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terça-feira, 13 de novembro de 2012

Sobre Ladies e Frankensteins: a gênese do cinema mapeada em “Quando Paris Alucina” (1964) e “Frankenweenie” (2012)


“Paris vu par Hollywood” continua no Le Champo, para meu deleite e meu desespero. Como resistir a Audrey Hepburn? Ainda mais a uma Audrey Hepburn multiplicada em Holly Golightly, Eliza Dollittle, Sabrina?... O filme é “Paris when it sizzles”, comédia hilária e inteligente dirigida por Richard Quine. A porção moderna da Paris cinematográfica fica por conta da mais nova criação de Tim Burton, artista por quem os franceses têm devoção – restos da exposição que a Cinemateca Francesa lhe dedicou no primeiro semestre do ano ainda podem ser encontrados na lojinha do local. Dois filmes aparentemente tão dessemelhantes podem, quando vistos em sequência na grande tela da cidade, fazer emergir suas insuspeitadas analogias...


O viés de análise não pode ser outro que não o da metalinguagem. 
O cinema americano fala sobre si desde antes de se mudar para Hollywood. Pearl White deseja tornar-se atriz (em “The Perils of Pauline”, 1914); lá está a câmera da Pathé americana a registrar a heroína diante das câmeras da ficção, para o filme ficcional apresentado dentro do mundo real criado pela série. Década e meia mais tarde, a personagem de Marion Davies trilha caminho semelhante (em Show People, 1928): na Hollywood já então plenamente “máquina de sonhos”, a personagem da aspirante a atriz contracena com os Chaplin, Pickford, Fairbanks “reais”. Não há limites entre a ficção e a realidade que a capital do cinema não possa transpor vitoriosa, plenamente apta a seduzir o público com as ficções que constrói ao mesmo tempo em que lhes mostra que tudo não passa de ilusão. 

Em 1964, nos últimos suspiros do star system – no “crepúsculo dos deuses”, como tão bem Edgar Morin denomina o período –, Audrey Hepburn e William Holden juntam-se, como dez anos antes o fizeram em “Sabrina”, para provarem dialeticamente que Hollywood ainda continuava a vender os melhores alimentos para o espírito. A velha fórmula de “filme dentro do filme” é levada ao paroxismo nesta obra que coloca em primeiro plano o engendramento do ato de se produzir mercadorias de sucesso para a tela grande. Sem nenhuma vergonha, Hollywood sublinha-se aqui como máquina de fazer não só sonhos, mas também dinheiro. Um filme desse tipo dificilmente sairia dali dez anos antes, quando tudo ainda eram flores. 
William Holden é Richard Benson, o roteirista boa-pinta que, segundo ele próprio, é o perfeito exemplar de sua classe: ao receber 16 semanas de salário para escrever um roteiro, “como qualquer roteirista que se preze” passou as primeiras 15 a esquiar na Suíça, a veranear em Saint Tropez, a jogar em Monte Carlo, etc. Da última, restam-lhe apenas um par de dias para que ele se cure da bebedeira e indolência eternas e entregue o produto pelo qual foi pago. Para isso, emprega Gabrielle/ Audrey Hepburn. 
O artifício do studio system, de transformar a atriz num contínuo leitmotiv a repetir variantes do mesmo tema, é aqui explicitado e ironizado. Holden paga tributo ao seu charmoso David Larraby de “Sabrina”. Audrey é súmula de todas as suas ingênuas inesquecíveis. Ao botar os olhos na bela e vivaz taquígrafa, euforicamente apaixonada por Paris, o roteirista enfronhado na indústria de Hollywood se põe a imaginar entrechos convencionais para seu filme: as cenas de aventura, perseguição, enlace e desenlace amoroso já gastas. 
Entrechos dos quais a jovem rapidamente torna-se a personagem principal. Entrechos perigosamente semelhantes àqueles já rodados pela atriz que, na película, dá vida a Gabrielle. “Quando Paris Alucina” realiza, no nível do chiste, aquilo que a Hollywood clássica – a crepuscular Hollywood clássica – exercera durante todo o tempo em que fora potência: promove o intercâmbio entre persona e personagem no intuito de criar os mitos sem os quais a gente até hoje não pode viver... (Edgar Morin comprova-o no seu ótimo “As Estrelas: mito e sedução no cinema”, que me assombra há dias, como os leitores estão vendo). 


