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quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2019: Dia VII

"Joan, the woman"
Fotografia de Valerio Greco

 Dia 7, 11 de outubro, sábado 

O dia – outro dia luminoso de uma semana especialmente clara, ainda que fria – inicia-se com uma sessão dos Weimar shorts, aquelas obras a meio do caminho entre o documentário e o newsreel rodadas pela Alemanha anterior ao terror nazista. “Between Mars and the Earth” (“Entre Marte e a Terra”, 1925), “The Frankfurt kitchen” (A cozinha em Frankfurt” 1927) e “Comical Hygiene” (Higiene cômica”, dois exemplares de uma série rodada entre 1926 e 1930) dão mostras da variedade temática e de gênero dessas obras. 


Uma hora mais tarde – ainda à hora do café, 10h00 da manhã – somos agraciados com um dos grandes filmes da semana, “Joan the woman” (Cecil B. DeMille, 1916), versão de Joana D’Arc rodada em meados da Primeira Guerra, e que procura estabelecer com a conflagração uma relação de paralelismo temático. A célebre mártir francesa, que poucos anos mais tarde ascenderia à posição de santa, é temática cara aos cineastas desde os primórdios. Aqui ela é interpretada por uma divindade operística, Geraldine Farrar, no seu quarto trabalho com Cecil B. De Mille. A trama estabelece um paralelo entre a Guerra dos Cem anos – especificamente, a participação da jovem camponesa no conflito – e a Grande Guerra. Wallace Reid, o galã das matinês cinematográficas daquelas priscas eras, é num só tempo o inglês do século XX a quem se atribui uma missão mortal na Guerra e o inglês do século 15 apaixonado pela plebeia belicosa. 

A crítica, diz o Catálogo do evento, nota a visada simpática à mulher numa trama que desmerece o sexo masculino – fraco e incrédulo das virtudes da jovem. Toma, ademais, o sacrifício do jovem contemporâneo como punição dos machos medievais. O certo é que o encaixe entre o passado e o presente de 1916 não se realiza sem arestas – a Joana de Farrar é menos a campesina viril e mais a mulher amorosa dos estertores da Belle Époque (ou, a coquete com laivos de mulher fatal da sétima arte), a premiar os seus adoradores com o beijo da morte. No intuito de construir a ponte entre o passado e o presente, De Mille pinta-nos um rapaz galante que ama a jovem Joana – tipo menos histórico que cinematográfico. Assim, ele surge em 1916 de baioneta em punho, heroicizado pelo tenebroso conflito. Porém, salta-nos aos olhos, sobretudo, menos a história e mais a colorização deslumbrante do filme, selecionada para momentos simbólicos, como o martírio da jovem na fogueira inquisitorial. 

Fotografia de Valerio Greco

O destaque/ embelezamento do momento horrendo fora realizado dez anos antes, ainda no coração do primeiro cinema, por uma película como “Os martírios da Inquisição” (“Les Martyrs de l’Inquisition, Lucien Nonguet, 1905) – e ali, o nosso Arthur Azevedo constatava o descompasso de se verem brutezas tais num espetáculo cinematográfico exibido no cândido Passeio Público carioca. Aquele público fruía tais cenas bebendo limonada cor de rosa, comenta Arthur, como nós, cento e tantos anos mais tarde, fruímos com deleite o vermelho que tinge as imagens cinzas, tão abismados desses prodígios técnicos quanto o público de outrora. Continuamos não passando de uns meninos... 

Fotografia de Valerio Greco


A tarde se aproxima. Após um almoço rapidamente engolido – o tempo urge em Pordenone –, vemo-nos noutra sessão do programa “Films on films”, composta por obras europeias e estadunidenses, rodadas durante os anos de 1920, as quais dão destaque à máquina inventora de portentos e às estrelas criadas por ela. Entre os filmes do programa, “Meet Jackie Coogan”, rodado na Grã-Bretanha em 1924, cujo protagonista é o maravilhoso “Garoto” que Charlie Chaplin lança ao estrelato no filme homônimo, abertura do Festival de Pordenone de 2019. 

À noite, dois belos programas, entre uma sequência hilária – especialmente quando vista agora, do distanciamento temporal – de propagandas cinematográficas rodadas na Noruega nos anos de 1920. Tratam-se dos longas “Sally, Irene and Mary” (Edmund Goulding, 1925) e “Gardiens de phare” (Jean Grémillon, 1929). 


