terça-feira, 28 de novembro de 2017

Maria Callas na francesa “La Seine Musicale”: “Maria by Callas: la exposition”

Maria Callas (1923-1977) revive em “Maria by Callas: la exposition” (organizada por Tom Volf), apresentada no Grand Salon da jovem La Seine Musicale – belo conjunto de edifícios voltados à música popular e erudita, inaugurado em abril deste ano. Situada em Boulogne-Billancourt, às portas da cidade e às margens do Senna (metrô Porte des Sèvres), a portentosa construção em formato de navio parece prestes a despregar-se da terra e sair em passeio pelo rio, como um dos Bateaux Mouches tão populares na cidade. Inserida nesses domínios, a “Maria” de Callas – a persona privada em detrimento da pública – convida-nos a uma viagem afetiva. 
Partituras, fotografias e autógrafo de Callas
Os 800 m2 do Grand Salon estão repletos de suas fotos, de suas entrevistas e performances gravadas em áudio e vídeo, de seus vestidos, sapatos, óculos, cartas, amuletos; memorabília que galvaniza o público fetichista o qual lota o salão como se pudesse depreender desses pedaços de recordações uma porção da diva, como se ela estivesse impregnada nos objetos que a tocaram ou que ela tocou. 
Quem foi Maria Callas? A exposição é capciosa desde o título, deixando claro que, ali, a pessoa privada passará pelo crivo da pública: quem coloca Maria diante do público é Callas, tornada mítica ainda em vida – mitologia perpetuada graças à morte prematura, que a embalsamou jovem e linda, infensa ao esmaecimento do talento e da beleza física. Desaparecido o corpo, restam as imagens, as lembranças e a voz que dão à mulher a perenidade da estatuária grega. 
Maria Callas cantou desde criança – é o que, por meio da artista, a expo nos conta –, trocando a infância pelos concursos de talentos infantis nos quais a matriculara a mãe, com a quem ela teve desde logo uma relação de amor e ódio. A jovem tocada pelo gênio parece ter se tornado a tábua de salvação da família empobrecida. Chegou à adolescência com poucos amigos e sólida formação no canto lírico, conquistada em parte considerável na Grécia de seus ascendentes (nasceu María Kekilía Sofía Kalogerópulu, em New York, retornando com os pais à Grécia dez anos mais tarde). 
A Madonna presente do marido e os grossos
óculos de acetato para correção da alta miopia
(com os quais tanto se identificou a blogueira...)
Malgrado os inícios precoces, a carreira demora a decolar. Uma Callas ponderada – e poliglota – explica em francês a necessidade de se escolher bem os papéis a representar, de se saber preparada antes de se aventurar num projeto, sob o risco de perder os favores da crítica. O sangue frio, curioso em alguém com tanta intensidade dramática, parece justificado: Callas narra o repúdio sofrido depois que fora reprovada num teste no Scala de Milão – o Coliseu dos teatros de ópera da Itália. 
A artista deixava para derramar em cena a sua personalidade reputadamente inflamada, fazendo o pragmatismo reger os contratos que firmava. A carreira italiana começa aos 24 anos, em 1947, na Arena de Verona. Uma obra do bel canto, “La Gioconda”, de Ponchielli. Outra viria um ano mais tarde, em Florença: “Norma”, de Bellini. E em 1949, um tour de force, a alternância das “Valquírias”, de Wagner, e de “I Puritani”, de Bellini, que ela aprendera num par de dias para substituir a cantora originalmente contratada para o papel. Das mais inefáveis frases musicais feitas para coloratura à potência vocal e dramática requerida ao drama wagneriano; a dois anos da estreia, Maria Callas comprovava ter a rara extensão vocal da soprano absoluta. 
Cena e figurino de "Medeia", de Pasolini
Ao dom natural se somava a inteligência cênica. “Maria by Callas: la exposition” desfralda ao público um conjunto de registros preciosos das performances de Callas na “Tosca”, na “Medeia”, na “Madame Butterfly”. A cegadora paixão da musa que está prestes a perder o homem que ama; a heráldica da rainha que se vê abandonada, apartada de seus filhos, desterrada; a submissão da gueixa frente ao dominador de seu país e de seu coração: todas desvairadas histórias passionais de desfechos lúgubres oriundas do mais delinquescente dramalhão, e Callas as lê com uma estonteante economia de gestos, com uma justeza de atriz dramática. 
É notório o esforço da artista de se assemelhar à Audrey Hepburn da “Bonequinha de Luxo” (1961), que a levou a desaparecer das vistas do público, para o qual retornaria pouco tempo – e trinta quilos mais magra – depois. No entanto, a sua personalidade dramática aproxima-a menos da radiância de Audrey e mais da densidade de uma Anna Magnani, atriz cujo corpo, solidamente pregado à terra, dava forma a todas as dores do mundo. A “Medeia” de Pasolini (de 1969) é uma boa prova disso. Callas é ali a antidiva lírica. Praticamente muda, transmite pelos olhos todo o torvelinho da rainha preterida, todo o horror trágico da mãe que se vê obrigada a sacrificar a prole – esforço notável, já que a magnificente “Medeia” de Cherubini era um de seus cavalos de batalha. 
Callas era antes atriz que cantora. Uma vez tendo rareado a sua voz (o que se deu em fins dos anos 60), trocou as óperas pela docência. Suas reflexões sobre as gêneses de suas personagens formuladas nesse contexto são atravessadas pelos postulados de Stanislavski, modernos então mesmo no campo do teatro: 
O mundo da personagem é um mundo que está em nossa alma, que nós devemos criar com a ajuda da música. (...) Sobre isso se trabalham os detalhes, os traços. Enfim, pergunto: se eu fosse esta mulher, como eu reagiria, que atitudes tomaria? Quem é ela? Uma rainha, uma mulher da alta-sociedade, uma mulher comum? Como ela se comporta, como se move, como enverga as roupas? E então, pouco a pouco a sua silhueta toma forma. 
Maria Callas estendeu o star system cinematográfico para o campo operístico: desfraldando ao público, junto com seu talento, a sua vida pessoal conturbada, os amores malogrados, as traições, as perdas de várias ordens. Sua relevância, todavia, caminha para além do âmbito capitalista do estrelismo, da comercialização ad nauseam da imagem da celebridade enquanto objeto simbólico. Coube-lhe o papel enorme de injetar densidade psicológica nas personagens que representava, atualizando o tradicional gênero operístico, transformando-o numa arte do seu tempo. 
Se a eletricidade que a sua presença fantasmática gera ainda hoje deve-se à eficiência com que ela construiu a sua imagem de estrela num mercado já amoldado ao consumo das celebridades, deve-se tanto mais à comunicação visceral que ela estabelece com o público. Uma só nota de sua Gioconda, renascida em retalho em certo concerto no Japão, nos anos de 1970, demonstra que a personalidade, a emoção e a dimensão pessoal da mulher são tão potentes quanto o aparelho fonador ou a técnica para a tessitura das vozes líricas. Como os travos do destino a haviam macerado, Callas nunca fora mais divina do que ali, quando se mostrava tão humana. 
Ao rememorar a artista desaparecida aos 54 anos, a exposição escolhe o caminho que ela tão bem teceu, o do mito. Nada se diz sobre o ataque cardíaco que a levou, morte demasidamente comezinha para a diva que tantas vezes se aproximou das personagens trágicas que representava. O imenso cortejo que acompanha o féretro, o qual fecha a exposição, retoma a dimensão de performance que ela procurou dar à sua arte e vida. Callas desaparece numa morte operística porque só assim pode, como as suas heroínas, ressurgir para além dos séculos, em jornadas sentimentais como esta organizada pela Seine Musicale.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

