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sábado, 8 de novembro de 2014

Música & Cinema no SESC Pinheiros

Foi com nostalgia que recuperei a resenha da exposição francesa "Musique et cinéma", escrita quando eu recém voltara de Paris. E os comentários dos amigos blogueiros. A Letícia, da Crítica Retrô, sonhava: “Quem sabe um dia não temos a sorte de vir uma exposição dessas para o Brasil?”. Sonho de realização improvável, mas não impossível. Prova disso é que o SESC Pinheiros (São Paulo, metrô Faria Lima) acolhe agora (e até 11 de janeiro de 2015) uma porção considerável dela. 
O questionamento segue o mesmo: “Música & cinema: O casamento do século?”. E as respostas desdobram-se com a mesma formatação da Exposição original: a penumbra a mimetizar a sala de cinema; telas brancas a reproduzirem as sequências de abertura de filmes rodados entre os anos de 1930 e 2000; enquanto pequenos monitores apresentam sequências célebres (Clouzot a testemunhar Karajan regendo a Filarmônica de Berlim; Judy Garland num dos números musicais de “Nasce uma Estrela”, 1954...) e conta as histórias a eles relacionadas. É desusado me estender aqui. Remeto o leitor à tal resenha passada, que descreve a passo a exposição. 
Da criação da Cité de la Musique, não cruzaram o Atlântico os estúdios de brinquedo; os três telões a emergirem uma grande audiência nas obras inesquecíveis. A sala dentro da qual criadores explicavam proficuamente suas criações foram transformadas nuns poucos monitores a apresentar o depoimento de escolhidos: Ennio Moriconni, Michel Deville, Eduardo Coutinho.  
O resumo é eficaz. Se lima consideravelmente a voz de nomes fundamentais da música na Sétima Arte, como Michel Legrand (a quem o lirismo da obra de Jacques Demy muito deve), também dá voz à prata da casa – igualmente abafada na exposição francesa, diga-se de passagem. Chico, Vinícius, Caetano e Gilberto Gil deram corpo e alma a filmes mais ou menos populares: de “Ópera do Malandro” (1986) a “Lisbela e o Prisioneiro” (2003); de “Veja essa canção” (1994) a “Eu tu eles” (2000). A seleção deixa de lado os usos mais cerebrais da música, como aquele que ocorre em “O Som ao Redor” (2012), para concentrar-se, sobretudo, na canção. Daí, pede a voz Eduardo Coutinho, cuja última obra, “As Canções” (2011), recupera as trilhas-sonoras das histórias de anônimos. 
O sempre sagaz Coutinho vê as vidas dos brasileiros indissoluvelmente imbricadas nas canções. Um mundo emerge dessa consideração: a revolução tecnológica que tornou possível a invenção do fonógrafo, do cinema e do rádio, que engatilhou a cultura de massas, alavancou a popularização da música enquanto item fragmentado de consumo: nos 78 rotações, nos salões de bailes dos bairros, numa variedade crescente de gêneros que aproximavam os corpos, relaxavam os costumes severos de outrora e davam voz a uma massa a quem o acesso à música clássica era impossível. Nosso século XX teve a honra de parir Cartola, Irving Berlin, Adoniran Barbosa, Cole Porter, Vinícius, George Gerswhin, Catullo da Paixão, nossos Beethovens. 
O cinema acolheu de bom grado a popular canção, sua contemporânea. A Exposição apresenta algumas das primeiras tentativas de se sincronizar som e imagem: O "Chronomégaphone Gaumont", de 1906, apresentava números musicais curtos. São da época gravações de canções populares e de trechos de óperas, reduzidos às suas mais célebres árias. 
Enquanto que, ao longo dos anos 1895-1920, instrumentistas e orquestras maiores ou menores tocavam antes, durante e/ou depois das exibições cinematográficas, além de ritmarem, dos bastidores, os affairs imaginários das estrelas silenciosas das telas (observem o violinista e a pianista que tocam para criar o mood romântico em Garbo e Nagel, n’“A Dama Misteriosa”). 
Música e cinema: o casamento do século? Um dos mais auspiciosos, por certo. Se lágrimas nos subirem aos olhos aos primeiros compassos de “Moon river”, será possivelmente porque nos lembraremos de Audrey Hepburn flanando suave pelas ruas sonolentas de Nova York, ao despertar da cidade (e de “Bonequinha de Luxo”, 1961). 
Nunca o prelúdio de Tristão e Isolda me soou tão pungente quando no momento em que fui interpelada pelo desespero de Kirsten Dunst, em “Melancolia” (1961). A música nos toca a todos menos por seu propalado “sentido universal”, e mais porque ela ganha subitamente tradução num rosto, num gesto, num acontecimento – quer sejam naqueles criados pelo cinema, que nos são dados sem pejo fitar, quer seja naqueles construídos pelos nossos cinemas individuais, nas canções que embalam as pessoas e os momentos que nos são queridos.
*
SESC Pinheiros: Música e Cinema: o casamento do século?
De 20 set. 2014 a 11 jan-2015
R. Paes Leme, 195. São Paulo (metrô Faria Lima)

