vituperado por James Baldwin, como mártir dócil. Baldwin gostaria um bocado deste filme. Se o Oscar raras vezes tange a esfera artística, este ano ele merece loas por ter decidido ser político. 
Com relação aos demais indicados, o mais bem-resolvido esteticamente é A Chegada. Lion seria uma obra-prima de melodrama não se arrastasse tanto na primeira parte (nem mesmo o pequeno e carismático Sunny Pawar impede, ali, a sua lassidão). A surpresa, para mim, foi Manchester à beira-mar, cuja montagem em síncopes sublinha a inabilidade da personagem principal com o seu entorno. E que personagem principal! Onde estava eu este tempo todo que nunca vira Casey Affleck? (O talento é de família). 
No mais, as injustiças costumeiras: Viola Davis, protagonista feminina de Um limite entre nós, foi mal colocada no rol das coadjuvantes. O prêmio era, aqui, de Nicole Kidman. O (ótimo) Dev Patel idem por Lion – neste sentido, Mahershala Ali, também de Moonlight, foi muito bem escolhido como vencedor. A estratégia de se reduzir a categoria do sujeito para viabilizar-se a sua premiação repete-se todo ano, e vez por outra dá resultado. No que toca aos filmes estrangeiros, nada vi dos indicados além do iraniano O Apartamento, o vencedor. Resta a ser revisto. A opção por Asghar Farhadi – diretor da, esta sim obra-prima, Separação – me pareceu preguiçosa. Na primeira visita, achei um bom filme, um pouco perdido, no entanto, em meio ao rol de temáticas que arrola: a metalinguagem, o machismo e conservadorismo daquela sociedade, o trauma. Não tem o pulso do Filho de Saul, Separação ou Ida, os premiados dos anos anteriores. 
Levando-se em conta as diretrizes do Oscar, este ano o resultado foi acima do esperado. Pelo tapete vermelho passaram as mais variadas nacionalidades e etnias. Entre indicados e vencedores, consagraram-se temáticas variadas: o lugar da mulher no interior de uma cultura machista, a inserção do negro na sociedade norte-americana, o homossexualismo... Abriram espaços para novos sonhos, multicolores. Dado o papel imperativo do Oscar, prêmio da mais influente cinematografia mundial, isto não é pouca coisa.

domingo, 29 de junho de 2014

Os biscoitinhos alcoólicos de Doris Day: considerações sobre a pretensa ingenuidade de “Volta, meu amor” (e sobre uma certa "American way of life")