"Frankenweenie" segue caminho semelhante. No entanto, como os tempos são outros, sua ironia mescla-se a uma graciosa nostalgia. Os letreiros dependurados sobre o vale, que anunciam a cidade aos visitantes; a opção pelo branco e negro em detrimento do colorido; a sintaxe do filme de horror dos anos 30-50, que estende seus domínios para o desenho dos personagens, dos cenários, das sequências; os nomes dos personagens. Tudo é tributo à Sétima Arte. 
As referências ao cinema clássico multiplicam-se. Senti por conhecer tão pouco o gênero homenageado. Os amantes dos filmes de horror da época, já tão bem apanhado em Ed Wood (1994) – meu Burton favorito –, vão se divertir em listar as obras relidas pelo diretor. 
O cachorrinho ressuscitado numa experiência tão sinistra quanto tocante pelo menino cientista, Frankenstein de quatro patas, vira herói da cidadezinha de New Holand (New Hollywoodland, ressurreição do mito em plena era digital, que tornou possível um resultado tão esteticamente perfeito?) ao salvá-la de gigantescas criaturas que nada devem aos extraterrestres da “Guerra dos Mundos” (1953) ou ao símio de “King Kong” (1933). Ganha uma noiva, no final. Mas não qualquer noiva. A noiva do Frankenstein canino ostenta o mesmo penteado da sua contraparte no mundo “real”. 



Happy End
 

O “The End” que fecha “Frankenweenie”, formado pelos rabinhos das duas criaturinhas peludas, nos remete ao mundo do cinema clássico – mundo feito de irreal realidade, como mostra Morin. 
Já a Audrey/Gabrielle/Holly/ Eliza/Sabrina e o William Holden/Richard Benson/David Larraby de “Quando Paris Alucina” explicitavam, teórica e praticamente, no fecho do filme, que tipo de história o público da época desejava ver nas telas. Uma que terminasse com final feliz, com a câmera enquadrando os dois rostos lindos e muito bem pagos das duas estrelas de cinema, as quais dariam o tão esperado beijo, responsável por vender a pipoca e fazer os milhões pipocarem... 
“Quando Paris Alucina” é um dos últimos sopros do star system. Junta todo o cabedal do cinema clássico contra um inimigo declarado, a nouvelle vague, “aqueles filmes nos quais nada acontece”, como afirma Gabrielle entre suspiros lamentosos. 
Há Paris, há Audrey e Holden – duas das principais estrelas do cinema americano –, o colorido, os vestidos, o agito das festanças e das perseguições frenéticas, e muitos, muitos acontecimentos a convergirem para a tal cena que vende a pipoca – cena que ratifica o amor eterno entre o par romântico. Nunca Hollywood precisou se explicar tanto antes de fazer seus protagonistas se beijarem no final da película. Nunca antes misturara tão bem acidez e homenagem a um tipo de cinema que nutrira por década o corpo e a alma dos espectadores. “Paris when it sizzles” é, mesmo, prova contumaz de que a capital do cinema enfrentava drásticas mudanças. 
Seria o filme de Tim Burton outro ponto de inflexão na história do cinema americano, como foi o de Quine? O Oscar a “O Artista” patenteia que a ode ao cinema clássico é a nova onda do cinema. Morin de novo: “no instante em que o star system morre, a estrela, que também julgávamos morta, adquire essa sobrevivência que em arte se chama afortunadamente imortalidade. (...) As estrelas de cinema atravessam os anos-luz.” (p. 135) 
Como o principal oscarizado desse ano, tanto o filme de Quine quanto o de Burton constroem o enredo ao redor do ato de fazer filmes. Vi o último com uma amiga, Raquel Vandelli, que sublinhou com argúcia a metáfora mais geral sobre a qual ele se sustenta: o cachorro-Frankenstein é o próprio cinema, feito do recorte e da costura de outras artes. Recorte-cola que se dá no âmbito material, mesmo, podemos acrescentar, já que é a decupagem a responsável por construir esse cinema homenageado, tão amado. Oxalá a recarga de energia que o estimado animalzinho de “Frankenweenie” ganha no desfecho converta-se em força para a própria arte, e que ele e ela sigam firmes e fortes por anos-luz... 


A Lê, competente editora do “Crítica Retrô”, querida como sempre, deu para este blog o selinho abaixo. Sou-lhe muito grata. Vou circulá-lo entre os blogs dos amigos, que ando lendo menos do que gostaria, infelizmente, mas pelos quais tenho grande respeito e carinho. Cada um deve circulá-lo para outros sete blogs. Se quiserem, ok?


