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quarta-feira, 20 de novembro de 2013

“2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968) e Stanley Kubrick no MIS-SP – uns ecos de “Gravidade”

“Gravidade” (2013) levou-me a “2001: Uma Odisseia no Espaço”, como não poderia deixar de ser, dadas às aproximações que se teceram entre as obras. 
A experiência de ver pela primeira vez o clássico de Kubrick só pode ser comparada à minha – já relatada – primeira assistência de “Metrópolis” (1927), em meados do ano. O filme tão brilhante quanto intransponível encontra definição cabal numa frase de seu diretor, dependurada numa das paredes da mostra que o Museu de Imagem e Som de São Paulo lhe dedica, mais ou menos assim: “O objeto artístico não precisa ser compreendido racionalmente para nos tocar.” É um bom caminho pensar numa apreensão de 2001 que se atenha mais às sensações suscitadas pelo filme que pela busca por seu sentido unívoco (ou um que corresponda estritamente às vontades de seu realizador). 
Aí está a diferença mais clara entre esta obra e “Gravidade” – sem que isso signifique, obviamente, atestar a primazia estética de uma sobre a outra. 
O filme de Alfonso Cuarón prende-se à narrativa linear, à escrupulosa apresentação de causas e consequências, ao realismo. Kubrick deixa de lado o desejo de representação pictórica do real, rendendo-se à abstração para construir a experiência de viagem cósmica. 
Até mesmo por conta do objeto do qual trata. Na década de 1960, o espaço apenas começava a ser perscrutado in loco. A primeira viagem espacial humana se deu em 1961; os primeiros homens caminharam sobre o território lunar apenas em 1968 – data do lançamento do filme. Enquanto hoje potentes telescópios captam sistemas planetários distantes milhões de anos-luz da Terra, cinquenta anos atrás as imensidões do espaço ainda restavam a serem descobertas – o que as tornava campo fértil para a ficção científica. 
A falta de conhecimento empírico sobre o objeto resulta na sua invenção. Kubrick realiza um trabalho prodigioso de investigação sobre o surgimento das galáxias, do planeta, do homem, da racionalidade humana. Acena para a religião e a ciência no intuito de erigir sua interpretação sobre a ontologia do mundo. Apoia-se com a mesma sem-cerimônia nos fatos já comprovados pela então recente corrida espacial e nas mais extraordinárias ficções. Sua resposta é cifrada como o Apocalipse bíblico, como corresponde ao objeto intrincado do qual trata. 
“2001” mal parece um filme produzido para o público corriqueiro de cinema de fins dos sessenta. As experimentações visuais e sonoras às quais se entrega seu diretor transformam-no num sucessor da vanguarda cinematográfica dos anos de 1920, de homens como René Clair (“Entr’acte”, 1924) e Fernand Léger (“Ballet Mécanique”, 1924). Já à época, Stanley Kubrick divorciara-se da movie making de Hollywood e, refugiado na Inglaterra, decidira pela produção artesanal de suas obras. É bem conhecida sua atenção inflexível, anos a fio, aos projetos que tocava – clara ruptura com o regime serial de produção comum à América do Norte. De “2001”, ele não é só o diretor como também um dos roteiristas e o produtor. O controle total sobre seu objeto permite-lhe sobrepor a estética ao cunho mercadológico, originando uma obra única em meio ao caudal que brotava na “América”. 
“2001” não apenas rompe com a narrativa linear mas também com a linguagem cinematográfica clássica. O filme está repleto de cortes secos que a todo o momento chamam atenção para a sua materialidade. A escolha estrutural pela montagem da opacidade cobra do leitor distanciamento crítico do objeto, atenção à estranheza daquilo que é narrado em detrimento do mergulho de cabeça na história. A escolha da trilha sonora dá densidade ao percurso. É curioso escutar clássicos de grande poder imersivo de Strauss (“Danúbio Azul” e “Assim falava Zaratustra”) servindo de banda sonora ao belo/macabro bailado dos homens (ou projetos de homens) por céus e terras. 
Talvez caiba aqui outra aproximação entre o filme de Kubrick e as obras vanguardistas citadas acima, “Ballet Mécanique”, sobretudo, cuja ruptura formal com o cinema do período estendia-se para o uso da música (ruidosa e dissonante). Embora a música de “2001” aparente nadar na contracorrente da história, ela acaba oferecendo uma possibilidade interessante de interpretação ao conjunto: uma apoiada mais no sensorial que na linguagem verbal. 
O imperdível catálogo da Mostra,
que pode ser personalizado com o número do visitante.
Quem quiser dedicar um pouco mais de tempo a esse artista singular que é Stanley Kubrick – em específico a essa obra, que foi o seu grande sucesso de público –, aconselho que visite a mostra organizada pelo MIS. Uma das salas-cenários mais interessantes é dedicada a “2001”. Lá estão não só o primata e o bebê que, respectivamente, abrem em fecham a obra, como inúmeros desenhos, vídeos concernentes à produção, o Oscar de efeitos especiais vencido por ela – memorabilia original que faz a alegria dos fetichistas. Tudo isso espalhado num ambiente que reproduz a nave espacial responsável por levar o astronauta Dave Bowman (Keir Dullea) às fronteiras do espaço sideral e, enfim, à morte e à ressurreição. 
Cenário de "2001" na Exposição Stanley Kubrick
Que sais-je? Seria pretensão fechar um sentido para uma obra tão claramente hermética.
Do percurso alegórico do homem sobre a Terra, faço emergir um elemento que aproxime “2001: uma Odisseia no Espaço” e “Gravidade” – apenas porque este me levou àquele: a imagem da gestação.
No filme de Kubrick, os confins do espaço, feitos de losangos azuis sobre linhas encarnadas, desembocam num aposento de clássica frieza, quase que uma sala de museu. Lá o astronauta será tragado para se transformar no protagonista de um processo de envelhecimento, morte e gestação – transformado por fim num planeta-homem. O sentido inexpugnável desta odisseia encontra contraponto na elevação pessoal/espiritual de Sandra Bullock em “Gravidade” – filme apegado à estética de montagem clássica. Sem querer defender o filme de Kubrick em detrimento do de Cuarón (até porque eu, como boa e velha amante de cinema hollywoodiano, prefiro este àquele...), não posso deixar de constatar o quanto as descobertas científicas não acabam por nos deixar mais pobres de imaginação, ou mais apegados ao status quo...