Apresentado na sessão Redescobertas, “Sally, Irene and Mary”, permite-nos efetivamente descobrir o que fez Joan Crawford cair nas graças de Hollywood. A jovem, recém-vinda dos coros da Broadway, tem a chance de protagonizar pelas mãos do talentoso Goulding, que a lança ao estrelato. Dividem a cena com ela Constance Bennett e Sally O’Neil, e as três trilham, aos olhos do público, um caminho que já fizera sucesso nas revistas teatrais da Broadway: experimentam num só tempo a pompa e o avesso do showbusiness: o brilho, a exploração, o assédio, os sonhos não realizados e as tragédias. Logo descobrirão que The show must go on é uma filosofia difícil de engolir. Valeu-nos o filme sobretudo pela descoberta, não só de uma ainda verde Crawford – ótima dançarina, mas ainda inexperiente atriz – como da jovem percussionista mexicana Lorena Ruiz, aluna do programa musical da Giornate deste ano, que se juntou na última hora ao ensamble responsável pelo acompanhamento musical do filme, e arrasou. 


O dia encerrou-se com “Gardiens de phare”, integrante da sessão O cânone revisitado, obra francesa rodada com impressionante artesania nos estertores do cinema silencioso. Esse belo canto dos cisnes mescla experimentações visuais e enlace melodramático. Narra a história de dois faroleiros, pai e filho. Este, recentemente mordido por um cachorro, será acometido pela raiva enquanto ambos estão isolados no farol, durante uma tempestade. Grémillon burila com invulgar perspicácia o tempo e o espaço da ação, construindo uma narrativa arrastada e de tangível claustrofobia. O pigmento azul que tinge a película, mais que mero adorno, contribui à contação da história, transformando o farol no espaço do mar, o que explicita imageticamente o naufrágio simbólico das personagens. Um grande filme, que merece a revisita de tempos em tempos. 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Da celuloide para a televisão e as ondas do rádio: Hollywood estende os tentáculos



"— Sabe de uma coisa?
— O quê?
Eu te amo.
— Eu sei.
— Beije-me como só você sabe.
Danado."

Planejei um começo todo diferente para esse post, mas, depois de ter acabado de ver "Annie" (1982), uma das coisas mais cativantes e inspiradas que já vi, sinto-me obrigada a mudá-lo. Mas como isso aqui não é uma tese (ainda bem), então não preciso me desculpar e posso logo continuar, por meio dessas linhas, a divertir-me com a carente e exuberante Miss Hanningan enquanto ela abre seu coração desdenhado para o galã de uma rádio-novela, recebendo emocionada as palavras que ele dirige à heroína.
Na verdade, este desvio não me leva para muito longe da estrada principal. Mesmo assim, retomemos o nosso rumo anterior. Mais tarde Miss Hannigan retornará.
...

No feriado carnavalesco, enquanto dava boas risadas vendo o trio Julie Andrews/ Mary Poppins e Eliza Dollittle cantando em uníssono o Supercalifragilisticexpialidocious no "The Julie Andrews Hour" (programa televisivo produzido pela ATV e distribuído pela ITC Entertainment entre 1972 e 1973), dei-me conta de como os domínios de Hollywood iam muito além das salas de projeção de dentro e fora dos Estados Unidos.

The Julie Andrews Hour 1: Julie canta com as personagens que criou

Sabe-se que, a partir dos anos 50, com a rápida penetração do televisor nos lares dos norte-americanos, a indústria do cinema começou a perder terreno. Porém, ela acabou reconquistando o equilíbrio. Para isso, contribuíram os programas televisivas conduzidos por movie stars como a já mencionada Julie, Doris Day (The Doris Day Show, CBS, 1968-1973), Jack Benny (The Jack Benny Program, CBS, 1950-1964), Lucille Ball (I love Lucy, CBS, 1951-1957). Até mesmo o diretor Alfred Hitchcock foi o "anfitrião" dos norte-americanos no Alfred Hitchcock Presents - série de suspense que, a contar pelo episódio a que assisti alguns meses atrás (The Avalon Emeralds, 1959), parece ter sido fascinante. Esses artistas, consumidos com avidez pelo público desde que passaram a ser comercializados em revistas especializadas (o que ocorreu em 1911 com a Motion Picture Story Magazine), tinham suficiente credibilidade para conquistarem os olhares dos adeptos da nova mídia.

