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quarta-feira, 29 de maio de 2024

Topografia de um delírio – “O Gabinete do Dr. Caligari” no Theatro São Pedro


Crítica publicada em Notas Musicais a 15 maio 2024. 

O filme silencioso de Robert Wiene foi acompanhado pela Orquestra do Theatro São Pedro. 

O Theatro São Pedro vem eventualmente retomando a sua vocação ao cinema – o espaço foi inaugurado em 1917 como um cineteatro – e exibindo filmes silenciosos com acompanhamento musical ao vivo. Viver esta experiência é visitar nostalgicamente as sessões de cinema do passado: entre fins de 1910 e a década de 1920, existia uma variedade de estabelecimentos como o São Pedro, servindo ao público tanto espetáculos teatrais quanto cinematográficos, à medida de suas necessidades, ou ambos os espetáculos, já que, eventualmente, uma curta cena teatral antecedia a exibição de um filme, muitas vezes recuperando a temática da película a ser exibida. 
A experiência não é apenas nostálgica, mas também pedagógica. Acompanhar um desses programas cuidadosamente organizados pelo São Pedro colabora para a compreensão de como se organizavam as sessões de cinema na época em que a música desempenhava um papel capital durante a exibição – na ausência do texto falado, cabia à música dar voz às personagens, daí os grandes investimentos feitos neste âmbito, fazendo com que as orquestras consumissem, neste recorte de tempo de que falamos, grande parte das verbas empregadas na manutenção dos cinemas. A presença de músicos ao vivo na sala de espetáculo explicita outra característica deste cinema cuja produção foi descontinuada há quase um século: o seu hibridismo, a convivência existente entre o material já pronto e aquele gerado no calor da hora, enfim, o seu caráter teatral, já que nenhum espetáculo era igual ao outro. 
A exibição de O Gabinete do Dr. Caligari pelo Theatro São Pedro tem, além disso, uma função histórica inegável, entrando no escopo de esforços realizados a partir de, sobretudo, os anos de 1980, no intuito de se recuperar a espectatorialidade do cinema silencioso. Desta época em diante, além da contratação de compositores para a escrita de acompanhamento orquestral para filmes específicos, pesquisas historiográficas passam a ser desenvolvidas visando a recuperação dos acompanhamentos originalmente escritos para os filmes. 
Em 1920, embora estúdios compusessem partituras para os seus filmes mais relevantes e as comercializassem juntamente deles, as salas de cinema tinham autonomia para decidir a natureza da música que apresentariam, o que levava em consideração, por exemplo, o número de integrantes da orquestra – não era incomum que certos cinemas abrissem mão das partituras disponíveis, deixando ao pianista o papel de improvisador da música que acompanharia determinado filme. 
Das Cabinet des Dr. Caligari é uma obra paradigmática da presença do expressionismo no cinema. É uma obra de vanguarda, que busca romper com o realismo do cinema comercial, fazendo-o não do ponto de vista da construção cinematográfica (ou seja, de enquadramentos ou cortes inusitados, que surpreendam o público), mas sim da cenografia. Deste modo, abre mão da profundidade de campo oriunda da arte renascentista, em prol de cenários pintados que dão destaque às sombras e à deformação. Ao invés da realidade construída pelo cinema clássico, que se quer um recorte objetivo da realidade do mundo, o cinema expressionista procura fazer emergir as almas torturadas dos seus personagens. Não casualmente, esta estética é empregada por Robert Wiene na Alemanha recém-saída da 1ª Grande Guerra, momento em que o hediondo emerge como realidade comezinha.