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

"Tempos Modernos", Charlie Chaplin e os paradoxos da Era Industrial


Quando Charlie Chaplin deu ao público seu silent "Modern Times" (1936), o cinema já tagarelava havia uma década. Todavia, o que aparentemente nascera fadado ao papel de peça de museu, revelou, naquele 1936, uma atualidade que foi sendo renovada com o passar dos anos. Prova de que o filme é obra de um gênio (que, tocado pelo dedo de Deus, conseguiu construir algo imortal), ou simplesmente reflexo do medo recôndito que a sociedade desde sempre teve do famigerado "capitalismo" - o qual movimenta riquezas com a mesma sem-cerimônia com que elimina a poesia da vivência cotidiana? Um pouco das duas coisas, talvez. O certo é que, em "Tempos Modernos", nosso querido vagabundo conseguiu dar tratamento único a uma tópica muito discutida pela produção literária e cinematográfica da época: o progresso tecnológico, que alterara o modo como as pessoas enxergavam a realidade.
A antológica imagem do homem pequenino engolido pelas gigantes engrenagens de uma máquina não pode, no entanto, nos levar a pensar no filme estritamente como uma recusa à era industrial.
Ora, o progresso tecnológico foi o responsável pelo surgimento do cinematógrafo, máquina que, pelas imagens que escolheu oferecer ao espectador desde os primórdios, cooperou para que ele enxergasse o mundo moderno como um espaço veloz, dinâmico e, por que não dizer, assustador. O endosso do cinematógrafo à tecnologia fica patente na vista mais célebre de Lumière, do trem chegando à Estação: em que a câmera estática recupera o ponto de vista do passageiro que espera para embarcar, o qual parece prestes a ser colhido pela locomotiva que se aproxima veloz.
Contudo, a sátira dos artefatos modernos não deixa de ser o cerne do filme. Nele, Chaplin dá vida a um operário insignificante, sem nome - e, portanto, metonímia dos milhões de trabalhadores anônimos que operavam as linhas de produção das grandes indústrias da América e da Europa.
Apenas um indivíduo entre tantos que precisava enfrentar a selva de pedras da cidade moderna para tirar dela seu sustento. O aspecto animalesco da cidade é patente não apenas na linha de montagem, que massacra a personagem, reprimindo seus anseios de indivíduo, reduzindo-o à peça de uma bem engrenada maquinaria e literalmente engolindo-o. Também notamo-lo no turbilhão das ruas, repleto de pessoas que, no seu ir e vir, parecem à deriva; e na violência com que as autoridades tratam o homem comum.
O enredo, apresentado nessas poucas palavras, poderia ser a notícia de um drama amargo igual a vários outros que Hollywood produziu sobre o assunto naqueles anos. "Tempos modernos" é, no entanto, uma das mais hilárias comédias da história do cinema. O gênero tem importância fundamental para sua atualidade. Chaplin era filho de artistas do music hall londrino. Cresceu sob as luzes da ribalta, onde estreou aos cinco anos. Conhecia, portanto, a preferência do público pela comédia pastelão, pelos enredos cheios de reviravoltas, pelos números que censuravam os costumes através do riso demolidor, pela graça irresistível que emanavam os personagens tipos. Portanto, quando jovem, sentiu-se à vontade na atmosfera mambembe dos estúdios cinematográficos dos primeiros tempos. Estreou como ator de cinema em 1914 - reportagem de uma Careta de 1920 antecipa essa data em três anos, período no qual ele teria trabalhado para a Keystone, mas o IMDB dá o ano de 14 com tanta riqueza de detalhes que temo contradizê-lo. A construção da personagem do vagabundo - que Chaplin apenas abandona em 1947, em "Monsieur Verdoux" - denota ainda uma vez a influência do teatro alegre, em que os artistas eram fadados a interpretar sempre um mesmo tipo, máscara que usualmente se colava às suas faces e por meio da qual eram reconhecidos onde quer que fossem.