Essas pérolas começaram a ser redescobertas com o advento do Digital Video e do DVD - que são, junto com a internet, duas das grandes invenções do século XX. Sem esses aparatos seria praticamente impossível que o público comum tivesse acesso à Julie Andrews dizendo, numa cômica acidez, que Twiggy desempenhou no cinema o papel que ela - Julie - criara no teatro em "The Boy Friend": coisa com a qual "eu logicamente estou acostumada", diz Julie. É no mesmo tom que Julie Andrews "reclama" da bilheteria de "Star!" (1968), um fascinante e desdenhado filme seu: "Se alguns de vocês conhecem esse número de 'A Estrela' - e, a contar pelo retorno de bilheteria, suponho que poucos conheçam...", continua ela. Se as caixinhas desses shows não fossem lançadas às centenas nos Estados Unidos, eu não veria a Ginger Rogers dançando com Jack Benny um pot pourri dos números musicais que dividira com Fred Astaire ao longo de 10 filmes, tampouco teria podido imaginar uma relação entre tal número e o pot pourri das mesmas canções compartilhado por Massina e Mastroianni em "Ginger e Fred" (1986). Tampouco teria visto Gene Kelly e Fred Astaire cantando, num dueto, a história de suas vidas (cinematográficas) noutra relíquia que descobri por acaso numa loja da cidade, "Gene Kelly: an American in Passadena". Aliás, a intertextualidade com o cinema já começa no título do show, alusão a "An American in Paris" (1951) - "Sinfonia de Paris" no Brasil, filme que arrebanhou 6 estatuetas do Oscar em 1952.

Frank Sinatra foge de Betty Garret em "Um dia em Nova Iorque" ("On the town", 1950).

As séries televisivas comandadas por astros e estrelas de Hollywood bastante frequentemente (para não dizer sempre) estendiam às casas das pessoas a persona artística deles. Quase nunca havia questionamento e, se havia, isso invariavelmente era feito por meio de uma piscadela de olhos, à maneira das revistas cinematográficas que reproduziam as fofocas criadas pelos estúdios. Julie Andrews não pôde levar para a frente das câmeras as personagens que tornara célebres no cinema, diziam os estúdios. Então, lá está Miss Andrews dizendo isso para milhões de norte-americanos enquanto os faz conhecer sua versão de Eliza. Do mesmo modo, Frank Sinatra, o rapazote que temia as mocinhas em películas como "Marujos do Amor" ("Anchors Aweigh", 1945), "A Bela Ditadora" ("Take me out to the ball game", 1949) e "Um dia em Nova Iorque" ("On the town", 1949), conta a Gene Kelly (que, nesses filmes era o rapaz que atraía a mulherada) finalmente ter conseguido virar o jogo.

Gene Kelly e Frank Sinatra em Gene Kelly: An American in Passadena (1978),


show em que ambos revisitam musicalmente os musicais em que trabalharam juntos.

E como Frank virara o jogo, afinal, todos sabiam que ele se casara com a belíssima Ava Gardner, a mulher passional e intensa de "Show Boat" (1951) e de "A condessa descalça" ("The barefoot condessa", 1954).

Frank e Ava Gardner

Cinema e televisão, realidade e ficção, verdade e mentira intercambiavam-se facilmente na Hollywood clássica. Como não se podia precisar onde começava uma coisa e terminava a outra, o público tinha acesso a uma extensão do cinema onde quer que estivesse: no dentista, lendo uma revista cinematográfica; em casa, vendo um programa televisivo, ou até mesmo ouvindo um programa de rádio. E é aí que chamamos Miss Hanningan para ocupar novamente o primeiro plano.


Veio a calhar eu ter conhecido "Annie" ontem. O lindo musical dirigido por John Huston (diretor do Falção Maltês, creem?) jogou luzes sobre um assunto que eu não sabia muito bem por onde pegar.
Surpreendi-me ao descobri na internet as gravações de rádiofilmes radializados à população norte-americana dos anos 30 aos 50. No entanto, não tinha ideia do papel que eles desempenhavam na sociedade até que vi a senhora Hanningan de camisola, no conforto de seu quarto, abraçada ao rádio que transmitia um desses shows.