O Gabinete do Dr. Caligari é também tributário dos estudos de Freud sobre a alma humana, que seriam depois apropriados por artistas mais comerciais ou menos – mesmo Alfred Hitchcock, que se une a Salvador Dali, em Quando fala o coração (Spellbound, 1945), para criar as sequências dos herméticos sonhos do protagonista, os quais, interpretados, desvendariam a autoria do assassinato de que ele era culpado. 
A obra de Wiene narra em flashback, a partir do ponto de vista de um jovem rapaz, a história de um suposto médico insano que exibe o sonâmbulo Cesare numa feira – o exibicionismo de indivíduos atípicos foi algo comum até os primeiros decênios do século XX. Para além da mera exibição, todavia, Caligari (Werner Krauss) instrumentalizava Cesare (Conrad Veidt) para que cometesse uma série de assassinatos nos locais por onde passava. 
A história acompanha o percurso de um jovem para provar às autoridades que o artista de feira era um criminoso. Cronologicamente apresentam-se ao público duas ações vis de Cesare: o assassinato do amigo deste rapaz e o sequestro da moça que ambos amavam. As investigações culminam na fuga de Caligari e na descoberta, pelo jovem, de que o homem usava o sonâmbulo para repetir os experimentos de um certo Caligari que vivera no século XVIII. As buscas levam o jovem ao hospital psiquiátrico do qual ele julgava que o criminoso era interno, ali descobrindo que Caligari se tratava, na verdade, de um médico. 
Ao fim e ao cabo, o homem desprovido de razão não era Caligari, mas sim o jovem que o investiga – o que o público descobre quando a câmera passa a assumir o ponto de vista do médico, que surge em cena sem os traços lúgubres com que fora pintado ao longo de todo o filme, traços que o jovem lhe atribuía. Assim, a cenografia do filme reproduz o olhar que o rapaz voltava ao mundo. O filme não é apenas ousado no que diz respeito à cenografia. Ele o é porque ludibria o espectador, fazendo-o aderir ao ponto de vista do jovem desprovido de razão, já que praticamente toda a história é contada por ele. 
A ação é acompanhada por uma música de cunho melodramático, que procura ressaltar a dramaticidade encenada e dar voz aos sentimentos das personagens. O som incidental também está presente – a exemplo, o soar da sineta com que Caligari convida o público a assistir ao seu espetáculo –, como acontece nos cânones desta música, que se espraia não só para as obras concertantes, mas também para a ópera e para o cinema, como se vê. A finalidade deste acompanhamento musical é realista, não havendo nele espaço para a ironia ou para uma leitura a contrapelo das imagens, que leve o público a questioná-las. 
De acordo com o release do espetáculo publicado no cultura.sp, o acompanhamento faz uso da música originalmente composta para o filme, de autoria de Giuseppe Becce, a qual soma música original do compositor e temas pré-existentes oriundos de Berlioz, Schumman e Wagner (música romântica, como se observa, grosso modo, no cinema desde meados da primeira década de 1900). 
O maestro Marcelo Falcão foi o responsável pelo arranjo da obra musical para a sua execução pela Orquestra do Theatro São Pedro. O resultado foi tão bem-sucedido quanto os melhores acompanhamentos musicais realizados para o cinema silencioso ao redor do mundo (a exemplo das Giornate del Cinema Muto de Pordenone, Itália). Como pesquisadora do tema que sou, só tenho a comemorar esforços como este realizado no Theatro São Pedro, no intuito de novamente dar voz às sombras silenciosas, levando-as ao encontro do público.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

