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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

"The Nun's Story" (1959) e outros tesouros de Audrey Hepburn

Um achado desta semana me fez retornar ao extraordinário The Audrey Hepburn tresures: pictures and mementos from a life of style and purposes, uma das maiores preciosidades de minha biblioteca. Trata-se de "The Nun's Story" ("Uma cruz à beira do abismo"), filme que eu considerava esgotado desde muito tempo, até encontrá-lo por acaso, por um preço ridículo, na prateleira das biografias cinematográficas de santos das Lojas Americanas. Um verdadeiro milagre...
O filme é tão impressionante quanto o livro que me deu uma primeira notícia dele. Para os fãs da atriz ele é obra fundamental, pois além de oferecer o melhor da atriz enquanto profissional, define sua persona pública mais cabalmente do que "Breakfast at Tiffany's" (1961), película que a tornou mundialmente conhecida como o epítome da beleza e da elegância. Aqueles que conhecem o papel relevante que Miss Hepburn exerceu como embaixadora da UNICEF certamente a reconhecerão na determinada Gabrielle Van der Mal, jovem que decide alistar-se nas hostes da igreja para que possa realizar-se como enfermeira no Congo.
Essa minha leitura biográfica pode parecer forçada - e talvez seja um pouco, mesmo - mas não pude deixá-la de lado depois de ler a correspondência de seis páginas que Audrey envia a Mel Ferrer enquanto estava na Europa, na qual detalha ao esposo a gênese de sua personagem. É, The Audrey Hepburn Treasures traz tesouros como esse em meio a páginas de uma leveza que, numa primeira olhada, nos faz imaginá-las superficiais.

Fac-símile da primeira página da correspondência enviada por Audrey a Mel Ferrer em 20 jan. 1958. The audrey Hepburn treasures.

Essa densa correspondência, na qual Audrey descreve cuidadosamente os conventos pelos quais passou enquanto compunha a personagem, mostra-nos quão profundamente ela sentiu o choque entre seu modo de vida e aquele que ela passava a vivenciar - choque muito semelhante ao enfrentado pela jovem Gabriele durante o período em que abraçou a vida religiosa.

I was interested to find that this Order allows the nuns to retain an individuality of their own, even after they have managed to efface their personality.

constata Audrey a respeito do convento que a hospedou por um dia, visivelmente comparando-o com a restritivista ordem religiosa à qual pertencia a freira que ela levaria para diante das câmeras - freira que precisava se soltar de todos os laços que a atavam à vida secular e obedecer única e exclusivamente aqueles que lhe eram superiores na vida religiosa.
A crítica ao cerceamento da individualidade, característica determinante no desligamento de irmã Luke do convento, soma-se à consideração que Audrey tece sobre a madre assistente do convento que a recebeu:

Mother Marie-Elise, [...] was [to me] on one hand the personification of a true nun; on the other hand I couldn't help feeling that this was a woman who would have been just the same whatever life she had chosen: plain good.

Audrey enxerga a madre com os mesmos olhos cheios de admiração com que verá a verdadeira irmã Luke e a símile desta que criará para as telas. The Nun's Story é a adaptação cinematográfica da autobiografia da freira Marie-Louise Habets, que desligara-se da vida religiosa por incompatibilidade de gênios. A mulher inspirava um respeito intenso na atriz, como essa sua correspondência nos dá a ver. Audrey relembra a Mel seu empenho junto à Ordem religiosa à qual a freira pertencia para que o roteiro fosse por ela aprovado sem modificações:

I have never talked so much in all my life [...]. I feel strongly that the script is now back where it was and all the things you and I ever discussed are right there. [...] I explained to him how I understood the point of view of the Order and how their purpose was a good one but that neverthleless their purpose limited and checked Sister Luke in her wish to give and serve lovingly and without limits.

O excerto é pródigo por deixar visível tanto a personalidade artística de Audrey Hepburn quanto sua preocupação enquanto membro da sociedade. Aqueles que conhecem sua biografia perceberão como o fato de ela desvincular inclinação religiosa e realização do bem ecoa fortemente em seu papel social, pois a atriz, como sabemos, fez muito mais pelas crianças do mundo do que muitos membros da igreja. E a percepção fina da personalidade que ia transpor para a tela demonstra quão dedicada Audrey era ao seu métier. Na carta, a atriz constata que qualquer história digna de interesse sobre a freira deveria dar a ver o conflito que ela vivenciava por amar sinceramente a Deus e desejar servi-lo, porém, enfrentar as limitações impostas por sua Ordem religiosa.