Mas, se a arte de Chaplin é em parte devedora do meio teatral dentro do qual ele nasceu, ela deve outro tanto às telas do cinematógrafo, medium que o artista ajudou a apurar à medida em que apurava a personagem eterna que inventara.
Aquele artigo da revista Careta ao qual me referi acima oferece informações preciosas para que entendamos a construção do tipo. Nele, o então já mundialmente consagrado ator conta detalhes da criação de seu personagem e estabelece as diferenças entre cinema e teatro. Seu vagabundo teria sido, segundo ele, o resultado final de um tipo que demorou anos para construir, burilado na medida em que ele via o que agradava o público. Chaplin deixa implícito ser um constante observador de si mesmo e do público que o vê. Diz frequentar as telas de exibição para conhecer a reação dos espectadores com relação a seus filmes. Como um ator de teatro, precisava dos aplausos do público, desesperando-se quando não os recebia. A atitude denuncia a formação que Chaplin tivera como artista. Sublinha, também, características que depois serão fundamentais para o estabelecimento do cinema como uma das mais rentáveis indústrias dos EUA a partir de fins dos anos de 1910: a construção de tipos facilmente reconhecíveis, compreendidos pelos espectadores de todas as classes sociais; o aspecto popularesco do veículo, uma das diversões mais baratas das cidades daqueles tempos; o estabelecimento do star system, que traçava relação de sinonímia entre o tipo posto em cena e o artista que o representava, fomentando a venda de ingressos, fotografias de stars e produtos por eles anunciados.
A consagração que Charlie Chaplin recebeu desde jovem - e durante toda sua carreira - e o fato de seus filmes se destacarem em meio aos milhões de quilômetros de películas produzidas entre os anos de 1910 e 1950, atestam, no entanto, que algo o diferenciava das centenas de estrelas da galáxia de Hollywood. Parece absurda a força que sua obra eminentemente silenciosa (apenas em “O grande ditador”, 1940, ele passou a usar o diálogo verbal em seus filmes) exerce até hoje em nossa sociedade tão faladeira e amiga das novidades. Só parece, já que as artimanhas aparentemente banais do vagabundo adorável são oriundas de uma série de escolhas cuidadosamente refletidas, de um esforço hercúleo para a transformação das experiências cotidianas em arte.
Chaplin era um perfeccionista. A trivia de Hollywood oferece informações curiosas a respeito: os milhares de metros de película inutilizados até que ele tivesse estabelecido as tomadas perfeitas para a montagem da (genial) dança dos pãezinhos da "Busca do Ouro" (1925); o fato de "Uma mulher de Paris" (1923) ter sido rodado linearmente, para o bem do realismo da ação, a despeito da vultosa quantia gasta na reconstrução dos cenários.
Ele era um poeta em meio aos burocratas da indústria do cinema. Este é um elemento chave que possibilitou a abrangência de sua obra e o trouxe, moderníssimo, até nós. Com o fim dos anos de 1910 terminou, para si, o tempo das produções de menor fôlego (algumas especialmente bem cuidadas, como "Vida de cachorro", de 1919). O ano de 1920 trouxe-lhe a possibilidade de se juntar a Mary Pickford, Douglas Fairbanks (ator e atriz considerados então os queridinhos da América) e ao diretor D. W. Griffith na fundação da United Artists. O capital da empresa permitiu-lhe trabalhar na produção de seu primeiro longa metragem, "O Garoto" (1921), o qual lhe tomou um tempo muito maior do que as produções de Pickford e Fairbanks, porém, consolidou sua imagem e o tornou unanimidade entre o público e a crítica da época.

