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domingo, 8 de abril de 2018

Zama (2017): delírios coletivos materializados

Resenha originalmente escrita a convite do Cine Suffragette, e publicada aqui.


“Zama”, o filme mais recente de Lucrecia Martel, é a história da América Latina que faltava – e precisava – ser contada. 
Uma série de países viabiliza o esforço (os créditos da produção, a contar pelo IMDB, são impressionantes, figurando países como, além da Argentina, o Brasil, a Espanha, o México, a França e Portugal – entre outros –, e nomes como Gael Garcia Bernal, Pedro Almodóvar e Danny Glover), e o resultado é formalmente impecável: a direção de fotografia de Rui Poças, a direção de arte de Renata Pinheiro e o design de som de Guido Berenblum fazendo emergir com perícia inequívoca os fantasmas individuais da cineasta, magnificados, agora, contra o pano de fundo da delirante colonização da América pelo Velho Mundo. 
Zama
O filme toma como objeto a colonização da América Espanhola, mas podemos sem esforço estendê-la, nos seus contornos e intenções, a essas nossas plagas. A obra adapta o romance homônimo de Antonio Di Benedetto, escrito em 1956, o qual se centra no oficial espanhol que lhe dá título: Don Diego de Zama, nobre que se vê obrigado a se alongar num rincão do Paraguai, aguardando uma transferência a Buenos Aires (à “civilização”) que nunca se realiza. Na obra original, a estada se dá em Assunção. Porém, Assunção já era cidade importante no século XVIII – ela que fora um dos principais núcleos de colonização da América Espanhola. A obra de Lucrecia Martel recua o protagonista a um interior em que o exótico se aproxima do inóspito, e o real da loucura. 
Zama
Uma figuração mais onírica (ou alucinatória) que realista da cidade, projetada pelo febril Zama, já àquela altura chafurdado até o pescoço na burocracia Estatal, a aguardar uma transferência que nunca haveria de chegar. Martel sublinha com força o caráter de mascarada da colonização espanhola na América Latina (e, por extensão, no contexto brasileiro). Zama ostenta com enfado seus trajes rotos de cortesão espanhol, a exemplo da entourage daquela corte transplantada aos trópicos, a oficiar “à europeia”, em meio a uma natureza indomável e a uma sociedade implantada a fórceps, feita de um punhado de dominadores e de um rol de dominados a nutrirem ódios viscerais e inconfessados, como numa fábula primordial. 
Frans Post (séc. XVII)
Parcela da crítica anda sentindo falta de realismo histórico em “Zama”, como se a história fosse objeto estanque a ser tomado e repercutido, como se não fosse, ela própria, criação, construída a partir das perguntas que o analista contemporâneo lança ao tempo pregresso. Gosto de pensar em “Zama”, pelos deslocamentos que ele promove, como uma versão argentina do “Leopardo” de Luchino Visconti (de 1963), filme baseado na obra-literária igualmente escrita num longo distanciamento temporal do evento narrado (de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, 1959), a qual toma o seu tema – neste caso, a unificação italiana, ocorrida em meados do século XIX – sob a ótica do seu momento de produção. 
Zama
Martel, como Visconti, são dois potentes criadores, para os quais a história adentra a ficção num só tempo como objeto e como metalinguagem. Daí a presença forte, nessas duas obras, da arte da pintura. Ao aproximarem o quadro cinematográfico do pictórico, ambos colocam em questionamento o caráter mimético da pintura realizada entre os séculos XVII e XIX, a qual, embora se ofereça ao espectador enquanto encapsulamento de um tempo, trata-se, na verdade, de realidade filtrada pelos olhos do artista. 
A unificação italiana de Visconti se constrói sobre o temário da pintura romântica dos Oitocentos: os grandes ideais, as grandes revoluções, os grandes dramas de amor, os retratos de família da tradicional nobreza europeia. Don Fabrizio Salina, seu narrador, tem consciência de que vive os estertores de uma era e a registra à maneira de um zeloso pintor romântico, eternizando-a com o pincel da idealização. 
Debret (1823)
Já Lucrecia Martel recua no tempo e toma a aquarela dos viajantes europeus que se demoraram na América Latina; em missões artísticas financiadas por nações variadas, para as quais a pintura exercia um caráter de registro e de controle sobre os territórios conquistados. Zama à beira do rio que banha a cidade, tendo atrás de si a topografia angulosa e preponderante; as choças de barro e teto de palha, a oferecerem precário conforto naqueles rincões; as investidas dos conquistadores pelos sertões, em busca de ouro – ou, neste caso, da destruição de um vilão ubíquo, terrível, embora tão frágil de corpo; a tirania perpetrada aos negros e nativos; os quadros familiares, cujas encantadoras cores saturadas caminham par a par com temáticas nas quais se ressalta com força o abismo social que fundou a América: 
Esses conhecidos registros pictóricos são abordados com rigor poético e crítico por Martel, ora por meio do deslocamento do quadro, no indígena tiranizado que comete um ato capital contra si, fora do enquadramento da objetiva; ora na aproximação da objetiva, que focaliza as vestes rotas e as perucas desalinhadas – potencializando-se o ridículo de se transplantar a sociedade europeia aos trópicos. Ora na inserção de tangos sestrosos de meados do século XX, a ironizarem aquele projeto de sociedade que procurava se arrimar à custa da exploração do outro. 
Zama
O percurso interpretativo é, no entanto, fruto da reflexão desta analista. Porque a força deste filme está no fato de ele haver casado a forma ao tema, abdicando da busca ao realismo e à linearidade que são próprios das narrativas históricas, submergindo-se, no ato de sua construção, nas mesmas águas turvas que enredam Zama em sua viagem – em nossa viagem? – sem volta à barbárie que ele ajudou a fundar.