Doris Day, desaparecida das vistas do público por décadas, voltou inopinadamente a ser foco dos refletores meses atrás, por ocasião de seu 90. aniversário, ao aparecer de surpresa na festa que os fãs organizam anualmente, em comemoração à data. 
Quem esperava o surgimento de uma daquelas deusas caídas do sistema de estúdio, saídas da batuta de gente como Billy Wilder, não conseguiu conter a surpresa. Doris Day, aos noventa, ainda tem cara de Doris Day – surpresa nesta era de cirurgias plásticas que, prometendo reter a marcha do tempo, só fazem enfatizá-la (e sublinhar o ridículo daqueles que não aceitam suas falíveis carcaças...). Doris deixou discretamente as telas nos anos 70, quando não pôde mais sustentar a imagem de girl next door que a tornou notória, para se dedicar a um trabalho pragmático – e bem menos glamuroso – de proteção a animais abandonados. Fundou uma ONG que auxilia a adoção dos bichos e levanta fundos para o castramento de cães e gatos. Passou a reproduzir, distante das câmeras, uma versão for real da mocinha cheia de calor humano que iluminou as telas entre os anos de 1940 e 70. O sucesso da escolha estampa-se em seu rosto, jovial, ainda, malgrado a dobra de tantas décadas. 
Nos anos em que esteve diante das câmeras, Doris Day era um símbolo. Desempenhava, naquele cinema afeito às grandes moralizações que era o estadunidense, a jovem saudável, de voz límpida, linda, curvilínea e incorruptível – namoradinha de portão e, quando casada, mãe e esposa amorosa. Limpa de qualquer mancha de imoralidade. Daí os enredos nos quais era imiscuída. Raros, raríssimos filmes seus têm lastros com a realidade, digamos, mais tangível. Exceções dignas de nota são “A Teia de Renda Negra”, “Young man with a horn”, “Love me or live me”, “O homem que sabia demais”, “Storm Warning”: a jovem esposa que descobre uma conspiração tendo em vista seu assassinato, a que descobre o marido envolvido na Ku Klux Klan, a que tenta, junto dele, salvar o filho de um perigoso homicida; ou a crooner talentosa – e talvez um pouco susceptível – que se vê presa dos bastidores sombrios do showbiss
No mais, Doris protagonizou infindáveis fantasias, nas quais ela era a imagem espelho que uma América mais sonhada que real. Um exemplo acima da média é este “Volta, meu amor” (de Delbert Mann, 1961), a segunda das três colaborações – todas bem sucedidas – suas com Rock Hudson. O filme aborda, pela chave cômica, a proposta crítica de Douglas Sirk – que teve vários de seus melodramas protagonizados por Hudson. Nele, como nas obras de Sirk, colocam-se em questão os supostos “bons costumes americanos” (que, no grosso dos filmes da atriz, são tomados como pontos assentes, a serem naturalmente respeitados, jamais questionados). 
Doris e Rock desempenham papéis de executivos em duas agências de publicidade que disputam uma mesma conta. Ambos são como a água e o vinho. Ele é Jerry Webster, um garanhão mau-caráter que procura ganhar os clientes apresentando-lhes aos inferninhos de New York. Ela é Carol Templeton, a casta e honesta jovem que trabalha duro almejando vencer pelo talento. No mundo das grandes corporações, essencialmente masculino, não é difícil sabermos quem ganhará a parada. A moça trabalha toda uma noite, mas amarga a derrota ao chegar ao hotel do cliente, pela manhã, e vê-lo em frangalhos, abraçado à gente e à bebida restantes da esbórnia da véspera. Seu oponente também trabalhara duro... 
Para vingar-se à altura, ela intenta fazer uso das próprias armas de Jerry. Para roubar-lhe uma próxima – e cobiçada – conta, intentará estabelecer com o cientista que trabalha para ele um envolvimento muito menos profissional que carnal. Porém, poderá fazê-lo, ela que é jovem de moral tão escorreita, educada na puritana cartilha da “América”? Ela que é, acima de tudo, Doris Day; mulher cuja exuberância as películas sempre frearam, enclausurando-a no tipo de good girl? O filme encena a questão de modo saboroso (e apimentado), através de incontáveis estratégias de inversão. 
Cairá nas mãos da executiva um sujeito homem, alto e forte, mas com vicissitudes de alma usualmente atribuída às mulheres: homem surpreendentemente virginal, que pede lição completa da vida e das coisas à mulher; homem frágil, “um feixe de neuroses”, que teme falhar com a fêmea que escolhê-lo. Mas acontece que este homem é também Jerry Webster, o troglodita da Times Square, que decide entrar no jogo da concorrente tão logo a conhece em carne e osso e descobre que ela o apetece. E acontece, sobretudo, que Jerry é Rock Hudson, cuja homossexualidade o público apenas viria a conhecer em virtude de sua morte prematura devido à AIDS, mas que não era desconhecida da indústria do cinema – que casara tantos galãs, na vida real, para dar fidedignidade aos machos que eles representavam nas telas. 
As trocas de lugares dão complexidade ao filme. Patenteia-se a fragilidade dos papéis pré-concebidos, que a sociedade atribui a homens e mulheres. Tocam-se feridas pelo viés do humor – modo eficaz para a discussão de questões sérias, naquele tempo em que a censura ainda cerceava a produção cinematográfica dos Estados Unidos. A inversão permite a Hudson encenar sua fragilidade tão fortemente escondida pela pátina do cinema; à Doris, liberar seu vulcão adormecido pelo histórico olhar enviesado voltado às mulheres.
Cena que bem o prova é aquela que antecede a entrega da mulher ao varão. Ela o deixa fragilmente depositado na cama do quarto de hóspedes, caminha até o seu quarto, pega do armário a camisola azul-bebê de seu enxoval, toma um trago para criar coragem e vai se trocar. O sexo não se consuma, porque ela descobre que o suposto cientista é o embusteiro Jerry. Mas, ainda assim, a cena é pródiga na apresentação do desejo mal-escondido da mulher, na luta que desejo e arraigados preconceitos travavam dentro de si. 
A castração é tão medonha que só a bebida liberta, já que minora o trabalho da consciência. Neste primeiro momento, e também no momento fundamental da trama – aquele em que Carol e Jerry, agora inimigos mortais, provarão dos biscoitinhos alcoólicos produzidos pelo químico arrogante pelo qual Jerry tentava se passar. Ambos acordarão gostosamente, no dia seguinte, numa mesma cama de um motel longínquo. Casados – não se pode ter tudo; ou o filme correria o risco de ser censurado. Mas a entrega ao status quo não é assim estrita: Carol anulará o casamento, tocará a gravidez sem o conhecimento do homem e apenas o verá novamente durante o parto, quando ambos resolvem se casar de comum acordo. 
É raro ver-se, no cinema mainstream americano, questionamento deste teor ao status quo, partida de gente tão rentável à indústria. Que ele aconteça com este grau de escamoteamento é compreensível, nesta época ainda submetida ao controle do Hays Code. Neste sentido, vale atermo-nos aos biscoitinhos alcoólicos – elementos-símbolos da inversão proposta pelo filme. Os confeitos infantis mostram seu interior incontrolável, disruptivo, mal encoberto pelos embrulhos coloridos que carregam. Símbolos de uma ilusória “beleza americana”, mas também sucedâneos de nossa natureza múltipla inaparente à primeira vista, que faz dos homens – felizmente – mais que tipos e, daí, tão bonitos de se ver.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Yes, nós temos bananas: o Rio no imaginário hollywoodiano


