terça-feira, 18 de janeiro de 2011

The Audrey Hepburn Treasures


Falei brevemente sobre o livro que dá título ao post quando analisava o excelente "Uma cruz à beira do abismo" (1959), filme que, para o deleite dos fãs de Audrey Hepburn, voltou ao mercado no fim do ano passado por um preço bem acessível. Naquela ocasião, tentei estabelecer um diálogo entre a película e uma carta de Audrey ao esposo, na qual ela discorre sobre detalhes da construção da personagem da irmã Luke. A carta deixou Lorena curiosa sobre o conteúdo do livro, especialmente dos fac-símiles dos documentos da atriz, que não aparecem a versão digitalizada do volume apresentada para visualização no site da Amazon. Hoje cumpro a promessa que fiz à minha amiga de trazer algumas dessas preciosidades para cá.

Na verdade, será um prazer me desincumbir da tarefa. O percurso me permitirá experimentar novamente aquela saborosa sensação de intimidade que tive ao passear pelas páginas do livro pela primeira vez - sensação, aliás, que experimento sempre que mergulho nos arquivos de pessoas e instituições.
The Audrey Hepburn Treasures: pictures and mementos from a life of style and purpose, organizado por Ellen Erwin e Jessica Z. Diamond e prefaciado pelo primogênito de Miss Hepburn, Sean Hepburn Ferrer, redesenha a trajetória da estrela a partir do depoimento de seus amigos e familiares e, especialmente, de seu arquivo pessoal. É certo que os documentos que figuram em cópias fac-similares ou impressos nas páginas do livro são frutos da escolha das organizadoras. No entanto, nem por isso eles deixam de ser um belo panorama da persona pública e privada de Audrey.
Panorama que não raras vezes surpreende pela profundidade, como notará o leitor atento (ou aquele afeito à poeira dos arquivos, como eu).
O divertido é que o texto do livro procura fornecer brevemente ferramentas para que se entenda os documentos, mas não os analisa. Aos curiosos fica a fascinante tarefa de redescobrir a atriz a partir daquilo que ela guardava, de compreendê-la na vida privada que ela procurava manter longe das câmeras mas desnudava para os amigos, de descobrir a mulher por trás da atriz querida e entender como nasceu o mito. Meu percurso daqui em diante será comentar algumas dessas preciosidades.
A que abre o post, datada de 1939, é a frente de um postal de uma Audrey ainda bebê - provavelmente enviado por sua mãe à família da mesma, atesta o livro. A dedicatória não esconde a paixão que Ella sentia pela filhinha de três meses:

Essa é Audrey e ao vivo ela é 1000 vezes melhor e mais graciosa. Eu ando estado na Suíça e agora retorno à França. Audrey está muito bem, forte e gordinha! Com amor, Ella.

Deixei de lado os programas de recitais dos quais a jovem dançarina participou na Holanda antes de o país ser invadido pelas tropas nazistas, o que a obrigou a refugiar-se com a família e a motivou a se juntar às hostes da resistência. A partir de então e até se sentir forte para dançar, Audrey procurava levar alento, através da arte, aos indivíduos perseguidos pelo 3º Reich. A mudança de rumo em sua carreira ocorreu, como conta a atriz, quando a escassez de comida deixou-a com uma anemia profunda que quase a levou à morte. Audrey conhecia bem as marcas deixadas pela guerra e pela fome, daí o papel cabal que exerceu na UNICEF em seus últimos anos de vida.
Porém, vamos seguir a linha cronológica. Conheçamos primeiro a carta de um ardoroso admirador da artista quando ela ainda era corista de espetáculos de vaudeville londrinos - atividade que exerceu até ser descoberta pela escritora francesa Colette e protagonizar da adaptação teatral de seu romance "Gigi".


