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sexta-feira, 8 de maio de 2015

A atualidade de "O Rei do Gado"

Ainda compilo notas que me ajudem a dar conta da tarefa a que me propus no artigo passado: tentar explicar o papel da telenovela “O Rei do Gado” (de Benedito Rui Barbosa, dirigida por Luiz Fernando Carvalho, 1996-97) em nossa memória coletiva. 
Não é das tarefas mais fáceis. Eu poderia dar ao tema um enquadramento puramente técnico: levantar os altos números do IBOPE desta enésima reprise, quando comparados aos produtos saídos fresquinhos da mesma casa. Ou poderia colocar este folhetim lado a lado com os contemporâneos, e estabelecer uma óbvia – e, portanto, pouco desafiadora –, comparação que elevaria um em detrimento dos outros. Ou então, mergulhar em minhas recordações pessoais – já que, no final das contas, eu sou um dos sujeitos que enformam a tal memória coletiva a quem esta novela deve o seu sucesso. 
E então, puxo os fios da memória. Lembro-me do sertanejo de raiz ouvido pelo meu avô; do italiano macarrônico da “Nona”, minha centenária bisa; das canções napolitanas que eu cresci escutando; do “r” comprido que alongava as palavras (e os palavrões) ditos pela minha avó paterna, herança dos encontros e desencontros dela com gente daqui e d’além-mar. E as macarronadas, as polentas com frango. Os cáspitas, empiastros, maledetos e quejandas italianices que o convívio familiar incorporou ao meu dicionário, para o desespero de algumas professoras do colégio. Rever “O Rei do Gado” liga-me à moleca que eu era aos 14 anos, da qual os (des)caminhos da vida aos poucos me fizeram esquecer; daí aos nós na garganta e as lágrimas nos olhos serem meus companheiros constantes, enquanto estou diante da TV, vendo-a. 
A nostalgia é um bicho traiçoeiro. “Isso daria uma moda de viola.” – me replicaria o poeta-violeiro Pirilampo. Mas, não, refiro-me ao perigo que representam esses itens a que a pátina da afetividade nos impede de ver de todo. E firmo os olhos n’“O Rei do Gado”, tentando dissociar a novela empírica das recordações minhas que ela evoca. 
E ela sobrevive com louvor à prova. 
Há, ali, humanidade de sobra. Humanidade na sua acepção primeira. Não a bondade fajuta desses heróis contemporâneos, mas sim a natureza humana em toda a sua densidade: nas qualidades e nos defeitos – porque, como bem perceberam os Românticos, mestres do gênero folhetinesco, a qualidade do homem se mede pela extensão de sua luta para debelar seus pecados. 
Pureza demasiada incita o sentimento pouco cativante da soberba – a afirmação da inexistência do pecado é, para o cristianismo, já um pecado em si. E maldade demasiada, daquelas que não dão a ver mesmo uma nesga de luz, é algo simplesmente inverossímil – ao menos, para alguém que já passou da infância, que é o espaço por excelência para a catarse dos sentimentos primitivos. As extremidades de pureza ou maldade não favorecem a identificação do público com o espectador. 
Aí, volto para “O Rei do Gado” e me deparo com a Luana; a mocinha que guarda em si um mundo: roceira desmemoriada criada tal e qual bicho do mato, cujo palmear vagabundo por esse mundo de meu Deus leva-a a um assentamento de sem-terras, ao coração de um senhor de muitas terras, à recuperação de seus liames com o passado, e, enfim, à descoberta de sua rica ascendência. Destino, amor, disputa e luta de classes se misturam, nesse caldeirão cultural responsável por gerar o que de mais popular a literatura ocidental produziu nos últimos 200 anos. 
“O Rei do Gado” remete aos grandes romances dos Oitocentos, adicionando às balizas formais do gênero clássico uma temática puramente nacional. Os sem-terras dos tempos de Victor Hugo eram os operários arranjados em comunas, aos quais igualmente se juntava a miséria e a dignidade. Luana descende das moças campesinas de Balzac, definidas pela exiguidade de suas posses e pela grandeza de seus sonhos. Bruno, o “rei do gado”, tem entre seus ascendentes um Jean Valjean, um Edmond Dantès, homens falíveis, no entanto, cheios de grandeza psicológica – que se permitem perdoar as faltas alheias, por poderem espelhar, nelas, as suas almas conflituosas. 