O “Don Carlos” de Verdi (1867) na Opéra Bastille: a eternidade num sopro

Antonio Arnoni Prado, professor demasiado importante e querido, dizia-nos que uma obra de arte é estrela numa constelação: ao surgir, rearranja o espaço; passa a refletir na relação com aquelas que estão em derredor, emprestando-lhes seu brilho, tomando o brilho delas. Já nós, céus em miniatura (a analogia, mais picaresca que arrogante, é minha; perdoem-na), não somos menos buleversados e rearranjados quando uma obra de gênio nos atravessa. 
Uma forma de tentar explicar como me atravessou esse “Don Carlos” de Verdi, montado em sua versão original francesa na Ópera Bastilha em outubro deste ano, é através do vasculhamento da minha história (e das ressonâncias que ela estabelece com a história com agá maiúsculo). Da descoberta primeira da ópera enquanto objeto de pesquisa – descoberta séria, cheia de pragmatismo –, ao meu reencontro passional com o gênero operístico, anos depois, resta-me como saldo a constatação do paradoxo inescapável que o funda: a eternidade da música e a vacuidade do grosso das tramas; a sensualidade de vozes rodadas como malabares (sustentadas no ar por que fios invisíveis?) e os arraigados preconceitos que as notas não raro fazem conduzir. No gênero operístico repousam o belo e o horrível da divisa de Victor Hugo, espelho aumentado que ele é da nossa sociedade, presente e pregressa. 
“Don Carlos”, gloriosamente ressurgido na Bastilha, numa montagem controversa do polonês Krzysztof Warlikowski (vaiada por uma metade da sala e aplaudida entusiasticamente por outra, na qual eu – que a vi no dia 13 de outubro – me incluía) vem para corroborar a regra. A encenação traz a trama seiscentista a uma modernidade kubrickiana, delirante. Se abandona o caráter histórico do libreto, tem o mérito de situar a ação num solo poroso que estabelece liames indiscutíveis com a nossa realidade, em âmbito transnacional; daí a emoção que me tomou enquanto eu a via. 
Don Carlos (Jonas Kaufmann) e Rodrigues (Ludovic Tézier)
Transposições e fissuras já marcam o libreto que Joseph Méry e Camille du Locle escreveram em 1867, a partir de um drama de Friedrich Schiller que antecedera em dois anos a Revolução Francesa: “Don Karlos, Infant von Spanien”, de 1787. Schiller mergulha no passado com os olhos daquele presente pré-revolucionário. Os conflitos concernentes à vida de Carlos – príncipe espanhol de meados do XVI que perde a noiva para o pai (a francesa Elisabeth de Valois é dada em consórcio ao rei em troca do fim da Guerra Italiana) transformam-se, na pena do escritor alemão, em mote à verbalização de libelos anti-monárquicos e em favor da liberdade. 
O Don Carlos histórico 
Retrato de Sofonisba Anguissola, 1560
 
Já Verdi nutre o drama Romântico da poética do melodrama. O desvario amoroso de Carlos frente à mulher que lhe fora prometida, e que ele terminantemente perdera, dá lugar a um embate mais premente: a luta pela liberdade da população de Flandres, que o rei tiranizava. Quase no desfecho da trama, Elisabeth e Carlos cantam a sublimação de seu amor na entrega de ambos à luta pela libertação do povo oprimido; a transcendência do amor na morte e na vida eterna – as personagens seiscentistas são regidas pela moral burguesa, à qual o sentimento de honra se sobrepõe à realização carnal. 
O amor é, todavia, o lume que conduz à revolução. Atravessa a trama o tema da liberdade, que os amigos Carlos e Rodrigues primeiro entoam à guisa de oração: 
Dieu, tu semas dans nos âmes/ un rayon des mêmes flammes,/ le même amour exalté,/ l’amour de la liberté! 
Leitmotiv fundamental de “Don Carlos”, o tema acompanha, no plano sonoro, o amadurecimento paulatino do jovem príncipe, em seu percurso de romântico desesperançado a agitador social – transformação operada por obra do amigo que, por sua vez, agita a sua alma, fazendo-lhe enxergar, para além de seu coração despedaçado, a expoliação empírica de todo um povo ao qual ele poderia ser útil. O Don Carlos histórico, príncipe cuja vida fora marcada pela instabilidade mental, era personagem de pouca monta perto do homem valoroso no qual Schiller e Verdi o transformam. 
É tal tema que tecerá a maravilhosa e dilacerante despedida dos amigos, no cárcere onde Don Carlos é cativo, no qual um já moribundo Rodrigues lhe lembrará que está a morrer por si, cobrando do amigo, portanto, que ele não abandone o sonho sonhado em conjunto. E é em busca desse sonho que Carlos se reunirá uma última vez com a sua amada Elisabeth, e malgrado ambos cantem o chaste amour que as amarras sociais os obrigam a manter, serão apanhados e massacrados pelo tirano. 
Não há espaço para otimismo na versão original de “Don Carlos”, tampouco na montagem de Krzysztof Warlikowski, na qual o infante real termina de costas para o público, com uma arma voltada à sua própria cabeça e seu rosto projetado no grand écran que ocupa o vasto palco da Bastilha – alusão aos retratos de presos e desaparecidos políticos com os quais inúmeros regimes de exceção nos fizeram defrontar ao longo do século XX . 
Na montagem de Warlikowski, Philippe II é o Saturno
de Goya, a devorar o próprio filho
A escrita da história comporta traços do momento histórico do escrevente. Krzysztof Warlikowski faz nosso presente lúgubre porejar desse episódio de meio milênio. O despotismo ao qual fora submetido o povo de Flandres durante o governo de Filipe II ecoa, por analogia, num sem-número de conflitos armados protagonizados por regimes totalitários a ocorrerem nos imediatos limites da Europa, bem como nos maciços contingentes oriundos das diásporas, com os quais o continente europeu precisa pragmaticamente lidar. 
A obra já abre numa tonalidade sombria: o coro dos cortadores de lenha, que na versão original clama pelo fim da guerra, se endereça, aqui, não apenas à rainha, mas também ao público. Perde o caráter espetacular da grande ópera para se transformar num coro trágico, que atravessa “Don Carlos” como o decalcamento dos milhões de indivíduos que as guerras deslocam. Don Carlos conhecerá Elisabeth, a noiva prometida, para imediatamente perdê-la. 
Jonas Kaufmann e Sonya Yoncheva, Don Carlos e Elisabeth
O libreto original situa a cena na floresta de Fountainbleau, mas Warlikowski dá-lhe um caráter onírico, que mistura a gélida floresta francesa – momentaneamente aquecida pelo fogo que Don Carlos acende à amada Elisabeth, e que brota de sua alma (e do belo rosto moreno de Jonas Kaufmann) – ao gabinete de trabalho de Carlos, no qual um busto do avô Charles V repousa como lúgubre invocação da permanência da tradição sobre o progresso. Ao fim e ao cabo, a felicidade não fora mais que um sonho que n’a duré qu’un jour, constatação dos amantes malfadados que é leitmotiv da obra. 