A correspondência flagra o entusiasmo que a jovem atriz suscitava no público antes de entrar na máquina de Hollywood e passar a fazer parte daquele céu estrelado que tornava os stars inatingíveis e, paradoxalmente, tão próximos dos humildes mortais. O jovem Capitão Roger Marley começa desculpando-se por se dirigir à atriz e lembra-lhe do trágico passado que os une: durante a Conflagração, ele compunha a equipe de paraquedistas que participou da liberação de Arnhem, cidade da Holanda em que Audrey vivia. Com graciosa timidez, o rapaz assume o ethos romântico do qual não raras vezes se embuem os combatentes para afirmar:

Se eu soubesse que você estava lá eu teria lutado até ser morto para lhe tirar de lá, porque, você me dê licença para que eu lhe diga, você é, de longe, a garota mais atraente que eu já vi.
Não se preocupe, eu não sou um "lobo", tenho uma esposa atraente e uma linda criança, mas é fato que, se eu soubesse que você estava em Arnhem naquele dia, eu não estaria vivo para lhe escrever.

Audrey colecionava fãs, embora desempenhasse papéis pequenos nas comédias musicadas das quais participava - como atestam as páginas do programa de "Petit Sauce Tartare" (1949), espetáculo do elegante nightclub londrino Ciro's Club em que ela apenas figura com destaque num dos números e sua foto é impressa no pé da página.



As portas para o sucesso internacional foram apenas abertas para a artista quando ela desempenhava um pequeno papel no filme "Monte Carlo Baby" (1951), rodado em inglês e francês. Não devido ao papel mas porque, nas areias da praia francesa, a jovem esbarrou em Colette, que naquela época estava em busca de protagonista para seu romance recentemente transformado em peça teatral. A dedicatória da escritora à atriz - impressa numa das páginas de The Audrey Hepburn Treasures - ressalta seu olho clínico: "Para Audrey Hepburn, tesouro que encontrei numa praia! Colette". Nem mesmo a jovem tinha, naquele momento, tanta confiança em si. O livro lembra que, convidada pela escritora para desempenhar a sapeca Gigi, ela teria respondido: "Sinto muito, madame, mas é impossível. Eu não poderia, pois não sei atuar."
No mesmo ano de 1951, em novembro, a Gigi de Audrey Hepburn enlouquecia a crítica da Filadélfia. A peça estreou na Broadway no final de novembro e ficou em cartaz até 31 de maio de 1952. Abaixo, páginas do programa da peça. E, um detalhe: "Gigi" ganhou os palcos na forma de comédia, portanto, sem as canções de Alan Jay Lerner e Frederick Loewe que cooperaram para que a maravilhosa adaptação cinematográfica dirigida por Vincent Minnelli arrebatasse 9 Oscars em 1959.

Tendo começado a carreira artística como dançarina e cantora, Audrey conquistou seu lugar ao sol como atriz, que sem dúvida era o que ela sabia fazer melhor. A maquinaria de Hollywood funcionou, como era costumeiro, para a divulgação de sua imagem - com as notícias eufóricas que surgiam a seu respeito enquanto ela estava na Itália rodando, com Gregory Peck, seu debut no cinema norte-americano e o filme que lhe daria o Prêmio de Melhor Atriz da Academia. Mesmo assim, é inegável que Audrey rouba a cena em "A Princesa e o Plebeu" ("Roman Holiday", 1953), o que motiva seu galã a conceder à atriz iniciante a honra de ela figurar ao seu lado acima do título do filme. Peck afirma ter feito isso para seu próprio bem, já que sabia que a atriz "ganharia o Oscar em seu primeiro papel". A Academia pode ser imprevisível e inegavelmente é muitas vezes injusta, porém, é bonito ver o nascimento de uma estrela consagrado desse modo. Audrey guardou sua via do recibo do recebimento da estatueta, que a comprometia a mantê-la em sua posse - se quisesse vendê-la, apenas poderia fazê-lo à Academia, recebendo por ela a soma de $ 10,00...

Até aqui, é visível (se o leitor ainda não se cansou e me abandonou no meio do caminho) que a atriz era uma religiosa guardadora de recordações. Identifico-me com esse ímpeto de arquivar a vida em pastas e mais pastas - e, ao relê-la, me redescobrir entre os pedaços de passado que resolvi eternizar. Há, em meio aos documentos selecionados pelas organizadoras do volume, um cartão postal (de 1959) em que Audrey dedica à família uma Feliz Páscoa em nome dela, do marido e do amado cãozinho que ilustra o cartão, Famous - presente de Mel Ferrer que por um tempo ocupou o espaço do filho que Audrey tentava ter. Há também o anúncio de nascimento de Sean, momento em que a "Miss Audrey Hepburn" da galáxia hollywoodiana dá lugar à mãe de família "Mrs. Melchor G. Ferrer" - papel que ela desempenhou com deleite, daí as lindas fotografias dela com o filho impressas no volume.