Os fundadores da United Artists: Mary Pickford, Griffith, Chaplin, Douglas Fairbanks

A crítica brasileira contemporânea à exibição de "O Garoto" - que reuni por acaso, à medida em que cursava as disciplinas do semestre passado - constata que o artista ecoava o anseio dos escritores modernistas de, através de um trabalho penoso e lento, transformar a inspiração numa “obra-de-arte, coletiva e funcional, mil vezes mais importante que o indivíduo” (palavras de Mário de Andrade). "O Garoto" antecede em 15 anos "Tempos Modernos". Porém, as preocupações de Chaplin permanecem as mesmas. Por isso ele segue admirado pelo público, pelos escritores modernistas brasileiros e pelas vanguardas cinematográficas europeias. Não se trata da defesa da repetição de fórmulas velhas. O tipo construído pelo artista britânico captava a essência do homem moderno membro das classes desfavorecidas. O brasileiro Alberto Cavalcanti, pertencente ao grupo dos inovadores europeus e um dos pioneiros do documentário, diz:

O tipo que o próprio Chaplin representa de preferência é o símbolo do homem universal que viveu entre as duas grandes guerras, vítima de todas as injustiças sociais que, no entanto, não conseguiram abatê-lo. (...). O homem simples de todos os povos e de todas as raças sente-se nele retratado, porque, na sua aparente fragilidade, Chaplin simboliza a sua resistência inata e indomável às condições precárias de vida de nosso tempo.