Crítica Retrô, da Lê 
Jornalístico, de Maurette Brandt
As Tertúlias, de Ricardo Leitner
O Falcão Maltês, de Antonio Nahud Júnior
Sublime Irrealidade, de José Bruno da Silva
Cinema cem anos-luz, de Marcelo C. M.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Barbara Stanwyck, a rainha


Estou numa fase Barbara Stanwyck desde que vi aquela loucura maravilhosa que é “Bola de Fogo” (1940).
Preciso dizer que é difícil de se estar numa fase Barbara Stanwyck. A mulher fez quase um cento de filmes, 5 anos de uma série televisiva de tremendo sucesso nos anos 60 (The Big Valley, 1965-1969), outros dois do premiado show que levava seu nome (1960-1961). Debutou em Hollywood junto com o cinema falado (em 1929), depois de um período de relativo sucesso na Broadway, e só se despediu das telas nos anos 80, depois de outro grande sucesso – “Os Pássaros Feridos” (1983) – impossível um final mais auspicioso. É uma dificuldade imensa abarcar num post o conjunto de sua obra tão extensa e profunda. 
Mais fácil é passar por ela com passos vagabundos, parando de hora em vez para admirar uma heroína heterodoxa ou uma cruel femme fatale; ou para apreciar melhor aquela história genial de elenco notável, ou aquela outra que só se salva mesmo pela personagem principal (porque qualquer história vale a pena com ela).
The Big Valley

Barbara fez muito de tudo: dramas, thrillers, comédias; muitos filmes bons e outros tantos ruins. Se o ator é aquela propalada criança grande que vive a brincar de fazer de conta, ela sem dúvida foi das mais matreiras. Tomou parte em muita coisa esquecível, porém, sempre com tanta segurança que se tornava a única coisa a fazer sentido na tal produção – prova indelével de seu amor e dedicação pelo que fazia.
Miss Stanwyck, a inatingível estrela de cinema, ou “a rainha”, como William Holden fazia questão de chamá-la depois que foi seu “Golden Boy”, vez por outra dava espaço para a Babs, fazendo renascer aquela moleca do Brooklyn que nos anos de 1910 só conhecia os stars a partir das poltronas piolhentas das saletas de cinema do bairro. Basta que a gente a veja em “The lady of Burlesque” (William Wellman, 1943) para que percamos todo o respeito que temos por ela: Lá está Babs, rebolando num número sofrível do teatro burlesco no qual sua personagem trabalha. Ela responde os trocadilhos infames lançados por seu co-protagonista para, pouco tempo depois, sair do palco dando cambalhotas. A sequência estapafúrdia é a única digna de nota desse thriller que é tão ruim ao ponto de não ter suspense algum... E só é digna de nota porque vemos por aí que Babs defendia a contento qualquer coisa que lhe caísse nas mãos.

Barbara foi uma atriz moderna avant-garde, ou, porque não dizermos, foi a primeira atriz moderna. É surpreendente que uma atriz como ela tivesse surgido dentro da produção controlada dos estúdios americanos dos anos 30-50, em que o artista estava fadado a interpretar continuamente variantes de um mesmo tipo. Além dela, só Bette Davis – outra rainha – transitava com eficácia entre gêneros e caracteres. Talvez porque o carma da beleza física não as tivesse pego, puderam interpretar vilãs sem que a aparência batesse de frente com o mundo tipificado hollywoodiano em que a beleza era um atributo da bondade. E porque esbanjavam talento, eram críveis como good girls, um pouco de maquiagem e muita arte sendo suficientes para que se transformassem nas mulheres mais lindas do mundo. Seus rostos de mulheres terrenas – por oposição às goddesses da tela prateada – quem diria, as trouxe modernas até aqui, e as arrastará assim até a eternidade (ao menos é o que essa fã espera).
Quando deu corpo à dama burlesca, Barbara já havia vestido todas as máscaras disponíveis em Hollywood. Foi conduzida ao estrelato pelas mãos do grande Frank Capra quando ele era ainda pequenino, e burilou seu estilo enquanto ajudava
o mestre a burilar o dele. Vemo-la muito pouco Barbara Stanwyck em “Ladies of Leisure(1930), um filme muito pouco Frank Capra: Babs é Kay Arnold, a jovem de vida equívoca que, dilacerada pelo amor impossível nutrido por um aristocrata, tenta o suicídio. Capra toma-a nuns primeiros planos com iluminação intensa e clara e ela aparece delicada, frágil, santificada. Tão distante da imagem de mulher firme, tão à frente de seu tempo, que a tornaria célebre nas mãos do próprio Capra na obra-prima “Adorável Vagabundo” (Meet John Doe, 1941). Barbara esteve sempre no meio-termo entre a frieza e a suavidade. É esse modo matizado como ela conduz suas personagens que a mantém moderna até agora, em detrimento das toneladas de lixo maniqueísta que Hollywood produziu.
Agora nós a vemos em “Stella Dallas” (King Vidor, 1937), drama mediano com uma obra-prima de interpretação. Aos 29, Barbara arrasa na pele da mãe de meia idade, pobre, cafona e livre, que, naquela sociedade cheia de preconceitos da época, precisa entregar a filha amada ao pai da jovem para vê-la ter alguma chance de futuro. Basta o plano final para que tenhamos dimensão da grandeza da atriz: close da mãe desgrenhada e linda em sua abnegação que, depois de ver a filha bem casada, desce a rua que as separará para sempre levando na cara um meio sorriso que mescla a tristeza da separação e a alegria do dever cumprido. Nenhuma maquiagem. Barbara só carrega no rosto seu imenso talento – louvável negação à maxfactorizada Hollywood dos anos 30, que pintava suas sofredoras como se fosse conduzi-las a um baile de gala. Ao deixar de mascarar a dor, Barbara humaniza sua personagem, remete-a a condição eterna da mãe que se doa pela prole – dando, assim, alguma vida a essa história triste de tão melodramática.
Stella Dallas