O Fernando Pessoa roteirista de cinema: “Argumentos para filmes” (2011)

A devassa no baú de escritos de Fernando Pessoa está trazendo à luz coisas do arco da velha. Quem poderia imaginar que aquele que reverberava contra o cinema nas páginas do “Livro do Desassossego” era também escritor de scripts cinematográficos?
Aliás, porque não? Durante sua vida relativamente curta, Pessoa desdobrou-se num sem número de outros. Foi campônio sem cultura letrada e metafísica, engenheiro cantor das benesses da tecnologia; poetou sobre a devastação da guerra, os heróis pátrios, transformou o Deus em homem para senti-lo inteiro. Empunhou uma pena sofredora, otimista, ferina, amorosa, idealista, angustiada. Colocou em primeiro plano sua fragmentação e incompletude, criando eus diferentes – muitas vezes contraditórios – entre si: figuras que juntas completam esse álbum ainda longe de ser desvendado por completo que é Fernando Pessoa.
Passa também por aí a leitura que o escritor faz do cinematógrafo. Ao longo de sua obra – quase toda ela publicada postumamente – alinham-se verrinas e elogios sobre o assunto. O crítico das figuras bidimensionais e ocas do cinema silencioso (das “Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias”, publicadas 1967) é também aquele que percebe as convenções do cinema como uma extensão das convenções do mundo. Essas e outras contradições são trazidas à baila por Patricio Ferrari e Claudia Fischer na “Introdução” à obra "Fernando Pessoa: Argumentos para filmes", impressa há pouco pela editora portuguesa Ática:
Convidado por José Régio a responder a uma enquete da revista "Presença" referente ao cinema, Fernando Pessoa primeiro convida o heterônimo Álvaro de Campos para ajudá-lo na empreitada (“podem sempre contar comigo, ou dizendo melhor e com fabrico de termo plural, comigos?”) para, dias depois, escrever ao amigo: “Ao inquérito sobre o cinema não responderei. Não sei o que penso do cinema.” Inútil perguntarmos quem é esse “eu” que nada sabe do assunto. Mais divertido, penso eu, é mergulharmos nas ambivalências do complexo e genial escritor – ainda mais agora, que mais do que nunca chafurdamos na banalidade.

Datiloscrito de um dos roteiro de Fernando Pessoa: "Note for a silly thriller or for a film"
Para isso, o livro em questão é um belo passaporte. Além de dois ensaios densos (o segundo é escrito por Fernando Guerreiro) que discutem a relação de Fernando Pessoa – e dos escritores portugueses seus pares – com o assunto em pauta, apresenta uma listagem dos recortes referentes ao tema que foram guardados pelo escritor e uma relação exaustiva de todos os filmes citados nos tais recortes. Traz também fac-símiles de algumas obras sobre o cinema pertencentes à biblioteca pessoana, o conjunto de fragmentos com pensamentos do escritor sobre o assunto e os manuscritos/datiloscritos de seus roteiros. Cerne da obra, os scripts são apresentados no original (em inglês, francês ou português) e, quando necessário, em traduções dos editores para o português.
O conjunto é de tirar o fôlego. É certo que esta que vos fala, além de estudar o tema, já esteve doente atrás das reflexões de Fernando Pessoa sobre ele – adorou saber, por exemplo, que o escritor guardou quatro cartazes do musical hollywoodiano A Viúva Alegre (The Merry Widow, 1934), protagonizado por Jeanette MacDonald e Maurice Chevalier, publicados em três jornais diferentes. Porém, é bem possível que o leitor comum com algum interesse por Fernando Pessoa também se divirta ao saber que os roteiros do escritor flertavam muito mais com o cinema comercial do que com o cinema de vanguarda - ao contrário do que se poderia imaginar.
Os “Film Arguments” – título atribuído pelo próprio Pessoa para uma de suas produções, o que aponta talvez um intuito de o escritor investir seriamente no medium – constroem seu objeto sempre com graça e senso crítico.
O primeiro é denominado “Note for a silly thriller or a film”. A tolice é patente no enredo, um desses rocamboles a la Sherlock Homes protagonizados por um milionário que contrata um detetive para proteger a coleção de pedras preciosas que ele precisa deslocar de um continente para outro. Durante a viagem, não poderiam faltar os bandidos, os quiproquós, as trocas de identidade, as reviravoltas supreendentes que deixam o leitor sem fôlego... O escritor parece conhecer bem onde pisa, tanto que deixa rubricas do tipo “This can be made interesting by a series of liveliness which, if this be a film, can be easily visualized.”.
Fernando Guerreiro aponta com argúcia a filiação que esses roteiros têm com o “cinema de atrações” dos anos de 1900-1910, que teve em Max Linder uma de suas figuras principais – cinema mais preocupado com a agilidade da ação que com o literário. Eu o filiaria igualmente ao vaudeville teatral de fins do século XIX e começo do XX, que conserva a mesma raiz popular do cinema e também se constrói em cima de quiproquós. Ou então, à literatura policial de Arthur Conan Doyle, Gilbert Keith Chesterton e companhia. Doyle e Chesterton eram leituras diletas de Fernando Pessoa. Guerreiro refere-se aos textos críticos de Chesterton presentes na biblioteca pessoana que poderiam ter servido de influência ao pensamento do escritor português sobre o cinema. Deixa de lado, no entanto, o Chesterton autor de thrillers: no conto “A cruz azul” este escritor utiliza o mesmo expediente de que depois Fernando Pessoa se utilizaria em outro de seus roteiros: sabendo que será vítima de perseguição, o personagem principal envia o objeto precioso pelo correio, mantendo consigo apenas uma duplicata sem valor dele.