Não é por acaso que encontramos, na produção dos vanguardistas, ecos da filmografia de Chaplin. Um exemplo saboroso desse aproveitamento está na “Voyage Imaginaire” (1925) de René Clair, obra que flerta com a psicanálise (que então começava a ser vulgarizada) ao postular o caráter liberador do sonho. Nela, o mocinho tímido apenas se descobre capaz de lutar pela jovem que ama depois de passar por uma série de aventuras que culminam num museu de cera onde ele é ajudado pelos bonecos de cera de Chaplin e do Garoto, que magicamente ganham vida à meia noite (alguém está se lembrando de “Uma noite no Museu”? “Voyage imaginaire" é infinitamente melhor).


Chaplin e o Garoto, ainda figuras de cera



O caráter catártico da obra de Chaplin está patente no filme de Clair, cujo final recupera uma tópica das fitas do vagabundo: a partida do personagem, captado por uma câmera estática à medida em que ele se afasta da audiência, emocionada mas convencida de que ele voltaria outra vez porque, mais do que um homem, ele é um símbolo.

Última cena de “Voyage Imaginaire”

O trecho em itálico não é meu, mas de Alberto Cavalcanti, e ele não se refere especificamente ao vagabundo de “Tempos Modernos” – o qual deixa a cena de braços dados com Paulette Goddard enquanto soa “Smile” (canção que também é obra sua) - mas sim a "Monsieur Verdoux" (1947). Vê-se, portanto, que Chaplin fez dessa partida uma constante do seu personagem, que àquela altura era tão simbólico para a cultura ocidental quanto o Pierrot da Commedia del Arte (apenas para repetir a constatação da crítica). Ao tomá-la, Clair retoma pelo menos outras duas produções anteriores de Chaplin, “O Vagabundo” (1915) , "The Pilgrim (1923) e “O circo” (1928), traçando uma ponte entre a supostamente hermética vanguarda e o popular cinema de Hollywood.

A influência, todavia, foi de mão dupla, já que “Tempos Modernos” claramente recebeu influência de uma película de Clair denominada “A nous la liberté” (1931) – ao ponto de ter sido considerado por alguns uma paródia ao filme! Aliás, preciso aqui agradecer à minha orientadora Miriam Gárate, sem a qual eu nada saberia desse desdobramento da história. Para quem tiver interesse, o filme é facilmente baixado pelo Torrent. Eu obviamente que tive. Vendo-o, qual não foi a minha surpresa ao encontrar uma comédia musical que deslizava de modo adorável da canção para a declamação rimada, tocando raramente o diálogo prosaico. O enredo trabalha o mesmo tema: a desumanização que a tecnologia fomenta. Porém, por um viés diferente: aqui é contada a história de um ex-presidiário que incidentemente é envolvido na massa que principiará a trabalhar numa empresa de fonógrafos, tornando-se também ele um funcionário. A música que costura o filme surge como uma exigência bem humorada do roteiro, que brinca com o paradoxo da situação: um homem se vê destituído de sua liberdade enquanto cria diversão para os outros.



À nous la liberté (1931)

Modern Times (1936)

A tão desejada liberté é alcançada no final do filme, quando o homem deixa de ser joguete da máquina e passa a dominá-la, podendo, enfim, desfrutar do seu tempo livre. E mais, apaga-se o fosso que separa patrão e empregado: ambos dão as mãos e cantam felizes a canção título depois de a empresa ser dividida entre os trabalhadores, que passam assim a dominar plenamente sua força de trabalho. O fecho de “Tempos Modernos” não repousa nessa questão. Nele, o “capitalismo selvagem” da sociedade industrial é tomado como um caminho sem volta. Às personagens que desejavam a liberdade restava a fuga.

O patrão e o empregado de “À nous la liberté”, agora unidos, seguirão por aquele mesmo caminho eternizado por Chaplin.