Mas rápido enxugamos a lágrima que ficou no canto do olho, pois já estamos a vê-la como a encantadora heroína sem nenhum caráter – variante que ela defendeu bem como ninguém – que usa seu poder de sedução para enredar o antropólogo tímido e jogá-lo nos braços dos patifes de sua família. O filme é “The Lady Eve(As três noites de Eva, Preston Sturges, 1941) e ela, o desdobramento perfeito da fêmea bíblica responsável por induzir o homem ao pecado. A vítima é Henry Fonda, que ironicamente será o fornecedor da serpente com a qual a jovem consumara a tentação. A cena da sedução dessa cômica femme fatale – leitura humorística das vamps que, no cinema dos primórdios, enrolavam-se como cobras... – é impagável pelo charme que exala. Melhor que ela só as sequências de comédia pastelão que se sucedem quando a vampira apaixonada decide ir atrás da vítima que a havia rechaçado para vingar-se dele. De Miss Stanwyck nasceu um dos tipos mais interessantes de good girl – aquela que une frescor, ironia e inteligência. Barbara fazia interpenetrar numa mesma personagem vilania e bondade, afastando-a de um maniqueísmo rasteiro, aproximando-se assim das mulheres de carne e osso que a viam nas telas. Isto está muito bem posto em “The Golden Boy” (Rouben Mamoulian, 1939), em que ela desempenha a mulher independente, amante do chefe, encantada pelo jovem violinista que se torna revelação no mundo do boxe. William Holden, o menino de ouro – que à época efetivamente não passava de um garoto, 11 anos mais jovem que sua rainha – combina idealismo e amargura extremos. Enquanto toca violino e sua alma se expande, ele e a mentora se descobrem apaixonados – e nós por eles, brilhantes como o par que percorrerá os dois lados da estrada de mão dupla que separa a emoção da dor, a arte da violência.Na sociedade patriarcal norte-americana da década de 30, em que a mulher acabara de ganhar direito ao voto mas ainda estava longe de atingir a igualdade com o homem, Barbara construiu uma persona que ensaia a fuga do jugo masculino por meio de sua dubiedade e altivez. Ao economizar nos gestos e lágrimas, afastando-se do dramalhão, a atriz injetou densidade psicológica nas mulheres que criava. Esta sutileza, essa recusa a se deixar possuir totalmente pelo galã e pelo público, essa incompletude de sentido é, acho eu, o que ainda a faz tão interessante.
Era por meio de seu gestual que, vez por outra, Barbara extravasava a emoção contida. John Travolta, no discurso de entrega do Oscar Honorário à atriz em 82 (o único que ela receberia, apesar da excelência de seu trabalho), remete-se à beleza e confiança impressos no caminhar dela ao longo da tela. E aí lembramos da explosão de desejo da aparentemente
fria Mae Doyle quando ela se entrega ao amante em “Clash by night” (Fritz Lang, 1952); da estranha Martha Ivers (de “O tempo não apaga”, Lewis Millestone, 1946) enquanto ela desce eufórica a escadaria que a levará ao namoradinho de infância, linda e leve pela primeira vez, como se só ele pudesse salvá-la da vida de hipocrisia que vivia desde que se separaram; da segurança com que sua Lily Powers de “Baby Face” (Alfred E. Green, 1933) usava seu corpo como lhe aprazia, plenamente dona de si num momento em que mulher nenhuma o era; de sua fragilidade ao cair nos braços do zé-ninguém Gary Cooper no final de “Adorável Vagabundo” (Frank Capra, 1941), tão dele como ele desde sempre fora dela.
Adorável Vagabundo