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Sobre Ladies e Frankensteins: a gênese do cinema mapeada em “Quando Paris Alucina” (1964) e “Frankenweenie” (2012)


“Paris vu par Hollywood” continua no Le Champo, para meu deleite e meu desespero. Como resistir a Audrey Hepburn? Ainda mais a uma Audrey Hepburn multiplicada em Holly Golightly, Eliza Dollittle, Sabrina?... O filme é “Paris when it sizzles”, comédia hilária e inteligente dirigida por Richard Quine. A porção moderna da Paris cinematográfica fica por conta da mais nova criação de Tim Burton, artista por quem os franceses têm devoção – restos da exposição que a Cinemateca Francesa lhe dedicou no primeiro semestre do ano ainda podem ser encontrados na lojinha do local. Dois filmes aparentemente tão dessemelhantes podem, quando vistos em sequência na grande tela da cidade, fazer emergir suas insuspeitadas analogias...


O viés de análise não pode ser outro que não o da metalinguagem. 
O cinema americano fala sobre si desde antes de se mudar para Hollywood. Pearl White deseja tornar-se atriz (em “The Perils of Pauline”, 1914); lá está a câmera da Pathé americana a registrar a heroína diante das câmeras da ficção, para o filme ficcional apresentado dentro do mundo real criado pela série. Década e meia mais tarde, a personagem de Marion Davies trilha caminho semelhante (em Show People, 1928): na Hollywood já então plenamente “máquina de sonhos”, a personagem da aspirante a atriz contracena com os Chaplin, Pickford, Fairbanks “reais”. Não há limites entre a ficção e a realidade que a capital do cinema não possa transpor vitoriosa, plenamente apta a seduzir o público com as ficções que constrói ao mesmo tempo em que lhes mostra que tudo não passa de ilusão. 

Em 1964, nos últimos suspiros do star system – no “crepúsculo dos deuses”, como tão bem Edgar Morin denomina o período –, Audrey Hepburn e William Holden juntam-se, como dez anos antes o fizeram em “Sabrina”, para provarem dialeticamente que Hollywood ainda continuava a vender os melhores alimentos para o espírito. A velha fórmula de “filme dentro do filme” é levada ao paroxismo nesta obra que coloca em primeiro plano o engendramento do ato de se produzir mercadorias de sucesso para a tela grande. Sem nenhuma vergonha, Hollywood sublinha-se aqui como máquina de fazer não só sonhos, mas também dinheiro. Um filme desse tipo dificilmente sairia dali dez anos antes, quando tudo ainda eram flores. 
William Holden é Richard Benson, o roteirista boa-pinta que, segundo ele próprio, é o perfeito exemplar de sua classe: ao receber 16 semanas de salário para escrever um roteiro, “como qualquer roteirista que se preze” passou as primeiras 15 a esquiar na Suíça, a veranear em Saint Tropez, a jogar em Monte Carlo, etc. Da última, restam-lhe apenas um par de dias para que ele se cure da bebedeira e indolência eternas e entregue o produto pelo qual foi pago. Para isso, emprega Gabrielle/ Audrey Hepburn. 
O artifício do studio system, de transformar a atriz num contínuo leitmotiv a repetir variantes do mesmo tema, é aqui explicitado e ironizado. Holden paga tributo ao seu charmoso David Larraby de “Sabrina”. Audrey é súmula de todas as suas ingênuas inesquecíveis. Ao botar os olhos na bela e vivaz taquígrafa, euforicamente apaixonada por Paris, o roteirista enfronhado na indústria de Hollywood se põe a imaginar entrechos convencionais para seu filme: as cenas de aventura, perseguição, enlace e desenlace amoroso já gastas. 
Entrechos dos quais a jovem rapidamente torna-se a personagem principal. Entrechos perigosamente semelhantes àqueles já rodados pela atriz que, na película, dá vida a Gabrielle. “Quando Paris Alucina” realiza, no nível do chiste, aquilo que a Hollywood clássica – a crepuscular Hollywood clássica – exercera durante todo o tempo em que fora potência: promove o intercâmbio entre persona e personagem no intuito de criar os mitos sem os quais a gente até hoje não pode viver... (Edgar Morin comprova-o no seu ótimo “As Estrelas: mito e sedução no cinema”, que me assombra há dias, como os leitores estão vendo). 