Mas nem tudo é iluminação em “Don Carlos”. A tomada de consciência frente aos desvarios do totalitarismo – Rodrigues a dizer ao rei ciumento que vem de agredir a esposa: “Você domina metade do mundo, mas é incapaz de dominar-se a si próprio.” – convive com a reverberação incessante do pecado e da culpa oriundos do cristianismo, mesmo por parte de Elisabeth, que expulsa do reino a princesa Eboli tão logo a descobre amante do marido, dizendo-lhe: “Devolva-me a cruz!”. Todavia, laivos da moral cristã não grassam na sociedade ainda hoje? 
Por outro lado, “O Grande Inquisidor” é tanto ou mais vilão que Phillipe II – é a voz da igreja que pede ao rei a cabeça de Rodrigues e Carlos. Warlikowski, responsável por uma louvável atualização crítica desta ópera, sublinha-o, transformando a personagem num burocrata vestido de negro, ainda mais pernicioso porque usa a religião como moeda no jogo político. 
No entanto, em meio aos paradoxos de uma trama que oscila entre o progresso e o atraso impõe-se a música; a partitura de Verdi carregando-nos em turbilhão. Um espetáculo operístico bem desempenhado é como uma cachaça que nos embriaga, uma febre que nos obnubila. O “Don Carlos” francês, levado a cabo por um elenco dos  deuses e conduzido pelo bravo Phillipe Jourdain, foi uma jornada coalhada de erotismo, romantismo e desvario. 
As vozes carregam o texto para altitudes insuspeitadas. Jonas Kaufmann, tenor a flertar cada vez mais intensamente com os abismos do barítono, constrói, com seu timbre num só tempo melancólico e doce, um príncipe no qual a lugubricidade e a ternura coexistem. Seu physique dialoga tanto quanto a sua voz com o timbre de barítono de Ludovic Tézier (Rodrigues). Os duetos de ambos entram em consonância numa mesma linha melódica que acena para uma identidade entre as personagens que ultrapassa a esfera da amizade. A intensidade do afeto que os une exacerba-se na cena do cárcere – je meurs pour toi, Rodrigues lembra Carlos –, ainda mais pungente nesta encenação já que ambos estão fisicamente separados, a voz sendo tudo o que resta para uni-los. 
De fato, há em “Don Carlos” não um, mas dois amores desventurados: Elisabeth e Rodrigues compartem do amor do jovem príncipe. 
Em estado de graça, no que toca à voz e ao jogo cênico, Ludovic Tézier sublinhou a ambiguidade de seu Rodrigues, cuja ascendência sobre o príncipe alavanca a ação e determina, num só tempo, a tomada de consciência política do amigo (e a intervenção deste no Flandres) e a perdição do trio. O timbre de Sonya Yoncheva construiu uma perfeita terceira ponta deste triângulo amoroso. Sua voz sensual extravasa a armadura puritana com que a sociedade veste a sua personagem: o desejo, força indômita, leva de roldão as barreiras morais e sociais; o casamento real não consegue apagar a mulher apaixonada do seio da rainha. 
Entre o trio estão Ildar Abdrazakov e Elina Garanca; o rei Philippe II e a princesa Eboli: másculo, ele, ambígua, ela (brilhante Garanca, que atravessa com tanta fluidez os limites não só da comédia e do drama, como dos gêneros masculino e do feminino, provando empiricamente que a sexualidade é uma construção social). 
Um lampejo do Olimpo materializado, assim, diante de nossos olhos, leva-nos a pensar na kantiana finalidade sem fim da obra de arte; no poder que a arte tem de nos abalar desde as entranhas, de nos ruir e reedificar. Briguei anos a fio com Verdi, mas a sua intensidade dramática acabou por me render. Se encenada com rigor, a sua obra hoje me parece, pela gama das contradições que encerra, o espaço modelar para operar revoluções.


*
Para os interessados, a íntegra da montagem, exibida pela "Arte", está online.

domingo, 29 de outubro de 2017

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2017 (4/4)

Quarta da série de quatro resenhas a respeito da 36ª Giornate del Cinema Muto de Pordenone, ocorrida entre 30 de setembro e 7 de outubro de 2017. 