Com Billy Wilder, Barbara Stanwyck fez o sensacional thriller "Pacto de Sangue" (Double Idemnity, 1944), em que era “mulher decaída” até no último grau, com um par de amantes que ela manipulava para tomar posse da herança do marido. Barbara soube carregar com a mesma sem-cerimônia a espingarda e a flor, sabendo exatamente o que fazer com uma e outra. E como isso fica claro naquela delícia de western à la anos 60 que é The Big Valley, no qual a atriz sessentona veste com a mesma doçura e assertividade o papel de matriarca da família!... Suponho que também ela gostasse dessa sua característica, já que em seu discurso de aceitação do AFI Life Achievement ela agradece especificamente a Frank Capra e Billy Wilder: aquele por ensiná-la tudo sobre o cinema, este por ensiná-la a atirar... 
Meu amor por Barbara Stanwyck está impregnado de um orgulho imenso. Porque ela ressaltou a faceta masculina e a feminina que há em cada um de nós. Porque ela, extravasando os limites do star system, repudiou o histórico assujeitamento feminino, que ainda hoje nos violenta. 

*

com Elvis...
Fonte: http://www.rockcellarmagazine.com/2011/08/22/musicians-on-motorcycles/elvis-presley-and-barbara-stanwyck-on-motorcycle/

segunda-feira, 11 de julho de 2011

“Sunset Boulevard”, Gloria Swanson e algumas notas sobre fama e ostracismo

“Crepúsculo dos Deuses” (1950) compõe um dos capítulos mais elucidativos do studio system hollywoodiano. Se, como thriller, ainda enreda o espectador contemporâneo que busca diversão – por sua sólida construção cinematográfica, pelo tratamento psicológico das personagens e pela surpreendente história de amor que acaba por definir o destino do protagonista – a atenção às suas nuances trará ao espectador um entendimento agudo da indústria do cinema. Isso fez com que a obra-prima de Billy Wilder colecionasse, desde seu lançamento, defensores ferrenhos e críticos contumazes. O diretor foi acusado por alguns de cuspir no prato que comeu, já que não economizou nas tintas para pintar a insânia da riquíssima ex-estrela de cinema, a qual, ao invés de conseguir um retorno triunfal ao écran, acaba por ganhar destaque nas páginas policiais das gazetas de Los Angeles.
Norma Desmond – magnificamente criada por Gloria Swanson, sem dúvida no papel de sua carreira – é metáfora dos stars que se deixavam possuir pelo mundo de faz-de-conta criado pela sétima arte. A mulher endinheirada e excêntrica, habitante de uma mansão no bairro que leva a alcunha de Sunset Boulevard – “bulevar do pôr-do-sol”, numa ácida referência à decadência de seu estrelato – faz remissão a tantas rainhas das telas que tiveram fim semelhante: riqueza e solidão. A cutilada na indústria do cinema é ainda mais incisiva porque o diretor escolhe uma grande estrela dos anos 20 para dar corpo à atriz louca – o que só faz ressaltar o lastro que sua história tem com a realidade.
Swanson foi uma das atrizes mais bem pagas, belas e badaladas de meados dos anos 10 até fim dos 20. Como Chaplin e Mary Pickford, começou nos curtas-metragens. Fez primeiramente slapstick comedy, mas cedo se descobriu moldada à comédia elegante com toques dramáticos. Àqueles que desejarem conhecer sua história, recomendo fortemente a Parte 6 do documentário “Hollywood: a celebration of the American silent film” (1980), que soma uma rememoração sucinta da trajetória da atriz ao depoimento dela e de seus contemporâneos sobre os tempos em que multidões jogavam-se aos seus pés.
É impressionante como a rememoração do passado pelos entrevistados no documentário se aproxima da reconstrução desse mundo feita por Wilder na película. Gloria relembra extasiada da recepção grandiosa que ganhou do povo de Los Angeles ao retornar da Europa em meados dos anos 20, casada com um nobre, depois de anos afastada da capital do cinema. Ela constata ter rapidamente percebido que a histeria coletiva devia-se mais ao lugar que a indústria do estrelismo lhe dera que ao seu valor como intérprete. Devemos, no entanto, olhar com cuidado para esse aguçado senso crítico, que parece ser produto da distância temporal. Outras vozes do documentário pintam uma mulher apegada a produtos de luxo e aos rótulos, ao ponto de comprar o mais caro dos automóveis com seu primeiro salário e, depois de casada, ordenar que seus conhecidos a chamassem de "Madame la Baronesse". Não é de se estranhar que, de tanto ser taxada como um ser de exceção, a atriz tenha, naquele momento, passado a se comportar como tal.