Embora as primeiras transmissões radiofônicas datem do ano de 1906 nos Estados Unidos e de 1922 no Brasil, o rádio verdadeiramente atingiu projeção comercial nos anos de 1930. No final desta década, duas séries faziam sucesso entre os norte-americanos, The Screen Guild Theater e Lux Radio Theater. Ambas apresentavam adaptações radiofônicas de filmes, as quais costumeiramente tinham como protagonistas os mesmos artistas que criaram os personagens nas telas (artistas que chegavam a ganhar $ 5.000 por aparição).
Lux Radio Theater deu início ao negócio em 1934, quando a empresa ainda estava localizada em Nova Iorque. O programa, transmitido até 35 pela NBC e até 54 pela CBS (a NBC reassumiu comando do mesmo de 54 a 55), era apresentado pelo diretor ficcional Douglass Garrick, personagem interpretado por John Anthony, e Peggy Winthrop, a garota Lux, interpretada por Doris Dagmar (descobri tudo isso na entrada da Wikipedia referente ao programa, entrada que me pareceu digna de credibilidade, já que me remeteu aos arquivos sonoros de dos programas da série de 1936 a 1955). O espetáculo era assistido por um público de estúdio. Além disso, havia uma sessão roteirizada em que Garrick conversava com os artistas principais - há uma fascinante charge disso em "Annie", quando Daddy Warbucks tenta desajeitadamente dar conta do script que lhe foi posto nas mãos e acaba, sem querer, endossando uma marca de pasta de dente... Cecil B. DeMille assumiu a apresentação do programa em 1936, pouco depois do show ter se movido para Hollywood, comandando-o até 1945. Nomes como Leslie Howard substituiram-no quando ele viajava.

Público em frente à "Hollywood's Lux Radio Playhouse", situada no n. 1615 da rua North Vine.
Fonte: http://otrarchive.blogspot.com/2009/07/lux-radio-theater.html

A certa altura o show passou a receber um público externo. Como mostra a fotografia, os lugares eram disputados...


The Screen Guild Theater foi ao ar de 1939 a 1952, inicialmente pela CBS, a partir de 1848 pela NBC e de 50 a 51 pela ABC. Na imagem abaixo, vemos Jack Benny, George Murphy, Joan Crawford e Reginald Gardiner apresentando o show de 8 de janeiro de 1939.

Fonte: http://www.joancrawfordbest.com/

Joan Crawford é figura carimbada nesses shows. Apenas para a Lux Radio ela apresentou, ao lado de Spencer Tracy, uma adaptação de "Anna Christie" (Greta Garbo, estrela do filme da MGM, nunca participou de nenhuma dessas adaptações), da "Casa de Boneca" e de "Mary of Scotland" (10/5/37) - apenas para citar algumas.
Cary Grant e Rosalind Russel repetiram sua parceria numa versão adaptada do impagável “His girl Friday” (em 30/9/1940, mesmo ano da película, aliás). Dividiram novamente o microfone em “Take a letter, darling”, adaptado do filme em que Rosalind dividiu a cena com Fred MacMurray (filme datado de 1942 e adaptação de 9/11/42). Também coube à atriz o papel da russa mais do que direta de "Ninotchka" (21/4/1940), eternizada na telona no desempenho magistral de Greta Garbo.
Lillian Gish encarou o microfone no suspense “Marry for Murder” (em 9/09/1943). Em 6/5/1946, Ginger Rogers foi nas rádios a “Bachelor Mother” que fizera nas telas (lindo filme, aliás). David Niven, seu galã no cinema, acompanhou-a na empreitada. Em 1 de outubro de 1939, a atriz juntou-se a Clark Gable em “Imperfect Lady”, além de ter sido protagonista numa história de suspense denominada "Vamp till dead" (11/1/1951), que estou morrendo de curiosidade de conhecer. Carole Lombard, a Miss Clark Gable, juntou-se a James Stewart naquele mesmo ano no romance “Tailored by Toni”, e se juntou a Fred MacMurray em 9/11/1942 para radializarem “True Confession” (14/4/41), adaptação da produção em que ambos dividiram a cena em 1937.