De volta a Hollywood, Audrey atuou, em 1961 e 1964, em duas de suas mais notórias películas, "Bonequinha de Luxo" ("Breakfast at Tiffany") e "My fair lady". De ambas as produções, Audrey nos guardou recordações interessantes. Das páginas datilografadas de uma das mais melancólicas - e difíceis - cenas da "Bonequinha...", apreendemos detalhes do métier de atriz: palavras grifadas do roteiro lembram-nos daquela inconfundível musicalidade de sua voz, sobre a qual me referi ao falar sobre "Uma cruz à beira do abismo"; e uma das réplicas de Holly a Paul (a penúltima réplica constante na página amarela do roteiro) foi transcrita literalmente por Audrey no verso do roteiro - estratégia comum de memorização.




Há uma porção de fac-símiles relativos À "Bonequinha de luxo", incluindo uma carta de Truman Capote (autor do romance do qual originou-se a versão cinematográfica) à atriz, mas vou fazer suspense até que tenha condições de escrever um post exclusivamente sobre esse filme, que amo desde muito tempo.
Relativo a "My fair lady" há um ticket da premiére mundial do filme, que teve lugar no Criterion Theatre de Nova Iorque em 21 de outubro de 1964. O preço salgado do assento, $ 150,00, seria revertido a um hospital e centro de pesquisa do Estado.

todavia, os dois documentos que mais me atraem relativos ao filme são, o primeiro, a carta de Katharine Hepburn e Spencer Tracy à Audrey e George Cukor (diretor da obra e amigo de longa data de Kate, a quem dirigiu em produções memoráveis como "Núpcias de Escândalo" e "A Costela de Adão"), congratulando-lhes pelo sucesso da película. Katharine, numa letra tão impossível quanto a de Audrey e bastante semelhante à dela (o parentesco entre ambas que seus sobrenomes podem indicar não se sustenta de fato) lhe diz algo como: "You two certanly hit the nail on the head. (...) You scared all your friends to death. A million congratulations. It's a real triumph."

E, por fim, um cartão do "Pygmalion", "Grande Magazine de Novidades" situado no Bd. Sébastopol, em Paris - cartão que, de acordo com o livro, foi usado pela atriz como marcador de página do roteiro de "My fair lady". Adoro conhecer as pequenas inspirações responsáveis pela criação dos grandes papéis. Aliás, lembram-se do post em que ensaiei uma trajetória do Pigmalião da antiguidade até o Professor Higgins ao qual Rex Harrison deu vida na versão cômico-musicada e, depois, cinematográfica de "My fair lady"?


E agora, para encerrar, dois registros da Audrey madura, tão bela por dentro quanto por fora. A primeira, um postal de Hupert Givenchy (de aprox. 1984) - estilista responsável por transformar a Holly Golightly e sua criadora em epítomes de beleza. Aqui ambos estão atentos um ao outro, sem badalação, em meio ao inverno parisiense que joga neblina nos monumentos históricos da cidade. A dedicatória afetuosa sublinha a amizade que os unia:

Minha Audrey.
Estou muito feliz de estar perto de você nesta noite de domingo.
Sempre com amor.
Hupert.


E, por fim, uma obra de arte (de 1988) que revela outra faceta de Audrey - a desenhista - retratando uma das imagens que mais a chocaram em suas peregrinações como Embaixadora de Boa Vontade da UNICEF: o sofrimento de uma mãe etíope vendo o filho sucumbir à fome. O original foi leiloado e a verba, revertida na compra de animais para o transporte de vacinas às crianças que habitavam regiões remotas e inacessíveis, afirma The Audrey Hepburn Treasures.