Começo o post pela cena que me motivou a escrevê-lo: Mickey Rooney imitando a Carmen

Miranda em "Babes on Broadway" (1941), um dos Rooney & Garland pictures. É certo que a imitação é mais uma homenagem que uma sátira, cumprindo o programa de irmandade cultural fomentado por ambos os países (tanto que há registros da própria Carmen ensinando o Mickey a balançar as cadeiras). O que mais me fascinou nela - não apenas nela, mas no grosso das películas que fazem alusão ao Brasil - é o olhar estereotipado que lançam ao país, mais especificamente ao Rio de Janeiro, metonímia do Brasil aos olhos do cinema standard norte-americano da época (e, ouso dizer, também de hoje).
É um prazer ver Mickey cantando "Mamá, yo quiero mamar.". O rapazinho é tão carismático que acabamos deixando de lado o quão perniciosa é a caracterização que junta todos países sul-americanos num mesmo pacote, amarrando-os com um laço bem grande e colorido que os transforma em charge. Outra coisa não era Carmen Miranda, uma das maiores cantoras nacionais que, em Hollywood, teve de se contentar com papéis de raparigas sensuais e exóticas, cujos sotaques estilizados não deixavam negar as origens: o país tropical, do calor e do sexo fácil. Carmen ganhou dinheiro e notoriedade, levando o nome do país aos quatro cantos do mundo através das películas em Tecnicolor rodadas pela Twentieth Century Fox. No entanto, contribuiu para que se perpetuasse no estrangeiro a imagem do país do eterno carnaval de acordo com a qual ainda somos conhecidos, imagem que nos trás turistas sedentos de calor e diversão, mas também motiva o turismo sexual.

Mas esse post está tomando um caminho pedregoso que não estou disposta a trilhar, não depois de ter separado com tanto entusiasmo uma porção de fotogramas de alguns filmes (dos quais gosto muito, aliás) em que o Brasil - ou melhor, o Rio - é personagem relevante.
Então vou agora mesmo mudar o rumo e tentar transformar isso aqui em um passeio turístico tão leve e agradável quanto aquele ao qual Hollywood buscava conduzir seus espectadores quando colocava em primeiro plano o brilho de nosso país, deixando de lado as nossas mazelas sociais. Lá vamos nós então.