Carole Lombard chiquérrima nos estúdios da CBS. A atriz também tomou parte na radialização de "Mr. e Mrs. Smith", de Hitchcock (veiculado em 1941), "My Man Godfrey" (em 1938); "In name only" (em 1939) e "The moon is our home" (em 1941).
Fonte: http://carolelombard.org/november-contest-carole-lombard-old-time-radio-shows

Orson Wells - que, segundo consta, levou ao desespero os norte-americanos ao anunciar pelo rádio que os extraterrestres atacavam a Terra (na verdade, ele apenas radializava uma versão da “Guerra dos Mundos”) – divide com Lucille Ball e Hedda Hopper as honras da casa em 18/2/1940 quando apresenta “Dinner at eight”, versão do sucesso all star picture dirigido por George Cukor em 1933.

Orson Wells nos estúdios da CBS


James Stewart no estúdio da NBC em "The Six Shooter. The return of Stacy Gault" (1953)
Fonte: http://www.examiner.com/x-27356-OldTime-Radio-Examiner~y2009m11d8-Sometimes-blundering-sometimes-shooting-Oldtime-radio-listening-8-November

Até mesmo as produções eminentemente cinematográficas de Hitchcock foram disseminadas pelas ondas do rádio - foram adaptados “Spellbound” (8/3/1948) e “Notorious” (6/1/1949), por exemplo – neste último, Ingrid Bergman repete o papel que havia desempenhado na película de 1946. Aliás, foi por intermédio de Miss Bergman que descobri toda essa preciosidade na internet, por meio de um usuário do You Tube que anexou entre seus favoritos a versão radiofônica de "Anna Karenina" (4/10/1944), em que Bergman e Gregory Peck atuam em conjunto. Ingrid também levou ao rádio Paula Alquist e Ilsa Lund, em versões radiofônicas de "Gaslight" (1946) e "Casablanca" (26/4/1943). E agora interrompo a lista, que não tem nenhuma intenção de ser exaustiva, considerando-se que The Screen Guild Theater apresentou 527 episódios e o Lux Radio Theater, 926... (os links levarão os interessados para a parte deste material disponível na web).
Que incrível descoberta! Considerando meu entusiasmo ao pôr os ouvidos nesse material, imagino como não seria nos idos de 1930, 40 e 50, quando o público abria as portas de casa para receber seus ídolos da tela e podiam até levá-los para a cama, como fez Miss Hanningan. Se na sala escura do cinema os espectadores se dissolvem na tela de projeção, como não devia ser quando, no aconchego de seu lar, chegava-lhes aos ouvidos as vozes de seus artistas preferidos - vozes que lhes eram tão familiares. Que sensação de intimidade essas vozes não lhes transmitiam? As adaptações radiofônicas das produções cinematográficas eram mais breves que os originais - 10 minutos, 25 minutos, 1 hora. Mas, que efeito não deviam causar quando eram somadas à memória visual que o público tinha das películas! Que empolgante ter o apoio das vozes queridas dos artistas para trazer à tona as imagens dos filmes. E que divertido passatempo não devia ser comparar dois artistas no desempenho de um mesmo papel!

Lurene Tuttle e Rosalind Russell em "The Sisters", radializado noutro programa - Suspense (CBS, 1942-1962) em 1948.
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Suspense_%28radio_program%29

