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terça-feira, 27 de maio de 2025

Quando o musical de Hollywood encontra a ópera: os filmes de Jeanette MacDonald & Nelson Eddy (1935-1942)


O musical cinematográfico norte-americano emergiu praticamente com a ascensão do cinema falado em versão industrial. Nos anos da depressão econômica que se seguiu à quebra da bolsa de NY, em 1929, eles – e a magia que forneciam – serviram de alento a uma população extensivamente empobrecida. “A Rosa Púrpura do Cairo” (Woody Allen, 1985) ficcionaliza a este respeito de forma deslumbrante. A obra aborda a história de Cecília, a jovem pobre de uma cidadezinha interiorana que, casada com um brutamontes que a tiraniza, tem o seu imaginário preenchido pelas histórias de amor saídas da “capital do cinema” – sobretudo aquelas protagonizadas por Freddy Astaire e Ginger Rogers, o mais célebre entre os pares românticos produzidos nos anos 30. Sobre eles eu escrevi um texto cheio de afeto nos primórdios deste blog, 15 anos, uma vida atrás
Outro desses casais célebres é o assunto que hoje ressuscita o blog, parado há seis meses: Jeanette MacDonald & Nelson Eddy, menos lembrados que Astaire e Rogers, mas celebérrimos nas décadas de 30 e 40, quando protagonizaram oito musicais da MGM. Como os colegas da RKO Radio Pictures, MacDonald e Eddy ajudaram a dar forma ao musical de Hollywood – no caso deles, misturando a música popular e a clássica, já que ambos eram cantores líricos. É simbólico retomar o blog com esse tema, pois costuro, aqui, os meus amores da juventude e os contemporâneos. 
Quando o casal contracenou pela primeira vez, em “Naughty Marietta” (“Oh, Marietta!” (1935, dir. Robert Z. Leonard e W. S. Van Dyke), a soprano e atriz Jeanette MacDonald (1903-1965) já era uma estrela. Após 10 anos atuando na Broadway, nos coros, em jump-ins e em esporádicos papéis de destaque, a artista finalmente ascendeu a protagonista em 1929, momento em que chamou a atenção de Ernst Lubitsch, que preparava o seu primeiro filme falado. “The Love Parade” (Alvorada do Amor, 1929), em que ela contracena com o galã francês Maurice Chevalier, se transforma num exemplo bem sucedido de filme cantante, concorrendo mesmo ao Oscar. 
A parceria de MacDonald e Lubitsch seria repetida ainda em “An hour with you” (“Uma hora contigo”, 1932) e em “The Merry Widow” (“A viúva alegre”, 1934), nos quais ela também contracenou com Maurice Chevalier (com quem ainda faria “Love me tonight/Ama-me esta noite”, de Rouben Mamoulian, 1932). Para além das bilheterias, essas obras fomentaram as gravações de singles de um punhado de músicas de sucesso, a exemplo de “Dream Lover” (de Victor Schertzinger e Clifford Grey, de “The Love Parade”), “Love me Tonight” (Richard Rodgers e Lorenz Hart, de “Love me tonight”) e “Vilia” (Franz Lehár, Lorenz Hart, de “The Merry Widow”, 1934). 
Em Maytime

Já Nelson Eddy (1901-1967) atravessou a primeira metade dos anos de 1920 atuando concomitantemente como barítono (a inclinação ao canto lírico nasceu ainda na infância, em coros de igreja) e jornalista. Acabou abandonando a segunda carreira em prol da primeira, quando, depois de vencer um concurso, ingressou numa companhia operística da Filadélfia, o que lhe permitiu construir um amplo repertório, em que estavam inclusas óperas de Mozart, Verdi e Puccini. No início dos anos de 1930, cantou mesmo no Carnegie Hall, regido por Ottorino Respighi. Contudo, a guinada em sua carreira se daria em 1933, quando às pressas substituiu exitosamente a soprano alemã Lotte Lehmann num concerto em Los Angeles. Após inúmeras pontas em filmes da MGM, estúdio com quem assinou contrato em 1933, foi alçado a co-protagonista de Jeanette MacDonald no supramencionado “Naughty Marieta”. 