"Frankenweenie" segue caminho semelhante. No entanto, como os tempos são outros, sua ironia mescla-se a uma graciosa nostalgia. Os letreiros dependurados sobre o vale, que anunciam a cidade aos visitantes; a opção pelo branco e negro em detrimento do colorido; a sintaxe do filme de horror dos anos 30-50, que estende seus domínios para o desenho dos personagens, dos cenários, das sequências; os nomes dos personagens. Tudo é tributo à Sétima Arte. 
As referências ao cinema clássico multiplicam-se. Senti por conhecer tão pouco o gênero homenageado. Os amantes dos filmes de horror da época, já tão bem apanhado em Ed Wood (1994) – meu Burton favorito –, vão se divertir em listar as obras relidas pelo diretor. 
O cachorrinho ressuscitado numa experiência tão sinistra quanto tocante pelo menino cientista, Frankenstein de quatro patas, vira herói da cidadezinha de New Holand (New Hollywoodland, ressurreição do mito em plena era digital, que tornou possível um resultado tão esteticamente perfeito?) ao salvá-la de gigantescas criaturas que nada devem aos extraterrestres da “Guerra dos Mundos” (1953) ou ao símio de “King Kong” (1933). Ganha uma noiva, no final. Mas não qualquer noiva. A noiva do Frankenstein canino ostenta o mesmo penteado da sua contraparte no mundo “real”. 



Happy End
 

O “The End” que fecha “Frankenweenie”, formado pelos rabinhos das duas criaturinhas peludas, nos remete ao mundo do cinema clássico – mundo feito de irreal realidade, como mostra Morin. 
Já a Audrey/Gabrielle/Holly/ Eliza/Sabrina e o William Holden/Richard Benson/David Larraby de “Quando Paris Alucina” explicitavam, teórica e praticamente, no fecho do filme, que tipo de história o público da época desejava ver nas telas. Uma que terminasse com final feliz, com a câmera enquadrando os dois rostos lindos e muito bem pagos das duas estrelas de cinema, as quais dariam o tão esperado beijo, responsável por vender a pipoca e fazer os milhões pipocarem... 
“Quando Paris Alucina” é um dos últimos sopros do star system. Junta todo o cabedal do cinema clássico contra um inimigo declarado, a nouvelle vague, “aqueles filmes nos quais nada acontece”, como afirma Gabrielle entre suspiros lamentosos. 
Há Paris, há Audrey e Holden – duas das principais estrelas do cinema americano –, o colorido, os vestidos, o agito das festanças e das perseguições frenéticas, e muitos, muitos acontecimentos a convergirem para a tal cena que vende a pipoca – cena que ratifica o amor eterno entre o par romântico. Nunca Hollywood precisou se explicar tanto antes de fazer seus protagonistas se beijarem no final da película. Nunca antes misturara tão bem acidez e homenagem a um tipo de cinema que nutrira por década o corpo e a alma dos espectadores. “Paris when it sizzles” é, mesmo, prova contumaz de que a capital do cinema enfrentava drásticas mudanças. 
Seria o filme de Tim Burton outro ponto de inflexão na história do cinema americano, como foi o de Quine? O Oscar a “O Artista” patenteia que a ode ao cinema clássico é a nova onda do cinema. Morin de novo: “no instante em que o star system morre, a estrela, que também julgávamos morta, adquire essa sobrevivência que em arte se chama afortunadamente imortalidade. (...) As estrelas de cinema atravessam os anos-luz.” (p. 135) 
Como o principal oscarizado desse ano, tanto o filme de Quine quanto o de Burton constroem o enredo ao redor do ato de fazer filmes. Vi o último com uma amiga, Raquel Vandelli, que sublinhou com argúcia a metáfora mais geral sobre a qual ele se sustenta: o cachorro-Frankenstein é o próprio cinema, feito do recorte e da costura de outras artes. Recorte-cola que se dá no âmbito material, mesmo, podemos acrescentar, já que é a decupagem a responsável por construir esse cinema homenageado, tão amado. Oxalá a recarga de energia que o estimado animalzinho de “Frankenweenie” ganha no desfecho converta-se em força para a própria arte, e que ele e ela sigam firmes e fortes por anos-luz... 