Os primeiros fotogramas são do musical de 1933 "Flying down to Rio", no qual Ginger Rogers e Fred Astaire dividem a cena pela primeira vez, ainda como artistas coadjuvantes. O conjunto de cenas (parte delas stills), apresentados sucessivamente, dos pontos turísticos da ainda então capital da República, explicitam o imaginário que se construía do Brasil como um país de vicejante beleza natural e muita diversão. A Baía de Guanabara anunciando ao fundo o Pão de Açúcar; o Teatro Municipal, a Avenida Copacabana, o Hipódromo. Puxamos pela memória as últimas novelas das oito e vemos que o imaginário pouco mudou.
Contudo, nesses filmes antigos essas cenas, que não deixam de ser registro histórico de um tempo que há muito já se foi, ganham uma graça especial que sempre acaba por me entusiasmar. Bati os olhos no Hipódromo, hoje praticamente abandonado dada à decadência do esporte, e me lembrei do registro histórico/poético que Manuel Bandeira faz do local nos anos de 1940:

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo
(...)

E ao trombar com os "Turunas Band", banda nacional a princípio ironizada pelo conjunto comandado pela personagem de Astaire, me dei conta de quão up to date estavam os norte-americanos no que se tratava da cultura de nosso país. Para constar apenas de passagem, alguns "turunas" passaram pela cena artística de nosso país, a exemplo dos "Turunas da Mauriceia", grupo pernambucano que fez sucesso no Rio entre 1927 e 1930 tocando canções típicas do nordeste, como emboladas e cocos. Abaixo, um registro do grupo e, a seguir, dos "Turunas" inventados por Hollywood.



A disposição do conjunto nega o epíteto do grupo (turuna: forte, valente, ágil), deixando ainda mais claro aos brasileiros que aos norte-americanos o quanto ela tinha de pejorativa. Mas nem por isso ela deixa de ser engraçada, pois também os brasileiros redefiniam a cultura de seus vizinhos ao apreendê-la. O Brasil era um dos maiores mercados consumidores da produção cinematográfica norte-americana - o que o tornava, por extensão, consumidor do modo de vida daquele país. As jazz-bands pululavam em território nacional, alegrando os cassinos, as rádios, vendendo discos e divertindo as plateias do já abrasileirado teatro de revista. A "Turunas Band" inventada por Hollywood, que tocava foxtrote e a carioca, não ficava muito longe dos grupos compostos por elementos nacionais - no final dos anos 20, "Arthur Castro & American Jazz Band" fizeram sucesso com um maxixe chamado "Cristo nasceu na Bahia". O cosmopolitismo das bandas acenava para o cosmopolitismo instaurado pela indústria do cinema, em que tudo ganhava status semelhante de item de consumo para as massas. A própria "carioca" inventada na película mistura elementos norte-americanos e brasileiros, o violoncelo, o chocalho e o triângulo, os dançarinos de tap dancing e baiana sestrosa.




Aliás, a baiana de "Flying down..." nega a informação historicamente consolidada de que a responsável por elevar o tipo, até então estigmatizado, foi Carmen Miranda. O tipo da brasileira/baiana já parecia bem introjetado no imaginário norte-americano quando Carmen apareceu por lá. Nas películas rodadas em Hollywood, a imagem edênica do país se sobrepõe à sua realidade empírica - não é atoa que, nos anos 50, "Orfeu negro" arrebatou os estrangeiros, apresentando-lhes um país desconhecido. Para a construção do imaginário ajudou o fato de os filmes serem costumeiramente rodados em estúdio, sendo a cor local dada por telões que impunham a magia do espaço físico assim como as fotografias turísticas que batemos dos lugares mais bonitos que visitamos. Fred e Ginger caminham contra o telão que registra a avenida Gonçalves Dias, ponto tradicional da boemia literária carioca, e vão dar num arremedo da Confeitaria Colombo.
Não muito longe dali, cartazes anunciam, em inglês, os "Yankees Clippers" no "Hotel Atlantico". Neles, coqueiros, a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar. Perdura a imagem do Rio como destino de turistas estrangeiros.