A química inequívoca da dupla (o longevo blog https://maceddy.com/ dedica rios de tinta ao romance on e offscreen do casal, então, convido os curiosos a acessarem-no, pois vou me abster das fofocas de bastidores), par a par com a sua beleza clássica e o seu talento como cantores-atores, transformam a obra num sucesso não apenas cinematográfico, mas também discográfico. A obra foi alçada a melhor filme do ano de 1935 pela revista Photoplay, concorreu ao Oscar de melhor filme no ano subsequente, e a canção “Ah! Sweet mystery of life” (Victor Herbert, Rida Johnson Young), entoada pela dupla, alcançou vendas expressivas. MacDonald e Eddy tornam-se, então, The American Sweethearts
“Naughty Marietta” lança as balizas que seriam geralmente seguidas nos filmes da dupla. A obra baseia-se no musical homônimo de Victor Herbert, com letra de Rida Johnson Young, estreado na Broadway em 1910. Repercute, portanto, músicas que já eram notórias do público, senão pela assistência in loco do espetáculo, por sua escuta nas rádios. A transformação do musical nova-iorquino em filme, bem como a disseminação dessas canções em discos e no rádio retroalimentam a nascente cultura de massas. Ademais, os filmes protagonizando o casal adotam fielmente a fórmula da Hollywood clássica (especialmente em suas décadas iniciais), de associar pessoa e personagem, fazendo com que os artistas apresentassem ad nauseam tipos previamente definidos, que já haviam motivado o engajamento do público. 
Para isso colabora a repetição dos corpos artísticos dessas produções. W. S. Van Dyke, por exemplo, diretor bastante experimentado no campo tanto da comédia quanto do drama histórico (dirigiu a série cômica do Tin Man, protagonizada por William Powell e Myrna Loy, e os dramas “Maria Antonieta/Marie Antoinette”, com Norma Shearer e Tyrone Power, 1938, e “San Francisco”, de 1937, com Jeanette MacDonald e Clark Gable), também dirigiu Macdonald e Eddy em “Rose Marie” (1936), “Sweethearts (Canção de Amor, 1938), New Moon (Lua Nova, 1940) e, finalmente, em I Married an Angel (Casei-me com um anjo, 1942). Já Robert Z. Leonard, co-diretor de “Naughty Marieta” e de “New Moon”, dirige também “Maytime” (Primavera, 1937) e “The girl of the Golden West” (A princesa do Eldorado, 1938). 
Ao contrário dos musicais de Rogers e Astaire, que se passam na contemporaneidade – ainda que claramente falseada –, aqueles protagonizados por MacDonald e Eddy recuam até períodos anteriores ao século XX, aproveitando-se das habilidades dos diretores no melodrama histórico – gênero então amado pelo público no âmbito folhetinesco, teatral e cinematográfico. 
Assim, essas obras tematizam a França pré-revolucionária (como, além de “Naughty Marieta”, “New Moon”), o período do império de Louis Napoléon (como “Maytime”), a Londres elisabetana (“Divino Tormento/Bitter Sweet”, 1940) ou a época da penetração no meio oeste americano (“The girl of the Golden West”). Em todas, o desnível social entre a dupla é objeto de tensão – ela é uma princesa, aristocrata ou prima-dona, enquanto ele é pobre, seja policial, mercenário, aspirante a cantor ou bandoleiro. Consequentemente, a democrática ultrapassagem do status quo torna-se o mote dessas obras. 
Se há algum espaço para crítica social nos filmes de MacDonald e Eddy, ela recua no tempo. Criticam-se, no caso de “Naughty Marietta”, os desmandos da monarquia absolutista francesa, que obrigam a princesa prometida a um velho nobre à fuga aos Estados Unidos, terra da promissão, e o seu encontro com o oficial mercenário por quem ela se apaixonará. Os musicais da dupla seguem a tradição do gênero. Não apontam o dedo às mazelas sociais contemporâneas. Apostam, antes, na defesa do self-made man. Isso se dá mesmo no caso de “New Moon”, já que, embora a personagem de Eddy seja originalmente um duque francês (libertário, perseguido pela monarquia), ele precisa se travestir de escravo e serviçal para merecer sua ascensão numa nova ordem social democrática – fundada numa ilha remota ao mesmo tempo em que a França vivia a Revolução. Todavia, vários desses filmes não deixam de se aliar a um patriotismo rasteiro, já que os EUA estavam mergulhados na 2ª Guerra Mundial, e Hollywood se alinhou às hostes belicistas. 