Em 1950, Gloria Swanson e Jose Ferrer radializaram noutro programa de rádio, The Big Show, um tratamento de 10 minutos de uma de minhas screwball comedies favoritas, "Twentieth Century" (1934), em que John Barrymore e Carole Lombard dividem brilhantemente a cena. Gloria está tão deliciosa quando Carole no seu desempenho da atriz teatral Lily Garland, outra pobre Galateia nas mãos de um cruel Pigmalião... A adaptação de "Anna Karenina" estrelada por Bergman e Peck tem pouco mais de 29 minutos. A trama gira em torno da leitura, ao filho de Anna, de uma carta que ela escrevera ao conde Vronsky depois de começar a ser desdenhada por ele. A estratégia é engenhosa, pois os flashbacks da vida amorosa de ambos aproveitam muitas das linhas do roteiro original. Aqui podemos ver as diferenças entre as performances de Ingrid e Greta Garbo, duas grandes atrizes que, apesar de conterrâneas, nunca se bicaram muito. Greta Garbo é eloquente, grave. Ingrid é extremamente simples. Impossível escolher qual a melhor. Logo mais, vou me deleitar com a leitura que Rosalind Russell - outra de minhas atrizes favoritas - faz de "Ninotchka".
Em "Tailored by Toni", James Stewart, com aquela sua delicadeza inigualável, diz palavras doces a Carole Lombard. Quantas mulheres, além de Miss. Hanningan, não abraçaram e beijaram seus aparelhos de rádio ouvindo declarações de amor semelhantes?... Haveria melhor convite para levá-las ao cinema para que continuassem a cena de amor no escurinho da sala de projeção - tendo pertindo de si, não só as vozes, mas também os rostos dos galãs? Para isso, ali estava o apresentador do programa, que, solícito, indicava aos ouvintes quais filmes dos ídolos estavam em cartaz. Impossível o espectador ser mais enredado. Eu que o diga...

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Do "Boulevard du Crime" para o mundo: influências do burlesco francês do século XIX

O título é mais pretensioso do que o tratamento que pretendo dar ao tema... Na verdade, quero lançar aqui apenas alguns apontamentos sobre ele, movida por um questionamento da minha amiga Cristina sobre o estilo de Dita Von Teese, stripper que há pouco causou furor aqui no Brasil. A moça, que inegavelmente é bem bonita, disse ter sido influenciada pelo burlesco norte-americano dos anos 40 e 50. Eu recuaria essa data uns bons 100 anos, e diria que ela descende das dançarinas de cabaré e café-concerto que arrasavam os corações dos homens de todo o mundo.
Algumas delas vieram para o Brasil em meados do século XIX, com a abertura, no Rio de Janeiro, do Teatro Alcazar, como a francesinha Aimée, que, nas palavras de Machado de Assis, era "um demoninho louro - uma figura leve, esbelta, graciosa, uma cabeça meio feminina, meio angélica, uns olhos vivos - um nariz como o de Safo - uma boca amorosamente fresca, que parece ter sido formada por duas canções de Ovídio - enfim a graça parisiense toute pure.". Até o cronista conservador é enredado por aquela mulher que considera tão ambígua: meio anjo, meio mulher, o nariz de Safo... É também no hibridismo que Henrique Fleiuss, caricaturista da Semana Ilustrada, se apoia para narrar a passagem da artista pelo Brasil. Desta vez ela é uma cadela (que apelido irritantemente simbólico...) que sai do Alcazar perseguida por inúmeros cães.

João Roberto Faria - aliás, a imagem saiu de suas Ideias Teatrais - afirma que as mães de família comemoraram o retorno da atriz a Paris... Por quê?
Sabe-se que a carreira teatral só foi reabilitada há muito pouco tempo. Já Dercy Gonçalves disse ter precisado mudar de nome para não envergonhar a família. Em meados de 1800, os palcos eram tomados como vitrines para que as moças se expusessem em busca de amantes ricos. Se era assim quando Sarah Bernhardt ingressou na Comedie Française, imagina-se então no teatro de Boulevard, que tinha uma liberdade muito maior na escolha do repertório. Isso é apanhado com muita perspicácia por Marcel Carné em "Les enfants du Paradis", (1945) que toma como cenário o "Boulevard du Crime", área da Paris do começo do XIX onde concentravam-se os teatros especializados nas comédias musicadas e nos melodramas (esses últimos apresentavam invariavelmente espetáculos sangrentos, que puniam os vícios e premiavam a virtude apenas no último ato, daí o nome atribuído ao local). Naquelas ruas espaçosas, comprimidas por curiosos, vendedores, artistas de variedades e circundadas por grandes teatros, podia-se ver um pouco do que se espalharia pelo mundo nos anos subsequentes. Quando chegaram ao Brasil, os malabaristas, os treinadores de animais, os palhaços, e as dançarinas de can-can concentraram-se nos teatros alegres das cidades mais importantes. Apresentavam pequenos números cômicos ou musicais e trajavam e dançavam com uma liberalidade desusada para a época - na época em que era escândalo uma moça mostrar o tornozelo. Esses números breves podiam ser frouxamente costurados compondo uma peça maior, e daí nasceram os vaudevilles, operetas, burletas, peças que tinham como objetivos alegrar e seduzir as plateias. Muitas atrizes faziam juz ao rótulo que lhes era imputado - a exemplo de Aimée, cujo nome já diz tudo - outras não, mas todas sofriam tremendo preconceito por parte da sociedade conservadora - e boa parte dela ia aplaudir as moças no teatro - daí a não conseguirem se casar com alguém que não fosse do teatro.
Na entrada do século XX, os costumes se modificaram drasticamente, em especial no que se refere ao espaço ocupado pela mulher na sociedade. Elas penetraram o mercado de trabalho, passando a exercer funções antes exclusivamente masculinas, e, com isso, puderam circular as ruas livremente. Com isso, também o rótulo de "sexy" começou a anunciar produtos mais ousados. Isso fica claro com um passeio pelo fascinante Fora do Sério: um panorama do Teatro de Revista no Brasil, de Delson Antunes. Conforme foram passando as décadas, as vedetes foram ficando mais esbeltas e mostrando mais o corpo. Um contraponto cinematográfico do fato é a cena de "Amor de dançarina" ("Dancing lady", 1933), na qual a jovem atriz burlesca interpretada por Joan Crawford é presa pela polícia no meio de um striptease. Outro é o conhecidíssimo Gilda (1946), em que a personagem de Rita Rayworth é arrastada do palco por Glenn Ford enquanto apresenta um número semelhante.