Sétimo dia: 6 out. 2017, sexta-feira
Segue a série dos filmes The Effects of War, acerca dos 100 anos da Primeira Grande Guerra. Concerto de soldados feridos, a se reabilitarem – e a provarem ser igualmente úteis às nações sem a(a) perna(s) ou o(s) braço(s) que elas lhes roubaram –; a montarem barracas, a abrirem trincheiras. À altura em que essas notas eram escritas, já as cenas se haviam misturado na cabeça da escrevinhadora. Permaneceu como nota dominante o horror – oh, o horror! – do tempo perdido, das vidas perdidas em tantos conflitos que incitam o patriotismo com o fim de servir à sanha capitalista. 
Foto de Valerio Greco
As obras apresentadas nas sessões noturnas aludem em parte ao colonialismo inglês na África – veja-se In carovana attraverso l’Africa Orientale, ou, By caravan through East Africa, da série Cinema Silencioso na Noruega, visada num só tempo etnográfica e etnocêntrica (trata-se do olhar colonizador a observar o colonizado), com a câmera a tomar africanos ou em plongée, simbolicamente superior a eles, ou a cortar-lhes a cabeça, enquadrando, em detrimento dos indivíduos, o alimento que lhes é oferecido: “De quando em vez oferece-se carne aos negros (to the negroes – referência racista que nega à civilização colonizada qualquer possibilidade de nivelamento). 
A seguir, o já muito conhecido A Fool there Was (Frank Powell, 1915) compôs o programa do Cânone Revisitado, demonstrando efetivamente merecer a revista, seja pela qualidade empírica da cópia, seja pela trilha sonora especialmente composta por Philip Carli. O clássico de Theda Bara ganha muitíssimo quando exibido em tela grande. Retrata uma época em que, como bem percebe Edgar Morin, o cinema ainda reflete arquétipos míticos. 
Já me debrucei algo longamente sobre o filme, aqui no blog e alhures, mas só agora me dei conta de que ele rende mais ao analista se for pego não enquanto retrato social (ou do preconceito contra a mulher na sociedade), mas sim como reprodução de um tropo caro à arte desde milênios. Se a femme fatale reflete o histórico temor do homem frente ao sexo oposto – e, portanto, a “necessidade” de sua subjugação –, ele igualmente representa o lado deleitoso de tal fricção: já o jovem padre de Théophile Gautier, no conto “Morte Amorosa”, chora o desaparecimento de sua bela vampira, demonstrando preferir a vida desvairada de prazeres que ela lhe proporcionava em vigília em detrimento da sisudez de sua vida monacal. A música de Carli leva a sério o filme, imprimindo nele uma sobriedade inglesa a qual o insere no lugar que ele merece na tradição ocidental que trata do tema. 
Em meio às Nasty Women surge a obra-prima She’s a Prince (Marcel Perez, 1926). O travestimento, e o que ele implica de leitura anárquica dos tolhimentos que a sociedade impõe aos sexos (sobretudo ao feminino), é colocada em primeiro plano nesta fábula rodada na era do Jazz Band, a qual desenha os percalços sofridos pela mocinha no intuito de adentrar uma sociedade secreta de melindrosas (!...). O curta-metragem é imperdível pelo modo como ateia fogo à clássica divisão de gêneros sociais – literalmente vestidos, despidos e invertidos ao longo da história. Serve como belo contraponto a um sem-número de filmes moralistas rodados na égide do cinema clássico, uma porção dos quais revisitamos em Pordenone este ano. 
Para fechar a noite, Mania: o calvário de uma alma (de Eugen Illés, 1918), e novamente o sorriso de um milhão de dólares de Pola Negri a demonstrar que a beleza não é um atributo de Deus, mas sim do diabo, fazendo-nos tudo relevar: mesmo a coisificação feminina, mesmo o machismo. 
Sabemos de início que a jovem operária Mania rolará pelo precipício. 
Apaixonando-se reciprocamente por um promissor jovem compositor, vê-se obrigada a ceder ao patrocinador da ópera para vê-lo encenado. Mesmo fazendo-o pelo explícito desejo do namorado, é por ele repudiada e acaba destruindo-se em cena, na estreia do trabalho, sob os olhos do público e dele, que finalmente a perdoa. É doloroso – falo, óbvio, de um ponto de vista feminino – ver reverberada uma história deste tipo. Observada do recuo temporal, no entanto, ela nos sublinha certa dimensão ambígua do cinema clássico, ainda perpetuada: a beleza de Pola Negri é acima de tudo um carma; no entanto, seduz-nos como 90 anos atrás seduziu o dito patrocinador principal responsável pelo seu infortúnio... 

Oitavo (e último) dia: 8 out. 2017, sábado
Dia especial este último, aberto com um documentário heroico russo acerca do salvamento de um navio italiano, no Polo Norte (Feat in the ice, de Anatoly Zhardiniye, 1928) – o qual compôs um programa de Travelogues Russos que figurou nalgumas sessões da Giornate. Frente ao filme, e à música de José María Serralde Ruiz – único (já aqui eu o disse) artista hispano-americano nesta Jornada tão bela, mas tão eurocêntrica... –, uma descoberta: apresentado num horário inglório (9 da manhã, neste caso), este filme representou um dos pontos altos do evento, pelo desapego à narrativa ficcional clássica – estruturada a partir de vínculos causais claros e voltada à moralidade convencional –, e pelo direcionamento do olhar a um outro sítio que não a Europa. 

A seção das Nasty Women apresentou um único, porém ótimo filme, The Deadlier Sex (Robert Thornby, 1920), no qual a loura e virginal Blanche Sweet desempenha o papel da jovem que assume os negócios do pai morto, tornando-se executiva em Wall Street. Buscando fazer jus à tirania do ambiente, a jovem transmuta a “selva de pedras” à selva empírica, sequestrando um rival que queria lhe passar a perna e o enviando à lonjura onde ela costuma passar as férias, local onde ele não poderia usar o dinheiro com o qual achava que poderia comprar tudo. 
Obra-prima de comédia, é, pelo timing cômico, agilidade e olhar desopilado à sociedade, o elo perdido das screwball comedies que vicejaram a partir dos anos de 1930. A natureza do pedido de casamento do rapaz à moça – estamos, claro, ainda dentro das convenções da comédia burguesa – surpreende pelo nivelamento que ele propõe entre os gêneros sociais. 
A musicista Elizabeth-Jane Baldry protagonizou outro grande momento do dia. Acompanhando o sueco The house of shadows (Anders Wilhelm Sandberg, 1924), apenas fez sublinhar uma característica da obra: em meio a tantos filmes (cerca de 100 horas) de qualidades variáveis – uma porção medíocres –, o cinema pode ter transcendência. Sua música, fruto de um estudo cuidadoso da canção folclórica do norte europeu, compôs com suavidade a loucura do filho da jovem que, perseguida pelo marido, suicidara-se: o tema musical apresentado pela harpa na diegese do filme pouco a pouco se desdobra, misturando-se aos acordes do piano e, enfim, compondo o lait motif principal da trama. 
Enfim, o festival fechou-se com The Student Prince in Old Heidelberg, de um Lubitsch em plena maturidade (o filme é de 1927). O assunto é mesquinho, mas o desdobramento, primoroso: o príncipe chega à casa real ainda uma criança tímida, sob os olhares reprovadores do tio – o rei. Preso no palácio, ouve como lait motif da molecada da rua, dos velhos, das moçoilas: “como é bom ser um príncipe”. Conivente consigo, a câmera diz o contrário. 
Lubitsch está todo aí: no olhar triste da criança que subitamente brilha quando chega ao palácio o tutor espevitado que tanto lhe ensinará sobre a vida; na paulatina segurança do príncipe na medida em que cresce; no modo como a moça que o amará (a camareira da hospedaria de Old Heidelberg, onde ele vai cursar a universidade) o esquadrinha, quando ele (já então Ramon Novarro, o ídolo das matinês na época) chega ali – inversão dos ponteiros que atribuem ao homem este papel no jogo social. 
Uma certa cena traz Lubitsch em microcosmo: Norma Shearer cruza lépida a cena, carregando as oito taças de cerveja que servirá aos estudantes, na larga mesa da cantina – a perfeita camareira e a perfeita estrela, demonstrando o quanto o cinema pode ter de ritmo, de encantamento e de visada num só tempo terna e irônica aos doces sonhos da infância que a gente deseja (em vão) ver perpetuados. 
O filme foi acompanhado pela orquestra da cidade e pela trilha que Carl Davis compôs com ternura e bom humor análogos ainda nos anos 80, época em que o cinema silencioso ressurgiu em toda a sua grandiosidade aos olhos não apenas de um punhado de estudiosos que desde sempre conheciam o seu valor, mas ao conjunto do público embasbacado. Viva a redescoberta deste encantamento!
"The Student Prince in Old Heidelberg" em Pordenone
Foto de Valerio Greco