O público ama “O Rei do Gado” por reconhecer, mais intuitivamente ou menos, os lastros que esta novela estabelece com o seu arcabouço cultural: com a literatura que o formou, nos bancos da escola ou na vida; com as histórias contadas pela família, profundamente romanescas; com os filmes antigos – que beberam em grande medida desta mesma fonte. Falo obviamente das gerações passadas. Antes que os efeitos especiais passassem a dar as cartas na factura das tramas, antes que a violência obscena se tornasse um must nos enredos, respondendo à sede de sangue do público, só esperávamos o desenrolar vagaroso de fios sabiamente enovelados, a tessitura de tramas encorpadas – coloridas, brilhantes, quentes como os belos cachecóis que nossas avós nos costuravam. 
“O Rei do Gado” parte da tradicional premissa do amor entre dois jovens, membros de famílias que se odeiam. A Julieta e o Romeu de Rui Barbosa são Berdinazzi e Mezenga, multiplicados, ao longo da trama, em Giuliana, Luana, Rafaela, Enrico, Bruno, Marcos – gerações com as quais o autor percorre um lastro temporal de 50 anos. 
Lastro altamente significativo, que engloba dos últimos suspiros da monocultura do café aos latifúndios do gado de corte, da Segunda Guerra Mundial aos conflitos agrários, além do paulatino aculturamento dos italianos. As disputas entre as duas famílias por conta de uns poucos metros de chão multiplicam-se, em 50 anos, pela dimensão da fortuna – real e simbólica – que ambas amealham. Jeremias Berdinazzi, o único remanescente da tradicional família, é agora um grande produtor de leite; Bruno Mezenga, um grande criador de gado. À disputa pela posse das terras e pela permanência do nome soma-se, agora, o conflito geracional. 
O tema nasce shakespeareano para ganhar pouco a pouco contornos nacionais. A longínqua Guerra, que acaba por definir o destino da família Berdinazzi, encontra, na segunda parte da trama, uma rima visual com o Movimento dos Sem-Terras, graças ao qual os primos perdidos se reencontram e se apaixonam. Para além do colorido pitoresco que se dá ao MST, cumpre assinalar a delicadeza com que o grupo é apreendido, tomada implícita de posicionamento do autor frente ao então recente episódio de Eldorado dos Carajás, que terminara com o assassinato de dezenas de militantes pela polícia truculenta do baixo Pará. 
Bandeiras auriverdes tremulam no assentamento do incansável Regino, enquanto o senador Caxias peleja pela causa do grupo, diante de um plenário vazio. Zé Ramalho serve de trilha à luta inglória de ambos: “Vocês que fazem parte dessa massa./ Que passa nos projetos do futuro/ É duro tanto ter que caminhar/ E dar muito mais do que receber.” Só eu acho que essas imagens e dizeres adquirem, nesses nossos atuais dias em que atitudes reacionárias ameaçam manchar as conquistas arduamente alcançadas pelo nosso Estado de Direito, um inusitado poder disruptivo? Ainda mais quando exibidos com tanto sucesso, pela principal emissora do país? 
Para além do tema e da forma, “O Rei do Gado” ainda concentra um dos elencos mais inspirados de todos os tempos. Antonio Fagundes como o velho Antonio Mezenga e o neto Bruno Berdinazzi Mezenga, Tarcísio Meira como Giuseppe Berdinazzi, Raul Cortez como Geremias Berdinazzi, Letícia Spiller, uma menina, como Giovanna Berdinazzi, Stênio Garcia como Zé do Araguaia, Jackson Antunes e Ana Beatriz Nogueira como Regino e a esposa Jacira. Sem, de modo algum, ser exaustiva. 