A Lê, competente editora do “Crítica Retrô”, querida como sempre, deu para este blog o selinho abaixo. Sou-lhe muito grata. Vou circulá-lo entre os blogs dos amigos, que ando lendo menos do que gostaria, infelizmente, mas pelos quais tenho grande respeito e carinho. Cada um deve circulá-lo para outros sete blogs. Se quiserem, ok?


Crítica Retrô, da Lê 
Jornalístico, de Maurette Brandt
As Tertúlias, de Ricardo Leitner
O Falcão Maltês, de Antonio Nahud Júnior
Sublime Irrealidade, de José Bruno da Silva
Cinema cem anos-luz, de Marcelo C. M.

domingo, 14 de outubro de 2012

“Paris vu par Hollywood” no Hôtel de Ville e “Sabrina” (1954)


O Hôtel de Ville, bela construção a dois passos da Île de la Cité, em Paris, recebe até meados de dezembro a exposição Paris vue par Hollywood, memento num só tempo nostálgico e crítico da forma como a produção cinematográfica hollywoodiana apreendeu a cidade-luz. 
Hôtel de Ville
Na entrada, a linha do tempo dá o tom da mostra: por ela desfilará cem anos de cinema, até “A invenção de Hugo Cabret” (2011), recentíssima obra prima de Martin Scorsese em que dá o ar da graça a Paris do Méliès de 1890-1910. O corredor coberto das recordações do tempo em que o cinema dava os primeiros passos é preenchido com o som que vem do subsolo, onde um enorme telão apresenta excertos de obras produzidas quando a arte já amadurecera. 
An American in Paris
Antes de chegar ao subsolo, o público curioso pode esgueirar-se em direção às pilastras que sustentam o edifício e juntar a imagem ao som. Lá está a Garbo de “Ninotchka” (1939) a replicar, num hilário pragmatismo, a cantada do parisiense típico Leon: “Só quero saber qual a distância mais curta até a Torre Eiffel. Você acha mesmo que há a necessidade de flertar?”. Gene Kelly arrebata Leslie Caron nas margens do Sena, ao som de “Love is here to stay”, em "Sinfonia de Paris" (An American in Paris, 1951); o maravilhoso Gershwin sabe dar voz à Paris como ninguém. E Audrey, Freddy e Kay Thompson entoam um “Bonjour Paris” enquanto saltitam separados pelos pontos turísticos da cidade, encontrando-se, claro, no topo da Torre Eiffel (Cinderela em Paris/Funny Face, 1957). 
Funny Face
É no subsolo que estão as maiores preciosidades da mostra: peças do figurino usado por Greta Garbo em “Camille” (1936) e por Audrey Hepburn em "Amor na Tarde" (1957), um prato cheio para os fetichistas; fotografias de divulgação das fitas, trechos de roteiros, desenhos de produção de filmes como “An American in Paris” e “Moulin Rouge” (1952). 
Hollywood constrói Paris como a cidade do prazer e da liberdade. Paris vue par Hollywood argumenta que a cidade tornou-se, para a cinematografia norte-americana, o ponto de fuga dos cerceamentos impostos pelo Hays Code. Toda a liberalidade proibida nos filmes que tematizavam os EUA foi transferida para Paris, tornada, neste sentido, retrato enviesado de uma América do Norte ideal. 
The Merry Widow
Artífice que soube construir cabalmente uma Paris americana foi Ernst Lubitsch, que além de “Ninotchka” dirigiu pérolas como “The Love Parade” (1929) e “The Merry Widow” (1934). Nos dois últimos figura Maurice Chevalier, ator francês que, depois de décadas de carreira no vaudeville parisiense, foi escolhido pelo cinema hollywoodiano para personificar o que seria o francês típico: galanteador cujo cinismo caminhava de mãos dadas ao romantismo. Não por acaso, numa de suas últimas criações ele surge como mentor de Louis Jordain noutra típica película de Hollywood sobre Paris: “Gigi” (1958). 
O diretor de "Gigi", Vincente Minnelli, foi outro apaixonado pela cidade. É de sua lavra “An American in Paris”, filme que, segundo a mostra, é a versão mais bem acabada do modo como a “América” viu a cidade. A Hollywood clássica deixou de lado Paris como realidade empírica para se dedicar a uma criação poética da cidade. Representação mais arrematada do intuito é esta obra em que Minnelli e o ator-coreógrafo Gene Kelly reinterpretam a cidade a partir das telas dos artistas que a representaram: Monet, Renoir... A obra prima de Minnelli e Gene sintetiza o esforço americano das primeiras cinco décadas do século: Paris torna-se a tela em que um mundo cor-de-rosa se projeta. 