É digno de nota o fato de o Brasil comparecer especialmente em comédias musicais, produções em que a fantasia se sobrepõe à realidade. Em "Uma noite no Rio" (That night in Rio, 1941), fotografias da cidade são substituídas por registros pictóricos dela, que salientam a invenção do país em detrimento de seu registro objetivo.


Carmen surge em seguida com a vestimenta de baiana que se tornou a sua segunda pele.

Casais fantasiados dançam tendo ao fundo a Baía de Guanabara. O Technicolor permitiu que se salientasse o colorido que se queria imprimir para o país. O fotograma acena também para outra característica do país que o tornava destino privilegiado, o carnaval.

Isso é ressaltado noutra película dos anos 40, "Romance on the high seas" (1949), debut cinematográfico de Doris Day. O baile de carnaval que dá fecho ao filme, tornando possível o happy end, aponta cabalmente para como nosso país é imaginado lá fora. Inegavelmente, é uma propaganda aos quatro cantos do mundo de nossa cordialidade. Que viengan os turistas...

Antes de ser "feliz para sempre", Doris Day entoa "It's Magic" na Praia de Copacabana, canção que a tornará the toast of Hotel Atlântico, mimetizando a relevância que exerce na ascensão da jovem crooner a estrela da música e do cinema.


A praia de Copacabana e o carnaval retornam brevemente em "Papai Pernilongo" (Daddy long legs, 1955), e novamente enquanto pintura, numa sequência estilizada colorida e lúgubre que lembra (e lembra até demais, para o próprio bem do filme) o antológico balé de "Sinfonia de Paris" (1951).




Brasil, paraíso terrestre, lugar da fantasia, do escapismo. Não é um acaso que casais sexualmente reprimidos vivessem seu idílio envoltos por nossa brisa amena e sob os olhos amorosos do Pão de Açúcar. É o que acontece em "Estranha Passageira" (Now, voyager, 1940), no qual a personagem de Bette Davis torna-se "Camille" à medida em que se aproxima de nosso país tropical - alusão à heroína romântica de Dumas Filho que se entrega a um amor proibido e foge para o campo para vivê-lo. Camille e seu Armand (Paul Heinred) dormem lado a lado numa cabana abandonada na estrada rumo ao Pão de Açúcar, desafiando a moral vigente e a censura cinematográfica. Estou lembrando que já falei sobre esse filme em duas outras ocasiões, quando falava sobre o cigarro no cinema e o sexo em Hollywood... Nem preciso dizer que gosto muito dele, não?



O romance de Ingrid Bergman e Cary Grant também se beneficia das belezas naturais do Rio. Em "Notorious" (Interlúdio, 1946), um dos grandes Hitchcocks, a personagem de Ingrid é outra Dama das Camélias que encontra a regeneração no amor.


Porém, sabemos que o romantismo do diretor percorre vias tortuosas. Antes de oferecer a oportunidade de regeneração à heroína, o Rio torna-se palco de seu mais arrematado decaimento. O imaginário é desconstruído. O hipódromo, cuja elegância contribui para enfeitar as películas norte-americanas, ganha em "Notorious" aquele sabor amargo que adquire para Manuel Bandeira: "Os cavalinhos correndo,/ E nós, cavalões, comendo... (...)/O sol tão claro lá fora,/ O sol tão claro, Esmeralda,/ E em minhalma — anoitecendo!".