Joan Crawford - "Dancing lady"


Rita Hayworth - "Gilda"

Aliás, fica claro aí que o cinema foi influenciado pelo teatro desde o princípio. As atrizes que pululam nos filmes usando nada além de meias calças, collants (ou as 2 peças separadas), muitas plumas e paetês (por exemplo, a aspirante a atriz burlesca de "Ardida como pimenta", 1953) tiveram vida ativa nos palcos de todo o mundo naquela mesma época. Um exemplo é a vedete brasileira Berta Loran.
Berta Loran, 1948 (Cedoc-Funarte)

O tipo da mulher sedutora era tão recorrente que Oscarito chega a parodiá-lo em 1942 (a foto anterior e as duas próximas estão no livro de Delson Antunes).

Na mesma década de 40, Dora Vivacqua, a "Luz del Fuego" (outro nome sugestivo...) dedicava-se a números exóticos com serpentes.

Dita Von Teese bebeu nessa fonte popular velha e barbada. Percebeu que a beleza e o sexo sempre deram dinheiro - e ouso pensar que sempre darão - e construiu uma personagem que representa cabalmente esses atributos. É exuberante como a Marilyn Monroe, mas não tem sua sexualidade explícita - aquela mesma que afastou Hitchcock da loira, já que em sua testa a palavra "Sexo" estava escrita em neon e com letras garrafais... Ao contrário, a embalagem em que ela se deixou fotografar no Brasil - o vestido preto discreto e sóbrio - que tão visivelmente contrasta com suas apresentações, denota a esperteza da moça em construir em torno de si uma aura de mistério. A stripper marca uma nova época do teatro de variedades: é o retrato bem acabado da sociedade de consumo do século XXI, que ama a imagem acima de tudo e toma a beleza como uma poderosa moeda de troca. Como membro da geração Doutor Hollywood que é, moldou seu corpo de cima a baixo, a silicone e bisturi, para construir uma personagem desejável. Ela não representa uma mulher fatal, é a própria - no jeito de andar, vestir, falar e manter os olhos entreabertos enquanto fala, (sua entrevista ao Jô Soares diz tudo). A repercussão da visita da artista no Brasil é prova do poder que a imagem exerce: ela fez um show de 7 minutos (pelo qual cobrou um valor superior a $100.000,00) e apareceu 50 vezes esse espaço de tempo em diversos órgãos da imprensa nacional. A bolada é paga pelo conjunto, o striptease é, digamos, o seu climax. Dita merece o que ganha pela percepção que teve sobre o valor que têm as coisas na sociedade. Assim como mereceram tantas outras vedetes que povoaram o imaginário das pessoas nos séculos XIX e XX. Um brinde a ela, e um bem grande... naquela enorme taça dentro da qual ela dança...