Audrey em "Funny Face"

"Sabrina" (1954) 
A mostra continua no cinema Le Champo. Só nesta semana veiculam-se lá outros dois filmes com Audrey Hepburn, atriz cuja elegância cedo a identificou à cidade: “Charada” (1964) e “Sabrina” (1954). 
Vi o último, ontem, pela décima vez; a primeira em tela cheia. E ele nunca me pareceu tão bom. Gostava mais da versão de 1994, o filme que mais vi na vida... Talvez porque a versão com Julia Ormond e Harrison Ford reforce a imagem de romantismo da cidade, enquanto que o filme de Wilder a chacoalha. E é isso que acho tão fascinante, agora. 
Sabrina é a jovenzinha sensaborona (bem, nem tanto; falamos de Miss Hepburn...) arrolada, no brilhante roteiro, no quadro de posses da família Larraby: eles tem funcionários pra cuidar da piscina coberta e descoberta, do aquário do peixinho George e dos barcos, bem  como um chofer importado da Inglaterra anos atrás, junto com um Rolls Royce e uma filha. Os medalhões americanos são ridicularizados com tremenda verve neste roteiro que também tem o dedo de Wilder, como não podia deixar de ser. Não só isso: a imagem paradigmática da Paris de Hollywood é questionada. 
Ao contrário do filme de 1994, em que a cidade torna-se locação importante, no filme de Wilder ela aparece em telões, é tipificada no mais alto grau: Sabrina viaja para Paris no intuito de aprender culinária (a sala de aula dá frente para a torre Eiffel, o professor é a caricatura do francês de bigode encerado e biquinho).  Escamoteado está o desejo da moça de esquecer David, o Larraby mais jovem, seu amor platônico desde a infância. Lá ela amadurece, torna-se a mulher cosmopolita que transpira elegância pelos poros – em outras palavras, torna-se Audrey Hepburn. Volta envergando um tailleur, o chapeuzinho da moda e trazendo na coleira o french poodle “David” – metáfora do encoleiramento a que ela submeterá o David real não muito tempo depois. 
No andar da ficção, a máscara da “Paris vista por Hollywood” é esgarçada. A jovem cosmopolita só tem uma casca de maturidade; é manipulada por Linus, o Larraby mais velho, workaholic e anti-romântico. É rejeitada pela família dele e vítima até mesmo do próprio pai. No fundo, Sabrina continua a desajeitada filhinha do chofer que, no início da película, quase bota a casa abaixo ao tentar o suicídio. Novos são apenas seu stupid hat e seu stupid dress, como ela não deixará de constatar. 
É óbvio que no final tudo se ajeita, com o trivial Happy Ending hollywoodiano. Mas o percurso é que é irresistível: com o cinismo de Wilder perpassando tudo, até a escolha do par romântico da jovem atriz – o envelhecido e casmurro Humprey Bogart, que nem embebido pela "La Vie en Rose" mais doce do mundo, entoada por Audrey, consegue que a gente o enxergue por detrás de lentes rosadas... 

Audrey e Humprey no set de gravação
Paris vue Par Hollywood: Hôtel de Ville, 18 set.-15 dez. Entrada gratuita.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

The Audrey Hepburn Treasures


Falei brevemente sobre o livro que dá título ao post quando analisava o excelente "Uma cruz à beira do abismo" (1959), filme que, para o deleite dos fãs de Audrey Hepburn, voltou ao mercado no fim do ano passado por um preço bem acessível. Naquela ocasião, tentei estabelecer um diálogo entre a película e uma carta de Audrey ao esposo, na qual ela discorre sobre detalhes da construção da personagem da irmã Luke. A carta deixou Lorena curiosa sobre o conteúdo do livro, especialmente dos fac-símiles dos documentos da atriz, que não aparecem a versão digitalizada do volume apresentada para visualização no site da Amazon. Hoje cumpro a promessa que fiz à minha amiga de trazer algumas dessas preciosidades para cá.