Se “New Moon” aborda a questão de forma implícita (nele fazem-se ouvir os acordes de La Marseillase”, hino da Revolução), “Sweethearts” o faz mais explicitamente. Trata-se de uma das três obras do casal que se passam na contemporaneidade – as outras são “Rose Marie”, história da prima-dona canadense que se embrenha pelas matas do país em busca do irmão – um já ótimo James Stewart anterior ao estrelato – em fuga da polícia, e se apaixona pelo sargento da guarda montada que é escalado para procurar o rapaz; e “I married an angel”, conto (com interessantes laivos surrealistas e psicanalíticos) da secretária apaixonada que reforma o conde estroina, herdeiro do banco onde ela trabalha. 
Filmada em Technicolor, o que dá a dimensão da relevância da dupla na Hollywood clássica, “Sweethearts” pespega no público um conjunto de canções patrióticas entoadas pelo par romântico nas rádios nova-iorquinas. Filmes como este motivavam a venda de bônus de guerra. No entanto, o discurso patriótico não abandona a visada ao lucro. Fiel à fórmula adotada com sucesso por Hollywood, a trama faz referência ao epíteto e à relação amorosa tumultuosa vivida pelo casal protagonista, seja no título, seja no enredo (narra-se a história fictícia de um casal notório da Broadway que é seduzido por Hollywood no momento em que comemora seis anos de seu casamento e da estreia seu bem-sucedido musical). 
Outra questão importante nesses filmes é a autorreflexão da indústria do cinema sobre o seu lugar na cultura mundial. Daí ao diálogo que eles estabelecem entre o musical da Broadway e a ópera. Nos primórdios deste blog, abordei os musicais de Judy Garland e Mickey Rooney, que então me interessavam pelo esforço de defesa do musical norte-americano que eles encenavam – esforço simbólico do (desejado) deslocamento do eixo da produção artística da Europa para os Estados Unidos. 
Já os filmes de Jeanette MacDonald e Nelson Eddy aproveitam o treinamento prévio da dupla no canto lírico – Eddy era, como vimos, cantor de ópera, enquanto MacDonald se dedicaria posteriormente a essas produções –, fazendo-os cantar tanto os números musicais conhecidos pelo público mainstream quanto os operísticos apreciados pelo público mais cultivado, o que procurava elevar a estatura dessas obras. Assim, filtros do tempo que são, esses filmes permitem-nos conhecer os cânones da ópera de 90 anos atrás. 
O repertório abordado pela dupla é extenso e não tenho a intenção, aqui, de ser exaustiva. The girl of the golden West aborda o gênero de forma enviesada, já que adapta cinematograficamente a peça teatral utilizada por Giacomo Puccini para a criação de sua La Fanciulla del West” (a peça, de autoria de David Belasco, estreou em 1905, enquanto a obra do compositor italiano data de 1910). Se numa obra como “New Moon” essa presença é episódica – nela, MacDonald canta “Ombra Mai Fú” (da ópera “Xerxes”, de Georg Friedrich Händel, 1738) –, nos filmes centrados no mundo da ópera ela é contundente. 
Em “Rose Marie”, duas sequências operísticas são determinantes para a construção da curva dramática da personagem da mocinha. Na (longa) inicial, aborda-se a ópera “Romeu e Julieta”, de Charles Gounod (1867), desde a notória ária “Je veux vivre” até a morte do par romântico. Já nos estertores do filme, a personagem feminina, após se ver obrigada a deixar o homem que ama, é uma errática Tosca (da obra homônima de Giacomo Puccini, 1900) na sequência que tematiza a morte de Cavaradossi e o suicídio da protagonista. E, finalmente, o âmbito operístico é fundamental na obra-prima “Maytime” – chegando o seu diretor mesmo a compor uma longa sequência final de uma ópera romântica protagonizada por soprano e barítono, um unicórnio na grafia operística, para que o casal pudesse cantá-la. 
Vistos em conjunto, os filmes protagonizados por MacDonald e Eddy nos apresentam um microcosmo da Hollywood dos anos dourados. Assisti-los é, portanto, pedagógico para que apreendamos o que a indústria do cinema então defendia. Se valores arrevesados e preconceitos os mais variados obviamente emergem do conjunto - dado que tais filmes estão ao menos 80 anos distantes de nós -, eles se sustentam pelo talento do casal protagonista e pela artesania cinematográfica, questões que pretendo discutir oportunamente ao abordar “Maytime”, obra que merece um artigo à parte.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

A atualidade de "O Rei do Gado"

Ainda compilo notas que me ajudem a dar conta da tarefa a que me propus no artigo passado: tentar explicar o papel da telenovela “O Rei do Gado” (de Benedito Rui Barbosa, dirigida por Luiz Fernando Carvalho, 1996-97) em nossa memória coletiva. 