Gloria Swanson: bela e exótica na sequência de "Stage Struck" (1925) em que ela sonha ser Salomé

Norma Desmond é uma versão do que Gloria Swanson fora no auge do estrelato. Por certo é uma versão grotesca, porém, é isso o que dá envergadura crítica ao filme de Wilder. A semelhança entre a atriz e sua criação se estende para outros elementos da trama. Na película, Norma ensaia um revival com Cecil B. De Mille, seu diretor predileto. Gloria também voltava às telas depois de um longo período de ostracismo: desde seu malogrado “Queen Kelly” (1932), suas chances de atuar foram escasseando – “Crepúsculo dos Deuses” foi seu primeiro filme rodado em nove anos. De Mille, que desempenha a si mesmo no filme, teve tanta importância na trajetória de Swanson como na de sua personagem de “Crepúsculo dos Deuses”: ele tirara a atriz do slapstick e lhe vestira com figurinos fabulosos, dando-lhe o ar num só tempo de ingênua e de femme fatale que a tornou duradouro objeto de desejo do público – remeto quem estiver curioso para saber mais dessa fase ao post que escrevi sobre ela num passado pregresso...
O símile entre realidade e ficção se estende a outros personagens da trama. O roteirista boa pinta e com poucos escrúpulos Joe Gillis é desempenhado à perfeição por William Holden, que também via esmorecer seus anos dourados de galã. O mesmo se dá com Buster Keaton - já muito distante dos tempos áureos em que era comparado a Chaplin. No filme ele faz ponta como o ex-colega de profissão de Norma: era uma das “figuras de cera” – segundo o cínico Gillis – que jogavam carteado com ela. E, por fim, Max Von Mayeling – o ex-marido, ex-diretor e atual mordomo da atriz – é interpretado de modo igualmente perspicaz por Erich Von Stroheim, ninguém menos que o diretor responsável pela falência de Gloria Swanson e pelo malogro de “Queen Kelly”.

Foto publicitária do filme

O que poderia se resumir a um acerto de contas de stars decadentes com a indústria do cinema torna-se um dos maiores êxitos artísticos da era do star system. Se o conhecimento das referências permite ao espectador compreender mais profundamente a dimensão da crítica, seu desconhecimento em nada interfere na fruição da obra, competente nos mínimos detalhes. Billy Wilder, que além de comandar a batuta co-assina o roteiro, está em sua melhor forma. Dirigia desde 1942, data do sensacional “The major and the minor”, porém, roteirizava desde 1930. Apenas entre 39 e 45 co-escreveu três obras-primas da screwball comedy, “Midnight” e “Ninotchka” (1939) e “Ball of Fire” (1941), e o contundente drama "Farrapo humano" (1945) – o que significa que ele conhecia bastante bem tanto a carpintaria cinematográfica quanto os bastidores de Hollywood. A escalação dos artistas é sensacional não apenas pelo seu valor simbólico, mas porque cada um se encaixa perfeitamente nas exigências do roteiro.
William Holden mescla com competência charme e cinismo, introduzindo na mistura, no decorrer do filme, uma imprevista dose de romantismo que faz com que a gente se apiede do fim que acaba por levar – fim que conhecemos desde o princípio, já que é ele, morto, que nos narrará a história. A novata Nancy Olson se sai bem como a jovem roteirista responsável por fazer aflorar o lado íntegro da personagem de Holden. Stroheim aproveita seu físico robusto e rosto impassível para construir um personagem ambíguo: como um cão de guarda, permanece ao lado da mulher que ama, mesmo que para isso tenha de conviver com a presença do jovem amante dela.