Nele, a personagem de Ingrid contará ao homem que ama: "Você pode colocar Sebastian em minha lista de admiradores." Ela sabe que o caminho não tem volta. Precisará se casar com o espião nazista para levar a cabo o plano do governo americano.
A Cinelândia, até então passarela de turistas despreocupados, impregna-se da carga dramática da personagem que, então, já caminhava numa corda bamba. O belo edifício da Biblioteca Nacional, o qual, junto ao Teatro Municipal, ajuda a compor o patrimônio artístico da capital, torna-se no filme a base de operações da polícia brasileira/ norte-americana. Sua magnificência esmaga a protagonista, tanto quanto as luzes da cidade cegam-na, tornando sua doença ainda mais insuportável. Graças à Hitchcock, o Adão e a Eva cinematográficos são finalmente expulsos do paraíso.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Doris Day: a "girl next door" completa outro ano de vida




Plano de conjunto, em Cinemascope, da ensolarada Miami: praias, sol, calor, hotéis de luxo, carros, ruas e gente, muita gente, em meio à qual saltita uma garota. Dali em diante, a câmera andarilha se deixa seduzir pela jovem animada e a segue enquanto ela canta as suas inúmeras superstições, colocando em polvorosa os demais transeuntes dos quarteirões por onde passa. A cor, a música, a letra e a comédia física não deixam enganar: temos um Doris Day feature.
Efetivamente, a divertida sequência musical que abre "Lucky Me" (1954) remete-nos a outras tantas películas da moça que não parece fazer força alguma para ser simpática. "Ardida como pimenta" (Calamity Jane, 1953) toma-a primeiro em cima da diligência de Deadwood, a qual ela protege ferrenhamente dos selvagens enquanto canta

Oh, the Deadwood stage's a-headin' on over the hills,
Where the Injun arrows are thicker 'n porcupine quills.
Dangerous land, no time to delay,
So whip-crack-away, whip-crack-away, whip-crack-away!

E lá vai ela chicoteando os cavalos e atirando nos índios que a perseguem com tanta graça e bom humor que pouco pensamos no quão politicamente incorreta é a cena.
Aos olhos do século XXI, os filmes de Doris Day são no mínimo paradoxais. Eles inegavelmente reafirmam uns preconceitos e lugares comuns: em "Ardida como pimenta", além da agressão aos índios, há uma jovem masculinizada que aprende a ser mulher com uma corista - aprendizado que inclui uma faxina geral na casa onde vivia ao som de "A woman's touch"; em "The thrill of it all" (1963), é uma workaholic que depois percebe que seu lugar é ao lado do esposo e não na da emissora de TV onde trabalhava como garota-propaganda; em "The ballad of Josie" (1967), é uma viúva pacata que aprende a ser machona para defender sua propriedade, porém, acaba botando fogo nos jeans quando encontra um homem pra chamar de seu; em "Confidências à meia-noite" (Pillow Talk, 1959) é uma career woman socialmente bem posta e aparentemente feliz mas que, no fundo, anseia para si o mesmo que sua colega Josie ansiava.