E agora, preciso parar, pois estou sendo quase que impedida de respirar por aquela familiar nostalgia dos velhos tempos: tempos em que tela do cinema projetava sombras mais reais que a própria vida, sombras que encontravam eco em figuras grandiosas de carne e osso. Ah, Audrey, quando nascerá outra estrela como você?

sábado, 1 de janeiro de 2011

Um ano de cinema: retrospectiva de 2010

Ano passado, propus para mim mesma listar os filmes que veria no cinema. Como sou prática, sabia que isso me obrigaria a visitar as salas de exibição com frequência, levando-me a conhecer o mais amplamente possível (não tão amplamente, já que os cinemas daqui da região não nos apresentam tantas opções) as novidades do mercado. Também decidi que não leria as resenhas de filmes antes de construir minha impressão sobre eles. Minhas idas ao cinema foram fruto sobretudo da curiosidade fomentada pelos banners dos filmes e de um ou outro trailer que vi.
O resultado foi bem interessante. Se tomei algumas rasteiras - por exemplo, de trailers bem realizados que se revelaram propagandas enganosas de filmes ruins, também não raras vezes saí do cinema empolgada com a qualidade de algumas produções. Ao ampliar o escopo de observação - beneficiando-me de um conjunto de salas de cinema alternativo que abriu relativamente perto de minha casa - acabei redescobrindo o gosto pela tela grande. Alguns dos filmes que vi - bons ou ruins - apareceram por aqui, em resenhas às vezes ácidas, às vezes apaixonadas, mas que sempre desejavam intensamente fazer justiça ao que eu acabara de ver.

Descobri-me apaixonada pelo cinema brasileiro e por aquele produzido fora do circuito comercial de Hollywood. Tanto que teria dificuldade, nesse início de ano, de apontar os meus "cinco melhores" de 2010, como fiz no ano passado - muitos mais mereceriam destaque.
No Brasil, se o ano passado foi o ano de "Nosso Lar" e "O Bem Amado", filmes que se apoiaram na religião e/ou na galáxia Global para conquistarem o público, também foi o ano de filmes feitos com esmero, verdadeiras poesias visuais, como "Quincas Berro D'Água" - linda adaptação de A morte e a morte de Quincas Berro D'água, de Jorge Amado - e A Suprema Felicidade, de Arnaldo Jabor. Apareceram também produções independentes de fôlego, como "Antes que o mundo acabe", dirigido por Ana Luiza Azevedo e produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre. Esse foi um dos filmes que senti não poder ter discutido mais detidamente aqui, tão delicado, maduro e humano foi o tratamento dado por ele a conflitos típicos da adolescência: o namoro, a amizade, o desejo de liberdade, a relação com os pais. Àqueles que não o viram no cinema - e a contar pela relação espectadores-produção apontada por Ewald Filho, foram muitos - recomendo que o procurem nas locadoras.

Bom também (e igualmente injustiçado pelo público) é "Topografia de um desnudo", docudrama dirigido por Teresa Aguiar que tem o excelente Lima Duarte como protagonista e reconta um capítulo sombrio da época da Ditadura: o desaparecimento de mendigos do Rio de Janeiro - ato promovido pelo governo com o intuito de embelezar o espaço urbano antes da visita da Rainha da Inglaterra à cidade. E, enfim, não posso deixar de mencionar o surpreendente "Tropa de Elite 2: O inimigo agora é outro", que, a contar pelo binômio qualidade/espectadores, fez justiça ao cinema brasileiro.
José Padilha consegue elaborar uma continuação que multiplica em agudeza crítica a qualidade do original. Enquanto que "Tropa 1" é um filme de ação razoável, que trata de modo unilateral do problema do crime organizado no Rio (a partir do ponto de vista da polícia, claro), "Tropa 2" é um tour de force verdadeiramente visionário no que ele oferece de percepção da realidade carioca (e brasileira) em se tratando da relação entre crime e política. Foi impossível não ler com ceticismo a invasão policial do Morro do Alemão depois de ver o filme. O público recorde que o viu, mais de 11 milhões de espectadores, segundo o ranking apontado por Ewald Filho, deixa-me bastante otimista com relação ao futuro do cinema nacional.