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2017 (3/4)

Terceira da série de quatro resenhas a respeito da 36ª Giornate del Cinema Muto de Pordenone, ocorrida entre 30 de setembro e 7 de outubro de 2017.

Quinto dia: 4 out. 2017, quarta-feira 

Os destaques do dia foram um conjunto de vistas dos Lumière recentemente comprado pelo George Eastman Museum e restaurado por um jovem recém-graduado, bolsista de num projeto fomentado pela Haghefilm Digital: uma sequência de vistas de uma fábrica de papel, de panoramas de sua fachada, tomados desde uma embarcação que cruza o rio que margeia o local (a exemplo do que se vê com essa sequência de imagens e, pouco tempo depois, com as referentes ao affaire Dreyfus, registrados por Méliès, a busca do cinema pelo encadeamento narrativo é contemporânea ao seu nascimento, colhendo influências de artes como a literatura); ou a correria de uma brigada do corpo de bombeiros rumo – presumivelmente, já que a vista não mostra – a um incêndio, com os populares curiosos a acompanharem-nos (e acompanharem, sobretudo, os movimentos da câmera, nunca dantes vistos...). Mesmo um acervo organizado como o dos Lumière revela surpresas. 
À noite, a Carmen de 1918, dirigida por Lubitsch, mostrou um artista em formação – ainda carente da sublime ironia que se tornaria a sua marca registrada. A bela jovem, desempenhada por Pola Negri, revelou-se, por sua fria sordidez, oriunda mais da pena de Mérimée que da ópera de Bizet - frieza resvalada do tema à música. O diretor ainda acertava o seu metrônomo; a falta de ritmo da obra afeta a música que Thibaudault acabou de lhe compor: grave e errática, carente dos sóis da Espanha ou de erotismo. Resta todavia Pola Negri, uma estrela no senso literal da palavra, a brilhar para além do tempo e do espaço, da fragilidade da trama ou da música. Ah, os deuses tão humanos – embora fantasmáticos e intangíveis – do cinema demonstram ainda merecer o seu quinhão de culto. 

Sexto dia: 5 out. 2017, quarta-feira 
As sessões noturnas do dia foram preenchidas pela película francesa La Femme Rêvée (1928), de Jean Durand – diretor da sequência de loucuras de Onésime, nos ano de 1910 – e pela película escandinava Glomdalsbruden (1926), de Carl Dreyer. 
La femme revée ainda na Espanha
O primeiro, de incontornável machismo, como corresponde ao grosso da produção da época. O segundo, embora voltado a uma moralidade atrelada à tradição, surpreendentemente crítico. No filme francês, o tipo macho-alfa é flagrado sendo cortejado por uma fêmea típica da haute gomme francesa, e a rechaçando em prol de sua viagem de trabalho à Espanha. Acidenta-se, todavia, no trajeto, e perde a visão (cegueira sem qualquer transcendência na trama para além do óbvio “Queria tanto poder ver para conhecer os seus traços.”, que o homem diz à mocinha que o salva). Um corte e a ação se concentra na casa da tal mocinha, jovem a qual a tia conservadora deseja ingressar no noviciado. 
Em Paris, la femme revée aprende o charleston
Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36.
A cor local da Espanha profunda surge de modo quase documental, no esquadrinhamento da hacienda espanhola e de uma corrida de bois que ali tem lugar. Esquecemo-nos do casal francês durante parte considerável da trama; falha dramatúrgica. O protagonista tem, graças aos cuidados da mocinha, a sua visão recuperada. Reciprocamente apaixonados, ele a leva dali a Paris. Inicia-se então uma investigação do dia-a-dia da alta goma parisiense. O homem quer transformar a pura – mas sensaborona – espanholinha na “mulher sonhada” à qual alude o título, inserindo-lhe uma dose do savoir faire do qual é dotada a jovem cheia de etiqueta – mas sem coração – com quem ele flerta no início. A leitura machista segue a cartilha dos anos 20, do qual raras produções escapam: o processo de transformação da jovem é narrado sem qualquer senso crítico, e o procedimento crápula do marido perdoado a priori pelo diretor. 
Glomdalsbruden (1926)
Salvou-se no filme a música, que fez algo que este ano como nunca percebi ser fundamental: numa exibição tão recuada de seu contexto histórico original, cabe à trilha sonora desempenhar o papel de análise crítica do que a tela mostra. Maud Nelissen e Frank Bockius fizeram bem isso, integrando à música, com boa dose de ironia, desde um conjunto dos temas populares norte-americanos aos quais a espanhola provinciana é obrigada a aderir, até sons incidentais que recuperam os primeiros usos dos sons no cinema, como o barulho da água a sublinhar os mergulhos piscina do Lido parisiense (espaço surreal enfronhado na Champs Elysées, mistura de café-cantante e clube de campo). 
Já o escandinavo Glomdalsbruden (ou The Bride of Glomdal) participa – sem estar nele integrado – dos eflúvios das seções da Giornate denominadas Nasty Women: logo de saída a jovem diz ao namorado (que o pai a proíbe de ver): “Meu pai está me vendendo como se eu fosse gado”. A resolução do conflito se dará por meio do diálogo – a tradição fala mais alto, obrigando os jovens a convencerem o pai dela ao consentimento para que o casamento se consuma. Ao final, toda a tensão concentrada emerge numa cena explícita de torvelinho: o namorado que caminha para as núpcias precisa vencer uma tormenta para que finalmente possa se unir à mulher que ele ama. O rio que os separa ganha função metafórica: representa quem sabe as águas espessas da tradição, sobre a qual se é preciso lançar com as largas braçadas da perseverança caso se queira conquistar paragens mais amenas.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2017 (2/4)

Segunda da série de quatro resenhas a respeito da 36ª Giornate del Cinema Muto de Pordenone, ocorrida entre 30 de setembro e 7 de outubro de 2017.