The thrill of it all

Mas, mesmo apresentando atitudes e tipos sociais ultrapassados e/ou criticáveis, é impossível negar a graça desses filmes. Também podemos acreditar que a cantoria que interrompe a ação deixa o resultado final ainda mais artificial e datado. Porém, quando Doris começa a cantar "The black hills of Dakota", "It's magic" ou "Que será, será", ela acaba por nos enredar. Aí, não somos mais os espectadores críticos que veem o filme com o dedo em riste para apontar seus defeitos. Transformamo-nos naquele público ansioso dos grandes espetáculos alegres: queremos nos divertir e emocionar com as canções e cenas cômicas.
Doris chegou a fazer alguns filmes "sérios". "Midnight Lace", em que ela divide a cena com Rex Harrison e Myrna Loy, é um dos thrillers mais angustiantes que já vi. Ali, Doris está soberba como a mulher perseguida por um inimigo que nem mesmo nós sabemos se realmente existe. Em "Storm Warning" (1951), a atriz é uma jovenzinha apaixonada que desconhece estar casada com um membro da Klu Klux Klan. A irmã, interpretada por Ginger Rogers (que prazer ver duas de minhas atrizes favoritas atuando juntas!), verá o cunhado entre o grupo que lincha um estrangeiro (e não um negro) e abrirá os olhos da mocinha. Aliás, esse é um filme fascinante para que analisemos os artifícios usados pelos americanos para a construção de sua memória coletiva... Sem falar em "O homem que sabia demais" (The man who knew too much, 1956), um dos grandes Hitchcocks, em que ela dá um show como a mãe que teve o filho sequestrado.
No entanto, deliciosas, mesmo, são suas dinâmicas e hilárias comédias. Mérito da atriz, que conseguiu dar credibilidade a alguns papéis bem frágeis. Papéis como aqueles das películas que ela divide com o lindíssimo Rock Hudson. Em "Volta, meu amor" (Lover, come back, 1961), por exemplo, ela é uma virginal publicitária de Nova York que se vê tripudiada por um adversário (Rock) e acaba casando-se com ele depois de ser embriagada com biscoitos alcoólicos (?!). Ou "Confidências à meia-noite", em que a também virginal designer de interiores tem dinheiro para comprar roupas ma-ra-vi-lho-sas mas não consegue comprar uma linha telefônica para si, tendo que dividi-la com um Don Juan (Rock, que, obviamente, tentará seduzi-la). Doris, com sua competente atuação, escamoteia os furos do enredo e sublinha os achados do mesmo. De "Confidências...", minha cena preferida é aquela em que Rock conduz a carruagem através do Central Park. Primeiro, Doris e Rock e depois, o condutor, são tomados em planos americanos. A câmera lê os pensamentos que acompanham as ações dos personagens ("Há algo tão saudável num homem que gosta de animais" - a apaixonada moça diz; "Espero que esse bicho estúpido saiba pra onde está indo" - diz o rapaz; "Esse cara segura as rédeas como se segurasse as alças do metrô. Não sei qual é a dele, mas fico feliz por ela não ser minha filha" - diz o condutor...). Pronto: temos uma das cenas mais hilárias de todos os tempos.


Outra - essa quase farsesca - é aquela em que a designer ofendida mostra todo o seu veneno na decoração a la "Mil e uma noites" que produz no apartamento do rapaz. "Behold the work of a woman in love", diz o farsante, mal sabendo que isso o esperava:


Uma música de suspense soa ao fundo, aumentando a hilariedade do conjunto. A gota d'água é a canção "You are my inspiration xxx" gravada no piano - leitmotiv satírico do devasso protagonista, compositor da Broadway que presenteava suas inúmeras namoradas com uma mesma canção, cujo verso alterava de acordo com os nomes das garotas.

Amanhã, 3 de abril, a jovem que parece nunca envelhecer completa 86 anos. Não nos deixemos enganar pela idade: mesmo longe das telas há pelo menos três décadas, ela continua aquela mesma jovem entusiasmada cuja imagem sedimentou em dezenas e dezenas de filmes. Trocou os casacos de pele pelas calças de moleton e comanda a "Doris Day Animal Foundation", uma associação protetora dos animais reconhecida pelo Estado. Agora que não é mais dominada por Hollywood, ela só aparece quando e como quer.
Alguns anos atrás, aluguei "Não me mandem flores". Vi uma vez, vi de novo no outro dia. Então, aluguei "Confidências à meia noite" e fiquei incrédula. Como alguém poderia ser tão charmosa, engraçada e cantar tão bem? Confesso, um pouco envergonhada, que não consegui resistir. Eu queria entrar na tela e bater um papo com ela. Como não dava, escrevi uma daquelas fan letters que, depois de termos crescido, juramos que nunca mais escreveremos, e enviei-a à atriz. Dois meses mais tarde, recebi do carteiro um grande envelope. Imaginem qual não foi minha reação quando li "For Danielle/ love/ Doris Day"? Que surpresa saber que, fora das telas, Doris Day continuava sendo a mesma adorável girl next door!
Bem, o que mais dizer da moça (e à moça) que me emocionou fora e dentro das telas, se não "Happy birthday, dear. I wish you the happiest life!"?

*

Os admiradores da atriz poderão ouvir as homenagens que duas rádios farão a ela amanhã: a KIDD 630-AM da Califórnia e a Fred Net Radio de Baltimore.




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Doris Day conversa com o locutor da rádio KIDD 630 AM da Califórnia (3/4/2010)