Como esquecer os olhos de Eva Wilma (Marieta Berdinazzi) diante dos sofrimentos dos filhos? Ou de Raul Cortez, diante da tão repetida canção italiana, sobre os pracinhas mortos em combate? Ou da ombridade que Carlos Vereza imprime em seu senador Caxias? Ou do tour de force de Patrícia Pillar para criar a sua Luana – a maior distância entre pessoa e personagem que já se viu na TV brasileira: mulher a que os reveses da vida fez retraída, ressabiada, mas que ocasionalmente se expande em discursos que primam pela singeleza da linguagem e pelo lancinante do conteúdo (sua narrativa da colheita das "cerejas do café", por exemplo)?
Exibida por ocasião do aniversário de 50 anos da Rede Globo, "O Rei do Gado" sustenta-se como o que de melhor a emissora exibiu este ano. Que a novela esteja prestes a completar seu vigésimo aniversário é, no mínimo, irônico. Esperemos que o seu sucesso sirva de injeção de criatividade aos criadores da emissora.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Sordidez no horário nobre: a imoralidade em “Amor à Vida” (e os caminhos da telenovela)

Aos que não me conhecem nem conhecem o que eu escrevo, deixo avisado que não sou moralista, nem pudica, nem crente praticante e tampouco tenciono posar de modelo de conduta a quem quer que seja. Isso para dizer que pretendo abraçar a questão lançada acima do ponto de vista da arte, ou seja, da inserção da nova novela das nove na série dramatúrgica contemporânea. 
“Amor à Vida” (escrita por Walcyr Carrasco) surgiu com a missão de reerguer o horário depois do fracasso (de Ibope e de crítica) de sua antecessora. “Salve Jorge” teve de encarar a dura tarefa de suceder “Avenida Brasil” (de João Emanuel Carneiro), na qual coincidiram qualidade e sucesso de público. O fardo já pesado somou-se à crise criativa da escritora Glória Perez, e o resultado final foi um folhetim que será lembrado apenas por seu papel social (peguei-o em seu último mês e meio de projeção, o suficiente para acompanhar os desdobramentos dos casos de tráfico de pessoas que ele ajudou a desvendar). 
Paloma/Paolla Oliveira e Bruno/Malvino Salvador
Sem influência espiritual que lhe pesasse, “Amor à Vida” começou altissonante, prometendo equiparar-se à última criação de Emanuel Carneiro. Fez um primeiro capítulo ágil e tenso, de marcado tom dramático com esparsos escorregões, e apresentou um vilão que se anunciava como a versão masculina de Carminha. Não demorou, todavia, para os problemas começarem a amontar. 
O gênero telenovela, de fruição tão fácil, exige um labor inimaginável para que continue interessante passados sete, oito, nove meses de exibição. “Avenida Brasil” alcançou isso de modo excepcional pelo menos por toda a sua primeira metade, pela sofisticação com que seu autor cuidou não apenas das duas protagonistas, mas também de boa parte do elenco coadjuvante (exemplo cabal foi a personagem de Monalisa/Heloísa Perissé, pela maturidade com que ela tratou sua relação com Tufão/Murilo Benício quando ele, apaixonado pela cozinheira/Nina volta a procurá-la). 
Paula/Klara Castanho
É certo que o público contemporâneo de telenovela é mais heterogêneo que há vinte anos; que mais indivíduos de classes menos favorecidas economicamente possuem aparelhos de TV. Porém, é erro grosseiro supor que gente das classes C, D e E é tola. A variedade do público comporta uma gama que vê TV, que vai dos indivíduos paupérrimos de grande senso crítico, à gente podre de rica que só tem cabeça para dependurar chapéu. O nível de percepção que o escritor de telenovela tem do fato determinará se ele vai produzir coisas da qualidade de “Avenida Brasil” ou de “Amor à Vida”. 
A baixa qualidade dramatúrgica de “Amor à Vida” é tão patente que parece intencional. 
Ela é falha do ponto de vista de construção de intriga, já que insere o núcleo principal dentro de um hospital. A telenovela, narrativa longa em capítulos, obriga à criação de situações complicadas que gerem demanda diária do público. Séries norte-americanas de sucesso tomam como tema o dia-a-dia hospitalar (Dr. House, por exemplo). Porém, nelas o que importa é o caso clínico, e então há atenção à construção ficcional das personagens doentes, mesmo (sobretudo) as representadas por atores desconhecidos. 