Todavia, o filme pertence mesmo à Gloria Swanson. A atriz repete a mulher longilínea que envergava a moda exótica de Cecil B. De Mille, injetando na personagem a dose exata de insânia. Ainda bonita, comove como a mulher de meia idade que se submete a intensos tratamentos estéticos para novamente estrelar um feature – e ela quer ser “Salomé”, a jovem filha de Herodíades, o que a torna mais digna de piedade. Seu desejo é vão; Hollywood repudiava a velhice – ao menos no que tocava à sua constelação de estrelas. O ostracismo faz a atriz viver das glórias do passado. Revê os filmes de quando era jovem, junto do mordomo que lhe insufla o ego e do jovem amante roteirista que, em troco de boa casa e comida, pretexta dar corpo ao impossível texto de “Salomé” que ela escrevera.

Uma das grandes cenas do filme nascem de um desses encontros de Norma consigo mesma. Depois de se deleitar com seu rosto tomado em primeiro plano – “ela parecia uma fã”, diz a personagem de Holden -, a atriz ressalta quanto os filmes silenciosos são superiores aos falados: Ainda parece maravilhoso. E sem diálogos. Nós não precisávamos de diálogos, nós tínhamos rostos. Não há mais rostos como esse. Talvez um: Garbo.. Argumentos desse teor foram deveras repetidos até no começo dos anos 30 – quando se formaram hostes bem marcadas contra e a favor do cinema falado.
Retomada no começo dos anos 50, a assertiva da atriz soa anacrônica. Tanto, aliás, quanto sua remissão a Garbo, que se ausentara das telas desde 1941. A ironia final repousa no filme escolhido para deleitar a estrela decadente: não outro que "Queen Kelly", que, na vida real, fomentara a decadência de Gloria Swanson.
Outra cena igualmente notável é aquela em que Norma Desmond e Joe Gillis se conhecem. Você é Norma Desmond. Você fazia filmes silenciosos. Você era grande., diz ele, e ela com altivez lhe responde: Eu sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos. Em ambos os momentos a câmera lhe toma em severos planos americanos que lhe dão a aparência de monumento – glosando o modo como a personagem se via.
Cenas como essas poderiam, em mãos pouco hábeis, soar farsescas ou ofensivas. Gloria Swanson afasta o perigo, vestindo com ousadia sua personagem de uma sublime bizarrice. Aqueles que se lançaram em discussões sobre o teor lesivo da obra de Wilder – Greta Garbo e Cecil B. De Mille cortaram relações com ele depois de verem o resultado final da empreitada – se esqueceram de atentar para o tour de force que a atriz executou. Ao invés de compor uma sátira de si mesmo – como supuseram alguns – Swanson deu corpo à sua personagem mais complexa, a uma das personagens mais complexas do cinema de estúdio e, o principal, rompeu com as regras vigentes na indústria ao desempenhar um papel completamente avesso àqueles aos quais estava acostumada. Norma Desmond foi seu primeiro passo para romper com as amarras de Hollywood, e o decisivo para ela se aventurar em paragens estrangeiras: recomendo aos curiosos o insólito “Mio figlio Nerone” (1956), em que ela, divertidíssima como a mãe de Nero, atua ao lado de Brigitte Bardot, uma das amantes do imperador louco.

Agrippina (Gloria) e Nero (Alberto Sordi)

Infelizmente tivemos poucas chances de desfrutar da afiada veia cômica da atriz. Perguntada por Brownlow (aproximadamente em meados de 1960) sobre quanto de “Crepúsculo dos Deuses” se aproximava de sua história, Gloria responde - segundo ele, adotando a prosódia de Norma Desmond:

All of it, dear. I really am the greatest star of them all. But I hide away from people. I live in the past. And if you take a quick look in the bathroom, you’ll find a body floating face downward right now. (The parade’s gone by, 1968).

Nós só saímos perdendo com o fato de a indústria cinematográfica ter reconhecido o valor do filme tão tardiamente. Indicado para todos os Oscars principais, o filme levou para casa o prêmio de Melhor Direção de Arte e Melhor Música. Wilder ainda dividiu com os roteiristas de "A Malvada" a estatueta de Melhor Roteiro (escrito em parceria com Charles Brackett e D.M. Marshman Jr.). "A Malvada" foi, aliás, o grande vencedor da noite. Sem dúvida o longa de Mankiewicz é um ótimo filme. Aliás, curiosamente os temas de ambos os filmes se aproximam. Neste tematiza-se os bastidores do mundo teatral. A grande diferença é que nele o vilão está bem marcado, o que concentra a crítica numa personagem específica ao invés de transferi-la para as bases da indústria do espetáculo, como faz "Crepúsculo dos Deuses". Tivesse o filme e Gloria Swanson sido premiados e talvez teríamos um desdobramento muito diferente na história da sétima arte. Especialmente se Gloria tivesse seu trabalho na película reconhecido, desfrutaríamos com mais frequência de seu talento.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Quando nada acontece na tela: Amantes (Two lovers, 2008)