"O inesquecível" Max Linder
Mas tem mais: a troca de identidade nem sempre se dissolve no suspense. Ela igualmente desliza para a comédia sexual, e aqui eu me refiro ao terceiro roteiro presente no livro: “Half plan of play or film”. Segundo ele, certo “Marquês A.”, na impossibilidade de comparecer a um evento social, pede que o criado vá em seu lugar e se passe por ele. “D.”, que fica sabendo da ausência de “A.” (mas não do plano bolado por ele), e não recebe convite para o evento, resolve comparecer disfarçando-se de “A.”. Porém, “A.” decide ir à festa tão logo descobre que sua namorada também vai. Resolve, no entanto, fingir-se de “D.”, uma vez que o criado já se passaria por “A.”. A ação é cortada para o interior da festa, quando descobrimos que o criado é, na verdade, um bandido. Assim termina abruptamente o roteiro que, todavia, parece se desenrolar em outros dois documentos do baú pessoano: ambos escritos em português – por oposição ao inglês da primeira parte – e com propostas de desenvolvimentos mais, digamos assim, literárias, para o tema: o dinamismo da ação dá lugar a uma série de diálogos estapafúrdios que só fazem complicar a trama.
A língua inglesa para a construção de um enredo que pende para a cinematografia norte-americana; a portuguesa para os diálogos mais tributários do teatro. Fernando Pessoa parece a todo tempo querer encontrar o idioma que com maior justeza exprima o gênero com o qual se propõe a trabalhar. Tal identidade é ainda uma vez percebida nos dois últimos roteiros presentes no livro, escritos em francês, roteiros que, pela sua temática e cuidadosa decupagem, aproximam-se de obras da vanguarda cinematográfica francesa: ambos rompem com a narrativa convencional, transformando-se em herméticos poemas visuais à maneira do “L’étoile de mer” (de Man Ray, 1928), por exemplo.
Nenhuma semelhança há entre este Fernando Pessoa e aquele que investia em roteiros comerciais. Assim como não as há entre aquele das "Ficções do Interlúdio" e o da Ode Marítima.
Manuscrito de um dos roteiros em francês
Se a morte não tivesse colhido o escritor tão cedo, é bem provável que esses poucos escritos cinematográficos se multiplicassem e comportassem o nascimento de outros heterônimos – afinal, boa parte do recortes sobre o assunto presentes na biblioteca pessoana comporta filmes rodados em 1934, um ano antes da morte do escritor. Mais uns anos e talvez o escritor se inclinasse mais seriamente à sétima arte, podendo, quem sabe, fruir ainda em vida o reconhecimento de sua genialidade.

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Versão adensada da resenha saiu publicada na "Todas as Musas" ano 4, n. 1 (jul./dez. 2012)