Terceiro dia: 2 out. 2017, segunda-feira. 
Léontine noutro filme da série: Les Pétards de Léontine (1910). 
 Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36.
Seguem as Nasty Women. “Léontine”, heroína da Pathé e chefe de uma série cinematográfica oriunda da Desmet Collection, parece ter o dedo podre. Em Le Bateau de Léontine (1911), inunda a casa para criar um espaço navegável ao portentoso barco de brinquedo do pai. Ela encara a câmera ao final, tão perdida quanto divertida – e seca, já que se protegera em cima dos móveis para conduzir a embarcação no rio improvisado. Noutra fita, Léontine en apprentissage (1910), a jovem tenta em vão aprender um ofício, destruindo sucessivamente lojas, cozinhas e restaurantes. 
A seção convive com outras duas seções temáticas essencialmente diferentes, uma voltada à Primeira Grande Guerra, denominada The Effects of War, composta substancialmente por documentários rodados entre 1917 e 1920, portanto, no calor da hora, e um filme de ficção. Há um incontornável contraponto entre os – sobretudo – panoramas dos palcos do conflito, em ruínas (em especial a região do Danúbio e certas regiões francesas então recentemente liberadas) e das casualties dele oriundas (crianças desnutridas, mutilados). Cidadãos habitando restos de residências, presidiários refazendo plantações, soldados reconstruindo estradas destruídas. 
Em primeiro plano, olhando do distanciamento temporal, emerge o absurdo da guerra, sua recorrência com contornos tão semelhantes. Somos, enquanto público, irmãos do Brás Cubas de Machado de Assis, que desde um monte assiste ao infindável cortejo de misérias de todos os tempos, que se desdobra concomitantemente diante de seus olhos. Em meio à realidade fria, tomada in media res, com severidade e um fundo de otimismo, insere-se uma comédia como La paura degli aeromobili nemici (André Deed, 1915). Ao fim e ao cabo, o riso resta como salvação do espírito, frente ao caos incontornável. 
Le Coeur et les yeux (Emile Chautard, 1911), um dos filmes 
da seção For a better vision. 
Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36.
A outra seção, oriunda da Desmet Collection, compila um conjunto de filmes de 1910 a 1915 que giram em torno da cegueira (denomina-se For a better vision). As abordagens são variadas, mas podemos distinguir mais claramente dois contornos, o documental – que se esforça por fazer uma leitura “objetiva” do tema – e o melodrama. Um filme como Istituto per ciecchi a Bandung (1912-13), que aborda o conjunto de atividades ali desenvolvidas visando-se a integrar os deficientes visuais na sociedade (educação em braile, profissionalização, tratamento) – tratando-os, enfim, como sujeitos capazes –, vão ao encontro de um conjunto de filmes em que a perda da visão determina a incapacitação desses indivíduos, o idiotismo (em maior ou menor grau). 
Para além da cegueira trágica de Édipo, o qual fere os olhos na impossibilidade de encarar as suas faltas e o seu destino, esses homens aqui retratados são frutos de penas mais coitadistas. São descendentes da orfãzinha de Decourcelle e de outros tantos melodramaturgos, e fariam brotar, nas décadas seguintes, gente como o protagonista de A luz dos seus olhos, filme protagonizado por Cacilda Becker sobre o qual já tive a possibilidade de discutir neste blog (o link para a resenha encontra-se aqui). 
Trappola (1922)
Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36.
A pérola do dia foi um filme autoreferencial denominado Trappola, uma obra-prima italiana de Eugenio Perego, de 1922, recentemente restaurada pela Immagine Ritrovata, com uma montagem sincopada, que revela a tonalidade cômica (goddardiana no uso recorrente do jump cut, poderíamos dizer, mas qualquer influência – se acaso houver – obviamente que caminha aqui na direção contrária). A obra é protagonizada por uma diva italiana cheia de carisma, Leda Gys (que em cena é Leda Bardi, estabelecendo-se uma crítica bem-humorada à analogia entre pessoa e personagem, em voga no cinema clássico). À certa altura, a mocinha – interna de um colégio de freiras – foge dali para ajudar a amiga a reconquistar o namorado que, apaixonado por uma atriz acrobata, resolveu ser ator de cinema. No set, a jovem zomba dos maneirismos da primadona à medida que encarna figurantes em produções diversas. Pela graça e despretensão – e leitura irônica que faz do métier, ao encetar um passeio pelos seus bastidores com olhos muito mais jocosos que embevecidos – será uma das principais obras da Giornate. O acompanhamento musical ficou a cargo de José Maria Serralde-Ruiz – o único músico hispano-americano do festival encontrou à obra uma tonalidade comicamente passional que passou o dia todo buscando. Sublinhou o humor e a graça daquelas personagens que até outro dia poucos de nós sabíamos que existiam. As revelações do cinema silencioso, (re)descoberto a cada novo esquadrinhar de arquivo. 