Do volume de filmes que vejo, tem sido meu costume comentar aqui os que prefiro. Hoje, abro uma exceção para falar sobre esse filme estranho que vi faz alguns dias.
Estranho não quer necessariamente dizer ruim. As várias resenhas sobre ele, que li depois de sair do cinema, demonstram que o filme satisfez uma porção de gente. Eu efetivamente não fui uma delas.
A explicação disso talvez esteja no chiste que a personagem de Audrey Hepburn faz em "Quando Paris Alucina (Paris when it sizzles, 1963), esse sim, um de meus favoritos. O filme da Audrey faz uma divertida leitura sobre o processo de produção de uma obra cinematográfica. Audrey representa uma taquígrafa contratada por um roteirista que deseja alinhavar em dois dias o script de um filme. Ao mergulharem no trabalho intenso, ambos dão a ver ao público a maquinaria da maior indústria de cinema do mundo - Hollywood: a necessidade de o filme terminar com a aproximação das duas cabeças muito bem pagas que trocarão aquele beijo responsável pela venda de pipocas e ingressos do cinema. A brincadeira com a conhecida fórmula de sucesso de Hollywood se soma às espinafradas dadas em alguns cineastas ditos cult, que, segundo a personagem de Audrey, constróem um filme pela negação. Daí os títulos paródicos "A festa que não aconteceu"; "Nenhuma dança nas ruas", etc.
Vendo "Amantes", me senti em contato com um desses pseudo cults ironizados pela taquígrafa atilada - que, aliás, convence o roteirista (interpretado por William Holden) a escrever um roteiro mais real, mais otimista, enfim, mais hollywoodiano.
Não defendo apenas os filmes que seguem a fórmula antiga e conhecida. Não é um grande problema quando as coisas efetivamente não acontecem num filme, mas sim quando elas deixam de acontecer em virtude de uma tentativa mal-sucedida do diretor de se afastar dos padrões. Isso - é o que ocorre em "Amantes" - faz com que o filme se torne falso, postiço.
Que nome dar para aquela fotografia titubeante que parece ter sido produzida por alguém com vertigem? Ela cairia bem se encontrasse alguma contrapartida na história, mas não parece ser esse o caso. Se ela tivesse sido usada para refletir o estado de perturbação e alheamento do protagonista, talvez a cena do primeiro jantar devesse ser tomada da distância, e não por meio de primeiríssimos planos de cada um dos pratos. E os diálogos fajutos, pobres mesmo, semeados pelo roteiro: "Você é um doido?", "Não.". E aquele (disforme) triângulo amoroso, ou devemos dizer "quadrado", já que a foto da antiga namorada assombra o protagonista até quase o fim da história? Sem contar a incoerência sobre a qual a história é construída: o rapaz que, dois anos depois de abandonado pela namorada, ainda tentava dar adeus à vida, de repente se vê dividido entre duas mulheres. É claro que a vida é complexa e o psiquismo ainda incompreensível, mas quando o diretor abusa dessas premissas, corre o risco de ser rejeitado.
O maior problema, na minha opinião, é que o filme não consegue alçar voo. Triste, pois ele faz algumas brilhantes tentativas. Além dos bons desempenhos de Gwyneth Paltrow, Joaquim Phoenix e Isabella Rossellini - eles fizeram tudo o que podiam com o roteiro que tinham -, os cenários são precisos. Os da casa do rapaz e da tinturaria de seu pai pintam muito bem os domínios de uma família de classe média baixa por demais presa ao passado.
E, no que toca às personagens, chamo atenção para a mãe do protagonista, interpretada por Isabella Rossellini, assustadoramente parecida com sua mãe Ingrid Bergman nos gestos, no rosto e na voz.
Os trajes dos anos 40 usados por ela, tão semelhantes aos que sua mãe usou em filmes como "Arco do Triunfo" ou "Interlúdio", expressam com alguma crueldade a distância entre o glamour das personagens de Ingrid e a ostentação pueril e fora de lugar desta personagem de Isabella. Isso, somado às bolinhas de naftalina que deixam sua casa cheirando à casa de vó, estendem à família do protagonista o deslocamento vivido por ele.
É uma pena que tantos elementos interessantes se percam no meio de situações e diálogos mal construídos. Do contrário, teríamos um filme que certamente seria lembrado por muito tempo.