Não é das tarefas mais fáceis. Eu poderia dar ao tema um enquadramento puramente técnico: levantar os altos números do IBOPE desta enésima reprise, quando comparados aos produtos saídos fresquinhos da mesma casa. Ou poderia colocar este folhetim lado a lado com os contemporâneos, e estabelecer uma óbvia – e, portanto, pouco desafiadora –, comparação que elevaria um em detrimento dos outros. Ou então, mergulhar em minhas recordações pessoais – já que, no final das contas, eu sou um dos sujeitos que enformam a tal memória coletiva a quem esta novela deve o seu sucesso. 
E então, puxo os fios da memória. Lembro-me do sertanejo de raiz ouvido pelo meu avô; do italiano macarrônico da “Nona”, minha centenária bisa; das canções napolitanas que eu cresci escutando; do “r” comprido que alongava as palavras (e os palavrões) ditos pela minha avó paterna, herança dos encontros e desencontros dela com gente daqui e d’além-mar. E as macarronadas, as polentas com frango. Os cáspitas, empiastros, maledetos e quejandas italianices que o convívio familiar incorporou ao meu dicionário, para o desespero de algumas professoras do colégio. Rever “O Rei do Gado” liga-me à moleca que eu era aos 14 anos, da qual os (des)caminhos da vida aos poucos me fizeram esquecer; daí aos nós na garganta e as lágrimas nos olhos serem meus companheiros constantes, enquanto estou diante da TV, vendo-a. 
A nostalgia é um bicho traiçoeiro. “Isso daria uma moda de viola.” – me replicaria o poeta-violeiro Pirilampo. Mas, não, refiro-me ao perigo que representam esses itens a que a pátina da afetividade nos impede de ver de todo. E firmo os olhos n’“O Rei do Gado”, tentando dissociar a novela empírica das recordações minhas que ela evoca. 
E ela sobrevive com louvor à prova. 
Há, ali, humanidade de sobra. Humanidade na sua acepção primeira. Não a bondade fajuta desses heróis contemporâneos, mas sim a natureza humana em toda a sua densidade: nas qualidades e nos defeitos – porque, como bem perceberam os Românticos, mestres do gênero folhetinesco, a qualidade do homem se mede pela extensão de sua luta para debelar seus pecados. 
Pureza demasiada incita o sentimento pouco cativante da soberba – a afirmação da inexistência do pecado é, para o cristianismo, já um pecado em si. E maldade demasiada, daquelas que não dão a ver mesmo uma nesga de luz, é algo simplesmente inverossímil – ao menos, para alguém que já passou da infância, que é o espaço por excelência para a catarse dos sentimentos primitivos. As extremidades de pureza ou maldade não favorecem a identificação do público com o espectador. 
Aí, volto para “O Rei do Gado” e me deparo com a Luana; a mocinha que guarda em si um mundo: roceira desmemoriada criada tal e qual bicho do mato, cujo palmear vagabundo por esse mundo de meu Deus leva-a a um assentamento de sem-terras, ao coração de um senhor de muitas terras, à recuperação de seus liames com o passado, e, enfim, à descoberta de sua rica ascendência. Destino, amor, disputa e luta de classes se misturam, nesse caldeirão cultural responsável por gerar o que de mais popular a literatura ocidental produziu nos últimos 200 anos. 
“O Rei do Gado” remete aos grandes romances dos Oitocentos, adicionando às balizas formais do gênero clássico uma temática puramente nacional. Os sem-terras dos tempos de Victor Hugo eram os operários arranjados em comunas, aos quais igualmente se juntava a miséria e a dignidade. Luana descende das moças campesinas de Balzac, definidas pela exiguidade de suas posses e pela grandeza de seus sonhos. Bruno, o “rei do gado”, tem entre seus ascendentes um Jean Valjean, um Edmond Dantès, homens falíveis, no entanto, cheios de grandeza psicológica – que se permitem perdoar as faltas alheias, por poderem espelhar, nelas, as suas almas conflituosas. 