Quarto dia: 3 out. 2017, terça-feira.
O quarto dia da Jornada continuou a revelar westerns rodados ao redor do mundo (aka., na Europa e nos Estados Unidos, neste caso, na Itália e França). Entre eles, um protagonizado por Onésime, com o qual me encontrei primeiro ainda no Doutorado, em Onésime Vagabonde, filme-dentro-do-filme que Feuillade transforma, em Erreur Tragique (1913), no catalizador dos ciúmes do esposo pela mulher com quem recentemente se casara. Onésime sur le sentier de la guerre (1913) é a obra. 
Os highlights do dia para mim são, todavia, Die Bergkatze (de 1921, intitulado tolamente em português Beijos que se vendem), do (quase) sempre brilhante Ernst Lubitsch. Apresentado no “Cinemazzero” em sessão especial às escolas, a comédia não provocou muito riso entre as crianças – o humor sofisticado e ferino do diretor alemão não é talhado aos pequenos. Já eu me deliciei. A história é um desvario, que se estende à forma e ao fundo. Pola Negri, com seu sorriso de um milhão de dólares, é a bandoleira-chefe de um grupo que atua nas gélidas montanhas de um país qualquer (os tipos humanos postos em ridículo importam mais que a localização geográfica, porque são universais). 
O “Belo” de Die Bergkatze (1921)
Mulher-macho, Pola descobre-se à certa altura apaixonada pelo “Belo”, assim literalmente denominado pela película que procura mais pô-lo em ridículo que incensá-lo, terror do mulherio das zonas nas quais ele serve (o tipo é um militar). A cena de despedida do belo de seu habitat natural rumo às montanhas onde receberá de um superior um corretivo é impagável – na despedida, milhares de mulheres a chorarem; odes em sua homenagem e vinte crianças a acenarem-lhe lencinhos brancos: “Adeus, papai.” Lubitsch em seu melhor, venenoso e amoral. O rapaz, claro, se encontrará com a bandoleira, que o reduzirá a cinzas. Acaba se apaixonando por ele, e ambos choram e riem sua deleitosa desdita – como tão bem Lubitsch consegue fazer. Risos e lágrimas misturados, como sabe ser o mais encantador (para mim, claro – aqui é a subjetividade falando) cinema narrativo. 
A noite foi composta por duas sessões. A primeira, com uma obra de Victor Sjöström visualmente belíssima e coalhada da moral cristã que comparece em boa medida na cinematografia do autor (A Carruagem Fantasma, obra-prima de 1921, é o mais bem acabado exemplo): Vëm Domer? (1922). O cerne aqui é a culpa cristã, defendida religiosamente pelo artista, que leva a sua protagonista literalmente a um calvário: percebendo que o marido morreu ao tomar conhecimento do desejo homicida da esposa, ela acredita que deverá caminhar sobre o fogo sagrado (castigo típico do período inquisitorial, em que a história se passa) para aferir se Deus a perdoará. A “iluminação” da personagem se dá, no entanto, em prodígios cinematográficos – da paulatina descoberta dela (e de sua paulatina transfiguração, como consequência disto) de que o marido a vira, desde o espelho, preparar a taça fatal que ele nem chega a beber; até a simbólica crucificação dele, na porta banhada de luz. Ele se transforma no Cristo particular da esposa, e é quem ao cabo acaba por perdoá-la. Visada machista, além de tudo. 
A sessão triunfou musicalmente, com a presença de Neil Brand e Frank Bockius, no piano e bateria. Histórias assim derramadas precisam, para serem convincentes, de uma música ou que as mimetize, ou que caminhe a contrapelo, sublinhando pela ironia o absurdo do que é pregado. Os músicos escolheram o primeiro caminho. Trêmulos na bateria nos momentos de maior impacto do drama, e uma música de tonalidade melodramática fizeram-se ouvir. Não tenhamos vergonha do clichê, diria um dia mais tarde outro músico da Giornate, Thibaudeaut. 
Um pouco mais tarde, uma dobradinha de filmes franceses, Ménilmontant (Kirsanoff, 1926) e Fièvre (Delluc, 1921). Obras essencialmente diferentes, avant garde, com movimentos ágeis de câmera, decupagem rápida e avessas, em fundo e forma, à narrativa moralista clássica, representada pelo filme anterior. Mário de Andrade passa em filme em minha cabeça enquanto acompanho a história das jovens irmãs que perderam os pais e, vivendo no bairro popular que dá nome ao filme, amam o mesmo homem e são enredadas por ele. Os contornos melodramáticos terminam ali: a câmera convida os espectadores a perscrutarem, por meio dos rostos das protagonistas pegos em primeiríssimos planos, o torvelinho que lhes vai internamente. Para além de convencionalismos, emerge a busca do amor e do respeito, o desespero do abandono e a fome (a doçura transida do rosto da jovem mãe a tomar, agradecida, o pão que o estranho – tão pobre quanto ela – lhe dá, aponta que certas tramas são tão velhas quanto a esperança nutrida pelos corações humanos, daí a sua eficácia). 
Em seguida, o torvelinho faz-se carne em Fièvre, por meio dos casais que rodopiam no salão de certo bar do bas-fond parisiense. Na apresentação de cada personagem que frequenta o espaço, um misto de simpatia e ironia. E ao final, estamos todos compartilhando de seus desejos e destinos. Que diretor de mão-cheia é Delluc, e como a música é fundamental a essas sombras, oferecendo-lhes a voz de que elas tanto carecem – Stephen Horne e Romano Todesco criaram uma das sonoridades mais eficazes da Giornate, à altura da assertividade (ou comedimento emocional, pode-se dizer) francesa.

domingo, 22 de outubro de 2017

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2017 (1/4)

Pesquisadora de cinema silencioso que sou, raramente abordo-o neste blog. Já diz o ditado: Em casa de ferreiro o espeto é de pau... As notas a seguir, escrivinhadas ao correr da intensa Jornada de Pordenone (que ocorreu entre 30 de setembro e 7 de outubro), cumprem nem que seja de passagem este objetivo. Lamento não ter realizado esforço análogo antes: depois de oito dias intensos de projeções, quinze horas por dia, filmes, atores, diretores, enredos embaralham-se em nossa mente. Uma mostra de cinema é como um porre – aproveita-se tudo intensamente, e dias depois não se tem mais que uma ideia geral do que aconteceu. Ao contrário dos porres, no entanto (sem querer desmerecê-los...), a experiência se instala num canto de nosso inconsciente e emerge, quando menos esperamos. As notas dividem-se em quatro postagens, publicadas ao longo desta semana. O Catálogo do festival pode ser acessado aqui