Cada metro da película patenteia que a atriz foi bem sucedida na empreitada. É tocante o desespero que imprime em seu rosto sempre que a mão de ferro da Igreja, no intuito de eliminar a individualidade da jovem freira, obriga-a a cumprir preceitos muitas vezes vãos: quando, por exemplo, a obriga a reprovar no exame que lhe garantiria a viagem ao Congo para que, com isso, demonstrasse a humildade que lhe pede a Igreja; ou quando ela precisa retornar de seu amado Congo para novamente exercer uma vida de reclusão na Europa. O sofrimento atinge o ápice quando, durante a guerra, a freira não consegue perdoar o nazista que matara seu pai - impossibilitada de seguir a doutrina cristã do perdão sob quaisquer circunstâncias. Esse fato é, aliás, determinante para que aquela marvelous and determined woman, sobre a qual Audrey fala com tanta intimidade e afeto, não mais consiga conciliar os papéis de religiosa e de mulher. Entre a etérea religião, que pairava sobre tudo, e aquela guerra horrivelmente palpável que se desenrolava do lado de fora dos muros do convento, a irmã Luke acabará optando pelo segundo caminho.


O mote por si só já é digno de interesse - como nos comprova o fato de Marie-Louise já ter vendido espantosas três milhões de cópias de sua autobiografia quando os direitos dela foram comprados pela Warner.
Porém, o que torna a película absolutamente imperdível é o modo como ela conta a história de modo cinematográfico. Ao resenhá-la, o crítico da Film and Review sublinhou a necessidade de a obra ser revisitada algumas vezes para que se pudesse compreender a profundidade e complexidade dos sentimentos que a atriz principal projeta. Com efeito, The Nun's Story é de uma beleza tão envolvente que dificulta o distanciamento crítico.
No espaço de duas horas e meia de película, o diretor Fred Zinnemann opta pelo afastamento proporcionado pela objetiva indireta para retratar uma história clássica de aprendizado, que toma a protagonista como personagem privilegiada da observação mas procura não penetrar em seus pensamentos. Faz a opção por um enredo circular, nos moldes do romance de aprendizado, tomando Gabriele desde seu ingresso na Ordem religiosa até seu abandono do local, tão determinada quanto entrou mas muito mais madura. A escolha é precisa porque transforma a película numa melodia suave, tão suave quando as ordens religiosas aparentam ser, e um parêntese nesse sentido é a descrição cinematográfica que Audrey faz ao esposo do ofício religioso que presenciara quando se internara no convento:

they [as freiras] looked alike and became beautiful; partly because their faces all expressed the same inner thinking - [...] - but their habits and the lighting also contributed to this lovely effect. The diversity of faces around the reading table now seemed all as one.

A despeito do que pensavam as freiras, seus vestuários e a iluminação do ambiente tornava-as todas iguais. Nas cenas passadas no convento que antecedem a partida da freira ao Congo, a direção de Zinnemann busca a todo tempo captar a identidade na aparência, identidade que depois será desconstruída quando irmã Luke chega à África e encontrará, na personalidade aguda do Dr. Fortunati (Peter Finch), a força que a levará a repensar o caminho que escolhera.

Daí em diante, a câmera abandonará os interiores para captar planos gerais e panorâmicas da natureza e do povo exuberante pelos quais a jovem quisera ser acolhida desde que resolvera tornar-se freira.
As tomadas não são aleatórias nem tampouco exóticas - servem, sim, para patentear por meio das imagens aquilo que a personagem de Audrey tão lindamente verbaliza ao se referir ao local: "O Congo corre em minhas veias".
E o que dizer do desempenho da atriz, um dos mais extraordinários que já vi no cinema. Aliás, tenho uma dificuldade imensa de falar de Audrey Hepburn, a quem eu amo desde criança por motivos que, portanto, extrapolam sensivelmente o âmbito crítico. Audrey nos deu inúmeras provas de ser a lady por excelência - no modo profissional como encarou algumas injustiças da indústria cinematográfica e na humanidade com que tomou para si os papéis de mãe e de filantropa.
A delicadeza que faz transparecer nos gestos e na voz da personagem que criou é não apenas o resultado do estudo consciencioso do papel mas parece refletir algo que vem de dentro dela.
The Audrey Hepburn treasures nos dá inúmeras pistas para que compreendamos a dedicação da atriz na construção de suas personagens. As duas páginas fac-similares do roteiro de "Breakfast at Tiffany's" trazem palavras e mais palavras grifadas. Lendo-as, lembramo-nos da leitura melodiosa que a atriz faz do papel de Holly. Lembrei-me dessas duas páginas durante todo o tempo em que via The Nun's Story.
Ao ficar sabendo que teria de deixar seu amado Congo, irmã Luke olha para as aves que adornavam o jardim do hospital e afirma: "I'm coming back, you beautiful thing.". Rememorando o contato que tivera com Audrey ao dirigi-la em "Funny Face", Stanley Donen afirma emocionado que nunca se esqueceria do modo como ela cantava. Eu tampouco me esquecerei do modo como ela pronuncia aquela frase ou da musicalidade que ela imprime a todas as falas de Gabrielle - e pensar que Audrey nem era considerada cantora...

*

The Audrey Hepburn treasures, embora esgotado na editora, pode ser lido online no site da Amazon. Os fac-símiles dos "tesouros" da atriz não fazem parte da visualização, mas só o livro já vale a visita.

Audrey, embaixadora da UNICEF, em Bangladesh (fim dos anos 80)