O público ama “O Rei do Gado” por reconhecer, mais intuitivamente ou menos, os lastros que esta novela estabelece com o seu arcabouço cultural: com a literatura que o formou, nos bancos da escola ou na vida; com as histórias contadas pela família, profundamente romanescas; com os filmes antigos – que beberam em grande medida desta mesma fonte. Falo obviamente das gerações passadas. Antes que os efeitos especiais passassem a dar as cartas na factura das tramas, antes que a violência obscena se tornasse um must nos enredos, respondendo à sede de sangue do público, só esperávamos o desenrolar vagaroso de fios sabiamente enovelados, a tessitura de tramas encorpadas – coloridas, brilhantes, quentes como os belos cachecóis que nossas avós nos costuravam. 
“O Rei do Gado” parte da tradicional premissa do amor entre dois jovens, membros de famílias que se odeiam. A Julieta e o Romeu de Rui Barbosa são Berdinazzi e Mezenga, multiplicados, ao longo da trama, em Giuliana, Luana, Rafaela, Enrico, Bruno, Marcos – gerações com as quais o autor percorre um lastro temporal de 50 anos. 
Lastro altamente significativo, que engloba dos últimos suspiros da monocultura do café aos latifúndios do gado de corte, da Segunda Guerra Mundial aos conflitos agrários, além do paulatino aculturamento dos italianos. As disputas entre as duas famílias por conta de uns poucos metros de chão multiplicam-se, em 50 anos, pela dimensão da fortuna – real e simbólica – que ambas amealham. Jeremias Berdinazzi, o único remanescente da tradicional família, é agora um grande produtor de leite; Bruno Mezenga, um grande criador de gado. À disputa pela posse das terras e pela permanência do nome soma-se, agora, o conflito geracional. 
O tema nasce shakespeareano para ganhar pouco a pouco contornos nacionais. A longínqua Guerra, que acaba por definir o destino da família Berdinazzi, encontra, na segunda parte da trama, uma rima visual com o Movimento dos Sem-Terras, graças ao qual os primos perdidos se reencontram e se apaixonam. Para além do colorido pitoresco que se dá ao MST, cumpre assinalar a delicadeza com que o grupo é apreendido, tomada implícita de posicionamento do autor frente ao então recente episódio de Eldorado dos Carajás, que terminara com o assassinato de dezenas de militantes pela polícia truculenta do baixo Pará. 
Bandeiras auriverdes tremulam no assentamento do incansável Regino, enquanto o senador Caxias peleja pela causa do grupo, diante de um plenário vazio. Zé Ramalho serve de trilha à luta inglória de ambos: “Vocês que fazem parte dessa massa./ Que passa nos projetos do futuro/ É duro tanto ter que caminhar/ E dar muito mais do que receber.” Só eu acho que essas imagens e dizeres adquirem, nesses nossos atuais dias em que atitudes reacionárias ameaçam manchar as conquistas arduamente alcançadas pelo nosso Estado de Direito, um inusitado poder disruptivo? Ainda mais quando exibidos com tanto sucesso, pela principal emissora do país? 
Para além do tema e da forma, “O Rei do Gado” ainda concentra um dos elencos mais inspirados de todos os tempos. Antonio Fagundes como o velho Antonio Mezenga e o neto Bruno Berdinazzi Mezenga, Tarcísio Meira como Giuseppe Berdinazzi, Raul Cortez como Geremias Berdinazzi, Letícia Spiller, uma menina, como Giovanna Berdinazzi, Stênio Garcia como Zé do Araguaia, Jackson Antunes e Ana Beatriz Nogueira como Regino e a esposa Jacira. Sem, de modo algum, ser exaustiva. 
Como esquecer os olhos de Eva Wilma (Marieta Berdinazzi) diante dos sofrimentos dos filhos? Ou de Raul Cortez, diante da tão repetida canção italiana, sobre os pracinhas mortos em combate? Ou da ombridade que Carlos Vereza imprime em seu senador Caxias? Ou do tour de force de Patrícia Pillar para criar a sua Luana – a maior distância entre pessoa e personagem que já se viu na TV brasileira: mulher a que os reveses da vida fez retraída, ressabiada, mas que ocasionalmente se expande em discursos que primam pela singeleza da linguagem e pelo lancinante do conteúdo (sua narrativa da colheita das "cerejas do café", por exemplo)?
Exibida por ocasião do aniversário de 50 anos da Rede Globo, "O Rei do Gado" sustenta-se como o que de melhor a emissora exibiu este ano. Que a novela esteja prestes a completar seu vigésimo aniversário é, no mínimo, irônico. Esperemos que o seu sucesso sirva de injeção de criatividade aos criadores da emissora.