O trabalho diferenciado com a banda sonora é outra característica que aproxima Clair e Chaplin. Disse no início que o cineasta apenas começou a se utilizar sistematicamente dos diálogos em prosa no começo dos anos 40. Isso porque, como bem aponta Cavalcanti, Chaplin sabia que o uso dramático do som não devia se reduzir à palavra falada. A prosa foi o último elemento que o artista levou para seus filmes. Contudo, o desenvolvimento do som, que possibilitou a gravação do mesmo na película, foi fundamental para sua arte, pois permitiu que ele sincronizasse os efeitos sonoros à ação de forma a potencializá-la.
Charlie Chaplin era um artista completo – isso é chavão, mas não custa insistir. Basta uma vista d’olhos nos seus longas-metragens para notar que seu nome invariavelmente domina os créditos: ele dirigia, atuava, roteirizava, compunha a trilha sonora e produzia. Isso o torna único na indústria dos primeiros tempos, quando o trabalho era diluído, nunca se sabendo ao certo quem fazia o quê. Esse controle total sem dúvida foi o responsável por ele criar uma obra incrivelmente densa que, apesar da inovação tecnológica, permanece ainda hoje como o que de melhor se produziu no campo cinematográfico.
O sucesso que esse genial criador conseguiu desde logo entre público e crítica vem de sua habilidade de trabalhar cinematograficamente com os elementos que dominava desde que atuava nos palcos londrinos. A pantomima, o melodrama e o vaudeville, gêneros populares, são por ele destilados para que surjam, diante das câmeras, numa pureza desconcertante que apenas transmite o essencial. Chaplin emprestou aos seus longas-metragens a estrutura do gênero melodramático e do vaudeville, misturando cenas dramáticas e cômicas. Todavia, nunca em seus filmes uma cena cômica interrompe abruptamente a ação, aparecendo apenas para distender o público. Ao contrário, o artista sabia transitar com maestria da comédia para o drama, levando o espectador pela mão até gerar nele a emoção estética - estou me lembrando que, meses atrás, falei algo muito semelhante da Judy Garland, tão feiticeira quanto Carlitos por esse mesmo motivo. Um exemplo perfeito disso encontramos nos minutos finais de "Tempos Modernos", quando a personagem de Chaplin e a de Paulette veem-se obrigadas a interromper sua entusiasmada apresentação no café-concerto para empreenderem uma dramática fuga da polícia. Eles escapam, no entanto, aparentemente apenas para despencarem na existência de penúria da qual haviam acabado de sair. Porém, os símbolos apresentados imediatamente após o fade out apontam que a esperança subsiste ao desespero: amanhece o dia e descortina-se o horizonte, imagem substituída pelo plano do casal de fugitivos e por um primeiro plano da jovem que chora, seguida do plano do rapaz que se arruma, assobiando. Enquanto isso, a banda sonora reconstrói, no plano musical, a atmosfera agridoce apresentada pelo plano visual. A jovem, que havia desistido de lutar, é contagiada pela alegria de viver do amigo e segue com ele rumo ao desconhecido.

“Smile...”

A letra e a música de "Smile" metaforizam cabalmente a persona artística de Chaplin. Ninguém como ele entendeu como dor e alegria se misturam na vivência cotidiana: como se uma gota de sofrimento estivesse sempre guardada no final do riso. Por isso, "Smile" aproveita-se dos violinos e de um tempo lento e torturado para cantar a necessidade de se buscar a alegria na dor: Smile, though your heart is aching. (...). Light up your face with gladness. Hide every trace of sadness. Although a tear maybe ever so near. That's the time you must keep on trying. Smile, what's the use of crying. You'll find that life is still worthwhile. If you just smile.


Queria terminar o texto com um vídeo de Judy Garland cantando "Smile". Judy sabia bem o que era rir das desditas - talvez seja por isso que ela interpreta a canção de modo tão maravilhoso, com um riso no rosto e lágrimas na voz.



*
Meus agradecimentos àqueles que votaram na enquete. O resultado, como supus, foi apertado: todos os filmes de Chaplin receberam votos, sendo que "Luzes da Ribalta" e "Tempos Modernos" ficaram, respectivamente, com 27% e 47% da preferência dos leitores.