Não é novidade dizer que 2010 não foi um bom ano para o cinema norte-americano. O grosso da produção de Hollywood deu-me aquela sensação ruim de "já ter visto esse filme antes". Pulularam comédias românticas engraçadinhas (e moralistazinhas), com elenco mais conhecido - ou menos -, e mais jovem - ou menos.
Foi um prazer ver a sempre perspicaz Merryl Streep na tela grande, porém, "Simplesmente complicado" é um filme que começa divertido e original e descamba para o mais óbvio enlatado hollywoodiano, com direito a um artificial final feliz que prega a sisudez dos costumes com um zelo religioso. A surpresa, em minha opinião, ficou com "Cartas para Julieta", gracioso pelas locações idílicas e pela sensacional atuação de Vanessa Redgrave no papel da senhora já idosa que viaja à Itália seduzida pela resposta temporã à uma carta que ela enviara à Julieta 50 anos antes. Cada um dos momentos da atriz na película é imperdível. Meus preferidos são aqueles em que a veterana ampara a jovem Amanda Seyfield (ainda visivelmente uma aprendiz do ofício), fazendo-a brilhar - exemplos são as cenas tocantes que mostram o desenvolvimento da relação entre a senhora e a jovem, o qual paulatinamente aproxima-se da relação mãe e filha.
Porém, os filmes do ano em Hollywood (vamos pular os que concorreram ao Oscar 2010) foram "A Origem", "A Rede Social" e "Toy Story 3". Eu daria o prêmio da Academia deste ano ao terceiro sem pestanejar, pelo uso original que ele faz da linguagem cinematográfica e dos gêneros já estabilizados pela Sétima Arte (aliás, meu imenso prazer em falar sobre a animação multiplicou-se diante do fato de o post em questão ter se tornado um dos mais lidos do blog). Porém, "Toy Story 3" já ganhará o prêmio de Melhor Animação, então é provável que "A Rede Social" fique com a estatueta - salvo se aparecer outro azarão na última hora, como ocorreu ano passado com... como era mesmo o nome do filme vencedor?... Já disse aqui como gosto de "A Rede" (1995), filme que, na alvorada do mundo virtual, enxergou a importância determinante que teria a web no dia-a-dia da sociedade. "A Rede Social" faz isso com ainda mais maestria, pois está apoiado no roteiro inteligentíssimo de Aaron Sorkin (repleto de tiradas sarcásticas e elitistas, bem harvardianas, enfim) e conta com atuações excelentes de Jesse Eisenberg e Andrew Garfield - que até então, para mim, eram ilustres desconhecidos.
Para terminar esse breve passeio pelo cinema norte-americano, quero destacar "Minhas mães e meu pai", filme protagonizado por duas ótimas atrizes, Julianne Moore e Anette Benning, que trata com sensibilidade de um caso cada vez mais comum nos Estados Unidos (e no mundo): os percalços vividos pelos casais homossexuais que desejam dar início a uma família. Como concepção cinematográfica, o filme não é uma maravilha. No entanto, ele põe em debate com propriedade questões palpitantes e extremamente atuais, como os direitos que o doador de sêmen tem sobre os filhos gerados a partir de seu material genético; além do direito que cada um tem de escolher seu parceiro. É um gosto ver um filme desses brotando do seio dos Estados Unidos, país apenas pretensamente liberal. O filme comete uns pequenos deslizes de continuidade e, sinceramente, não entendi sua indicação ao Globo de Ouro na categoria "comédia", já que para mim ele é um drama que dá, quanto muito, uns sorrisos sarcásticos de canto de boca, porém, nem por isso ele deve deixar de ser prestigiado pelo público como obra que se afasta dos padrões de Hollywood.