domingo, 2 de agosto de 2009

Romeu e Julieta, de George Cukor


Romeu e Julieta (Romeo and Juliet, 1936). Aí está um dos filmes que mais me impactaram nesse período de tempo que fiquei longe daqui. Isso porque eu sou fascinada pela direção do George Cukor, porque acho a Norma Shearer uma graça e porque a fita dialoga com uma porção de coisas que venho lendo e pensando nesses últimos meses.
Quando a vi pela primeira vez, 20 dias atrás, senti que, pela primeira vez, todas aquelas palavras de Shakespeare ganharam vida. Todos aqueles versos, que me pareceram tão grandiloquentes e deslocados no texto escrito da peça (quando o li aos 15 anos), e na versão cinematográfica dela protagonizada por Leonardo di Caprio (a que assisti não muito depois), e até mesmo em Sheakespeare apaixonado, de repente ganharam sentido ao serem pronunciados por Norma Shearer, Leslie Howard e John Barrymore. O sentimento amoroso, a ironia, a pilhéria: até 20 dias atrás eu não havia encontrado essas qualidades na história. Aí vi a cantada fantástica que Romeu passa em Julieta e, pela primeira vez, notei o quanto ela é sensual e ousada: o fato de o rapaz querer depositar seus pecados nos lábios da moça só não é mais fascinante do que o de ela desejar devolver nos lábios dele o pecado que ele lhe entregou. Formulação absolutamente formidável, tão década de 1930, tão George Cukor!... Talvez seja por isso que o diretor conseguiu criar uma obra prima cinematográfica à altura da obra prima teatral.
O modo como Cukor conseguiu atualizar a história sem atualizar a linguagem da mesma é notável. Não mais notável, no entanto, que o caminho traçado pelo drama: apresentado primeiramente para as popularíssimas platéias da Londres seiscentista, ele tornaria a viver no bojo da cultura de massas, para o deleite das popularíssimas (ou nem tanto) platéias dos Estados Unidos, de Londres, do Brasil, do mundo inteiro. Quatro séculos e tantas mudanças econômicas mais tarde fizeram com que a história servisse a propósitos muito semelhantes: agradar o grande público, tão desejoso de diversão.
Benjamin lembra das palavras proferidas por Abel Gance em 1927: "Shakespeare, Rembrandt, (...) Todas as lendas, todas as mitologias (...) aguardam sua ressurreição luminosa". Já estava claro o poder das telas de abraçar a produção e os produtores de obras de arte e distribuí-los em larga escala. Esse filme corrobora cabalmente a afirmação do crítico.
Óbvio que os mecanismos de atração são outros. Nos tempos de Shakespeare, homens representavam papéis femininos, convenção plenamente aceita pelo público. Nos anos de 1930, o star system estava a todo vapor, construindo ídolos em série. Norma e Leslie são os maiores atrativos do filme - o trailer dele, que convida o público a ver a reunião dos pombinhos de O amor que não morreu (Smilin' through, 1932), deixa isso claro. Isso, porém, não diminui a importância da adaptação. Ao contrário, a beleza do resultado final atesta que a peça realmente se trata de uma obra de arte, sempre atual - especialmente quando manipulada pelas mãos certas.
Cukor certamente tem um bom par dessas mãos. Daí o fato de ele ter conseguido ressaltar o que há de sensual e engraçado na história, através de uma direção conscienciosa que, abaixando o tom de voz dos artistas, deu intimidade à verborragia shakespeareana e tornou todos aqueles discursos tão tocantes. E como ajudaram aqueles close-ups do belo rosto de Norma Shearer, rosto que endossava cada uma daquelas linhas...
Já vi Shakespeare no teatro, Otelo (Diogo Vilela fazendo o papel de Iago). O elenco não era ruim, mas a montagem não conseguiu atingir 10% da excelência da adaptação cinematográfica de Romeu e Julieta. Sendo assim, sinto-me obrigada a concordar com Gance: a ressurreição de Shakespeare se dá especialmente no cinema. Se se quiser manter os diálogos originais, penso que aquele Shakespeare popular do século XVI só pode se tornar novamente apetecível ao público nas telas, por meio de atuações sóbrias. Por meio, enfim, desse estilo cinematográfico que se tornou tão popular no século XX, o único capaz de demonstrar a atualidade dos sentimentos à baila na história.