domingo, 31 de julho de 2016

Mãe só há uma (2016)

Há filmes que vão nos ganhando aos poucos. “Mãe só há uma” (Anna Muylaert, 2016) é um exemplo. A história tem traços do caso policial que veio à baila anos atrás, da mulher que sequestrou um bebê e criou-o como filho até ser descoberta pelas autoridades, década e meia mais tarde. Do caso a que a imprensa deu foros de novelão das oito, lembro-me de um detalhe: do menino de semblante plácido que pedira, por favor, para voltar a viver com a sua sequestradora, a única mãe que ele jamais conhecera. 
O sequestro serve a Anna Muylaert como pano de fundo, ao qual sobrepõem-se as subjetividades das personagens e as relações interpessoais – apreendidas por meio de uma câmera que multiplica os pontos de vista. O motor da trama é a personagem de Pierre (Naomi Nero), colhido pela tragédia naquele momento sensível da vida, que é o de formação da personalidade. 
Vemo-lo nas festas, a experimentar relações amorosas com ambos os sexos. Na escola. No ensaio da banda de rock. Diante do espelho do banheiro, testando, a portas fechadas, a sua sexualidade. Ou seguido furtivamente por um veículo enquanto ele desembesta, de bicicleta, pelas ruas do bairro. O contorno surpreendentemente detetivesco que a história recebe logo se justifica: obrigado judicialmente ao teste de DNA, Pierre descobrirá o crime que concerne à mãe. 
Se a câmera de Muylaert estranhará ao espectador de “Que horas ela volta?” (2015), sugiro que ele firme as vistas. As tomadas da casa a partir do exterior, tendo a voz off das personagens em surdina, ou a urgência da câmera na mão, a perseguir a mãe que se vê descoberta e precisa dar as últimas recomendações à cuidadora das crianças, antes de ser levada presa, servem para a pontuação de uma tensão que chega aí ao seu limite. 
A câmera é, aí, um sucedâneo do olhar de Pierre à vida. Cria-se, então, uma conivência incontornável entre o menino e o público. Os mimos que os pais verdadeiros, ricos, lhe dão, não compensam a unidade familiar destroçada – apreendida com poesia pela diretora, nas tomadas da casa agora vazia da família que ele aprendera a reconhecer como sua. Algumas sequências explicitam eximiamente a ambivalência, a exemplo daquela em que Pierre – agora Felipe, malgrado o seu desejo – recebe, numa rigidez respeitosa, os afagos da numerosa e efusiva família que o festeja. 
No entanto, o olhar de Muylaert é polissêmico como a vida. Ao ponto de vista do menino se somará mais tarde aquele da família biológica, sobretudo a dos pais e do irmão. Colocam-se em primeiro plano os anseios destes, especialmente dos pais (ótimos Matheus Nachtergaele e Dani Nefussy). Do mais superficial – de inserir o menino a fórceps na casta privilegiada à qual pertencem, obrigando-o a assumir o papel de macho-alfa –, até o anseio profundo de se verem finalmente aceitos. 
Não se economiza nas tintas do drama emocional, que chega ao paroxismo na sequência catártica do jogo do boliche, mas se deslinda com mais suavidade no nascente companheirismo entre os irmãos – construído à custa do esforço do mais novo de pôr de lado preconceitos inerentes ao seu grupo de amigos; metáfora da construção paulatina da personalidade. 
A câmera coloca-se a serviço das subjetividades várias, por vezes se demorando nos planos. Por meio deste expediente, ações aparentemente prosaicas vão se somando num crescendo até culminarem num emocionante desfecho agridoce. 
“Mãe só há uma” é um filme imperdível. Longe de ser popular como “Que horas ela volta?” consegue, pelas escolhas estilísticas da diretora, atingir uma carga de humanidade ainda superior – talvez porque se encerra abrindo-se às tensões da vida, para as quais não há respostas prontas ou conclusões fechadas.