Produções que primaram pelo esmero tanto da forma quanto do tema foram encontradas, em 2010, especialmente fora dos Estados Unidos.
Na Argentina, além do meu preferidíssimo "O segredo de seus olhos", destaco "Dois Irmãos", leitura delicada do relacionamento inter-familiar protagonizada por Graciela Borges e Antonio Gasalla e dirigida por Daniel Burman. Os dois artistas têm uma afinação ímpar que perpassa os momentos cômicos e dramáticos do filme. Gostei do final upbeating, com Gasalla e demais companheiros que com ele se aventuram numa releitura de um clássico de Shakespeare sapateando o clássico de Irving Berlin Puttin' on the Ritz (dançado por Clark Gable nos anos 30) - aliás, essa mistura entre clássico e popular ainda uma vez aponta como o cinema clássico norte-americano é caro ao cinema argentino.
Outra produção que vale a pena é o inglês "O mundo imaginário do Dr. Parnassus", fascinante homenagem a Heath Ledger - ator que o acaso nos roubou tão ridiculamente cedo. É extraordinário o modo como o filme constrói o percurso entre o sonho e a realidade, com o personagem de Ledger (que morreu durante a rodagem do longa) desdobrando-se em atores de fôlego como Johnny Deep e Jude Law - a necessidade acabou fazendo o filme tocar em questões psicanalíticas e lhe deu um dinamismo que remete à estética surrealista.
Disse que deixaria de lado os concorrentes ao Oscar do ano passado mas não posso deixar de mencionar "O Profeta", que aqui chegou apenas em setembro (!), filme ótimo pela leitura amoral que faz do sistema carcerário francês; pelo modo engenhoso como trata de questões de natureza transcendental; e pela leitura atual que faz de Mack the knife, já que o personagem título da canção parece pular de dentro dela direto para a tela - e, por Deus, nunca me dei conta do quão ácido é esse clássico do jazz, que já foi cantado por nomes como Frank Sinatra, Louis Armstrong e Bob Darin.
E, last but certainly not least, 2010 foi o ano do italiano "Vincere", sem dúvida o filme mais surpreendente que vi na tela grande no ano. Este foi outro filme sobre o qual apenas não me estendi porque estava atarantada.
Ele consegue como poucos escolher com precisão os protagonistas (Giovanna Mezzogiorno e Filippo Timi - também não os conhecia) que eu honraria com os principais prêmios da Academia desse ano. Além de tudo, é tecnicamente perfeito. O modo como ele paga tributo à cinefilia italiana é extremamente bem concebido - tanto quanto Tornatore o faz em "Cinema Paradiso".
A película parte de um fato pretensamente real (uma esposa e um filho primogênito que Mussolini teria renegado) para dar um mergulho sem oxigênio no mais descabelado melodrama. Porém, o gênero melodramático cai no filme como uma luva. "Vincere" é agudíssimo, exagerado e delirante como uma ópera de Verdi. Porém, é, na mesma medida, originalíssimo: o passado fascista italiano é recontado com tintas tão irônicas quanto Chaplin o contara em "O grande ditador" (1940) - a cena em que o filho abandonado de Mussolini o imita remete a esta obra de Chaplin. Porém, vista no distanciamento histórico, o discurso ensandecido do líder fascista ganha em "Vincere" contornos mais assustadores, que dialogam com a própria linguagem do drama: concebida a partir da costura de imagens de arquivo de filmes clássicos (como "O Garoto", de 1921) e noticiários em que figuram os atos públicos de Mussolini.
Destaco mais uma cena - certamente Eiseinsten a aplaudiria de pé se ainda estivesse entre nós: Mussolini encontra-se ferido num hospital de campanha em plena 1ª Guerra, cuidado atentamente por uma freira enfermeira, e é visitado pela esposa. Na parede do recinto há um telão que exibe uma antiga versão cinematográfica da Paixão de Cristo. As cenas da Paixão entremeiam-se às do filme na medida em que os três personagens se confrontam; e assim, por meio da subjetiva direta, os personagens do drama religioso tornam-se metáforas dos personagens do drama que se desenvolve no hospital: a religiosa meio insana se enxerga como uma Maria Madalena, dizendo-se esposa de Mussolini, enquanto ele se vê como Jesus Cristo, martirizado que já está pelo ferimento da guerra e expiando uma culpa coletiva que, embora só exista em sua cabeça (àquela altura já tomada pelo delírio de grandeza que o acompanhará ao longo da vida) será a responsável não só por desterrar sua mulher e filho, mas por instaurar a barbárie na Itália.

Espero que este 2011 seja um ano cinematográfico igualmente produtivo. Já vou começar uma nova lista!