Primeiro dia: 30 set. 2017, sábado. 
Dia de chegada à cidadezinha que fica a uma hora de Veneza. A instalação na cidade, o reencontro com almas-gêmeas do ofício que a gente só vê uma vez por ano, a inscrição coincidem com o início da programação cinematográfica, que acaba sendo em parte deixada de lado. Consegui assistir à sessão denominada Origini Del Western 3 (que dá continuidade ao programa iniciado no ano passado), conjunto de filmes franceses rodados entre 1911 e 1913, dirigidos em sua grande parte por Jean Durand, que mimetizam o western norte-americano sem intenções jocosas aparentes (ainda que bem-humorados) – antes, desejando abarcar o público ianque, que tanto amava o gênero. 
Le Revolver matrimonial (1912) é um bom exemplo: a atriz costumeira desse conjunto de fitas, Berthe Dagmar, mulher de rosto anguloso e nariz aquilino – distante do padrão clássico de beleza – é transformada na moçoila namoradeira gauche, que todos os empregados do seu tio desejam, mas que se casará com o cowboy norte-americano recém-contratado (casamento apenas formalizado porque o ministro é pego literalmente no laço pelo jovem eufórico). Repleta de carisma, a atriz ao invés de ser posta em ridículo pelo seu rosto pouco convencional (como era costume no grosso da produção cinematográfica de então) acaba por ganhar as graças o público, tornando-o conivente com seus infortúnios de moça apaixonada. 
Esses westerns recém-restaurados (ou recém-vindos a lume) atestam a assertiva de Bazin, de que uma pequeniníssima porção das obras desse gênero basilar da cinematografia norte-americana havia sobrevivido ao tempo. O fato de esses exemplares terem sido rodados na França ajuda a complexificar o quadro, leva-nos a pensar nas trocas mútuas ocorridas entre ambos os países. Ainda a título de comparação, cinematograficamente esses filmes são rodados em planos longos, planos gerais, investindo-se nos gestos largos, características típicas do cinema francês de então. 
Na seção “Riscoperte”, Redescobertas, um conjunto de fitas (várias delas vistas brevíssimas, à maneira daquelas rodadas pelos Lumière) tematizam um assunto sui generis: as mulheres aviadoras. É curioso encontrar, neles, a presença das mulheres tomadas em planos paralelos, ora ao lado das máquinas voadoras que pilotam, ora posando com graciosos bichos de estimação (cachorros – como a Lillian Gish do Nascimento da Nação – ou macaquinhos). Metonimicamente, busca-se reforçar uma feminilidade que caminha a contrapelo dos trajes de aeronauta e do esporte tipicamente masculino. 
O filme que fecha o programa, L’Autre Aile (Henri Andréani, 1924), obra francesa recentemente restaurada, trata de modo primoroso desta ambivalência, sendo ainda um modelar exemplar de cinema a contar cinematograficamente uma história. A mulher (Marthe Ferrare, ótima) perde o homem que ama para a velocidade, essa sanha moderna. O filme trata com ambiguidade a nova mania desportiva dos muito ricos, num só tempo a adulando e censurando. A multidão vê os desportistas se aproximando, mas a jovem apenas faz observar os aviadores transmutados em soldados de César, a marcharem triunfantes para a morte. O namorado perecerá, e ela vai até o corpo como se a movesse uma força invisível, não esboça qualquer reação. É o fogo que o consumiu que ela terá dali por defronte dos olhos – o fogo ou a hélice do avião em ruínas, que rodam num torvelinho diante de si. Procurando vingá-lo da morte e ser mais forte que o ar, ela ato-contínuo ingressará no esporte. 

Segundo dia: 1 out., domingo. 
Mulheres fortes – a Giornate deste ano está repleta delas. Uma seção que atravessa o festival é denominada Nasty Women, mulheres más/ vis/ antipáticas/ desagradáveis/ torpes (mesmo quando o enquadramento histórico do nosso gênero é problematizado, acabamos por ser classificadas segundo estereótipos...). Compostas, sobretudo, por slapstick comedies, as mulheres ali depreendidas vão além dos rótulos mais comezinhos de “ingênua” e de “vampiras” – aliás, como corresponde ao gênero cômico, ironizam-nos. Mulheres que ultrapassam o rótulo de pureza e de candidez que a cinematografia clássica lhes cola (na esteira de outras artes e gêneros, como o teatro e o folhetim). 
Os filmes dessa seção cumprem um recorte temporal de 1898 a 1917. Ironizam o status quo social, ao qual essas mulheres procuram em vão se encaixar: tentam encontrar um emprego honesto ou encontrar brinquedos cabíveis ao “sexo frágil”, mas não conseguem, já que parecem portadoras do infortúnio. Uma das fitas ironiza o desvelo exagerado que certos donos têm por seus animais de estimação: 
The Devil's Pawn (1918)
Depois de tiranizar um cachorro e ser devidamente punida pelo patrão – que o convida à casa e à mesa familiar –, a jovem é tomada de um apaixonamento instantâneo e exagerado pelos bichos, carregando para ali todos aqueles com os quais ela cruza pela rua – gatos, cachorros, patos, um burro... A slapstick é um lugar modelar para a negação disruptiva do status quo. Os degraus da loucura são galgados rumo ao clímax: os patrões chamam a jovem à razão quando a casa está prestes a desabar, desenlace catártico. 
Por trás dessas fêmeas descabeçadas está a indústria cinematográfica de uma sociedade patriarcal, podemos pensar. Viajemos até o grande filme do programa: The Devil’s Pawn (Victor Janson, Eugen Illés, [+ Paul Ludwig Stein?], 1918), protagonizado por uma Pola Negri já tocada pelo gênio, ainda que muito moça, ainda em sua fase europeia. Rodado na Alemanha, o filme é exasperante. Negri é a jovem judia russa que decide, após a morte do pai, partir da cidadezinha natal a S. Petersburgo para frequentar a universidade. 
The Devil's Pawn (1918)
Ali chegando, é proibida de ficar, a menos que adquira the yellow ticket, chancela ambígua: entregue às prostitutas, dava-lhes liberdade de circulação na mesma medida em que fomentava o controle social. Rodado no local onde se situaria o Gueto de Varsóvia, o filme parece visionário, o passe amarelo assemelhando-se à estrela de Davi que marcaria anos depois a comunidade israelita e acabaria por decidir o seu destino. O filme acaba formatado na moldura convencional do melodrama. Um conjunto de coincidências (a chave do “destino” melodramático) levam a moça a se matricular na universidade utilizando o nome da irmã morta do ex-tutor, que descobre a fraude e, ao reencontrar a moça, acaba por lhe revelar um segredo que lhe fora contado pelo pai adotivo dela: ela na verdade era filha do médico do hospital universitário onde era atendida. Detalhe: a jovem tenta se suicidar porque o rapaz de quem ela gosta descobre que ela é portadora do tal yellow ticket. Procura mimetizar a morte da mãe, médica estudiosa que, abandonada pelo namorado (e pai da moça), comete suicídio. O papel assertivo da mulher na sociedade patriarcal é conquistado com sangue, é o que mostram as histórias da mãe e da filha. Negri desempenha ambos os papéis com sutileza, plenamente convincente como as mulheres que se preocupam mais com o intelecto que com os dotes físicos. 
A Norway Lass (1919)
Fonte: Catálogo da Giornate del Cinema Muto 36
Num dia voltado às mulheres, vale a menção um belo filme sueco rodado cinco anos antes do brilhante Gösta Berling’s Saga (Mauritz Stiller, 1924), e da mesma estirpe, A Norway Lass (Synnöve Solbakken, John W. Brunius, 1919), romance de formação em 7 atos (a divisão esboçada acena para a relação que a história estabelece com o teatro), trajetória do jovem Synnöve Solbakken (interpretado por Lars Hanson na idade adulta) da “barbárie” à “civilização”. Filme túrgido e belo como um romance de Balzac.