César/Antonio Fagundes e Pilar/Susana Vieira
A telenovela nacional requer o desenvolvimento paralelo de vários núcleos dramáticos. Querer que também os personagens-pacientes sejam rebuscados, de modo a criarem-se situações dramáticas consistentes no âmbito hospitalar, já seria pedir demais. 
“Amor à Vida” efetivamente passa longe disso. A ação no núcleo do hospital é gerada por expedientes frágeis e/ou inverossímeis: personagens de outros núcleos são transformados em doentes, de modo a interagirem com o núcleo do hospital; ou então o espaço é transformado no campo de desenvolvimento de peripécias de uma melodramaticidade mexicana, que, se giram a engrenagem da ação, deixam igualmente transparecer a pobreza dramatúrgica do conjunto. 
Uma criança achada na rua é registrada como filha do homem que teve a mulher e o filho mortos no parto, com a ajuda da médica que só cometera a ilegalidade porque amava o viúvo, e que para se defender engancha-se com uma enfermeira rival e acaba por matá-la. A mulher cuja criança fora roubada agora a tem nos braços, a sente sua filha, doa-lhe parte do fígado e descobre, por exame de DNA, ser efetivamente ela a criança perdida. O irmão mau descobre-o igualmente, e tenta matar a criança ao ministrar-lhe o remédio errado no hospital. 
O hospital é campo de desenvolvimento de uma intriga de criança, que produz pérolas do mais velho dramalhão (o “chamado do sangue”, que faz a mãe reconhecer intrinsecamente a filha perdida; a vilania stricto sensu do irmão, travestida de bondade) utilizando-se, ironicamente, das mais novas técnicas da ciência. Nem tão ironicamente assim, aliás: “Avenida Brasil” me parece ter sido acidente de percurso dentro da produção novelística contemporânea, a qual, se serve um público cada vez mais infantilizado, não é menos verdade que coopere para criá-lo (e mantê-lo como tal). 
Félix/Mateus Solano
Lancei ao post um título que ainda nem comecei a desenvolver, provavelmente porque os problemas formais de “Amor à Vida” sejam mais urgentes que aquele concernente às pautas lançadas por ela. A telenovela nacional historicamente dialoga com a sociedade que a vê. As boas o fazem com tanta destreza que, mesmo respondendo a questões imediatas, tornam-se eternas. 
Mesmo fazendo face à questões emergentes, como o direito de casais homossexuais à criação de uma família, “Amor à Vida” está menos próxima de nós que São Paulo de Tóquio. Seu microcosmo continua a ser composto dos brancos pertencentes às classes média/alta de uma São Paulo com dicção carioca. 
Com a diferença fundamental de que, em “Amor à Vida”, um quinhão de imoralidade foi espalhado democraticamente por todas as personagens da trama. Do dono do hospital, falso moralista que grita contra o aborto e coleciona amantes, ao homem “certinho” que encontra uma criança na rua e a registra como sua para substituir aquela que acabou de perder, à ex-dançarina que deseja vender a filha a um milionário, à popular “bicha má”, bicho-papão cuja visibilíssima falsidade ninguém consegue enxergar... 
Márcia/Elizabeth Savalla e
Waldirene/Tatá Werneck
“Amor à Vida” apresenta um concerto de atos desonestos de comprimentos e profundidades variados, nas chaves cômicas e dramáticas, todos a satisfazerem instintos meramente egoístas. E de forma tão visível que um incauto poderia considerar esse “amor à própria vida” uma paródia de telenovela, e não uma obra que busca dar continuidade linear ao gênero. 
Que não se fazem mais novelas como antigamente, está claro. Que elas parecem piores – ao menos para esta que vos fala –, idem. O sucesso de público de “Amor à Vida” obriga-nos, todavia, a abrir questões mais que a fechá-las. Talvez comecemos a respondê-las ao compreender porque trambiques, grosserias e afins de gente pouco profunda e não raro totalmente desinteressante interessa tanto o espectador atual.