Na verdade, será um prazer me desincumbir da tarefa. O percurso me permitirá experimentar novamente aquela saborosa sensação de intimidade que tive ao passear pelas páginas do livro pela primeira vez - sensação, aliás, que experimento sempre que mergulho nos arquivos de pessoas e instituições.
The Audrey Hepburn Treasures: pictures and mementos from a life of style and purpose, organizado por Ellen Erwin e Jessica Z. Diamond e prefaciado pelo primogênito de Miss Hepburn, Sean Hepburn Ferrer, redesenha a trajetória da estrela a partir do depoimento de seus amigos e familiares e, especialmente, de seu arquivo pessoal. É certo que os documentos que figuram em cópias fac-similares ou impressos nas páginas do livro são frutos da escolha das organizadoras. No entanto, nem por isso eles deixam de ser um belo panorama da persona pública e privada de Audrey.
Panorama que não raras vezes surpreende pela profundidade, como notará o leitor atento (ou aquele afeito à poeira dos arquivos, como eu).
O divertido é que o texto do livro procura fornecer brevemente ferramentas para que se entenda os documentos, mas não os analisa. Aos curiosos fica a fascinante tarefa de redescobrir a atriz a partir daquilo que ela guardava, de compreendê-la na vida privada que ela procurava manter longe das câmeras mas desnudava para os amigos, de descobrir a mulher por trás da atriz querida e entender como nasceu o mito. Meu percurso daqui em diante será comentar algumas dessas preciosidades.
A que abre o post, datada de 1939, é a frente de um postal de uma Audrey ainda bebê - provavelmente enviado por sua mãe à família da mesma, atesta o livro. A dedicatória não esconde a paixão que Ella sentia pela filhinha de três meses:

Essa é Audrey e ao vivo ela é 1000 vezes melhor e mais graciosa. Eu ando estado na Suíça e agora retorno à França. Audrey está muito bem, forte e gordinha! Com amor, Ella.

Deixei de lado os programas de recitais dos quais a jovem dançarina participou na Holanda antes de o país ser invadido pelas tropas nazistas, o que a obrigou a refugiar-se com a família e a motivou a se juntar às hostes da resistência. A partir de então e até se sentir forte para dançar, Audrey procurava levar alento, através da arte, aos indivíduos perseguidos pelo 3º Reich. A mudança de rumo em sua carreira ocorreu, como conta a atriz, quando a escassez de comida deixou-a com uma anemia profunda que quase a levou à morte. Audrey conhecia bem as marcas deixadas pela guerra e pela fome, daí o papel cabal que exerceu na UNICEF em seus últimos anos de vida.
Porém, vamos seguir a linha cronológica. Conheçamos primeiro a carta de um ardoroso admirador da artista quando ela ainda era corista de espetáculos de vaudeville londrinos - atividade que exerceu até ser descoberta pela escritora francesa Colette e protagonizar da adaptação teatral de seu romance "Gigi".


A correspondência flagra o entusiasmo que a jovem atriz suscitava no público antes de entrar na máquina de Hollywood e passar a fazer parte daquele céu estrelado que tornava os stars inatingíveis e, paradoxalmente, tão próximos dos humildes mortais. O jovem Capitão Roger Marley começa desculpando-se por se dirigir à atriz e lembra-lhe do trágico passado que os une: durante a Conflagração, ele compunha a equipe de paraquedistas que participou da liberação de Arnhem, cidade da Holanda em que Audrey vivia. Com graciosa timidez, o rapaz assume o ethos romântico do qual não raras vezes se embuem os combatentes para afirmar:

Se eu soubesse que você estava lá eu teria lutado até ser morto para lhe tirar de lá, porque, você me dê licença para que eu lhe diga, você é, de longe, a garota mais atraente que eu já vi.
Não se preocupe, eu não sou um "lobo", tenho uma esposa atraente e uma linda criança, mas é fato que, se eu soubesse que você estava em Arnhem naquele dia, eu não estaria vivo para lhe escrever.

Audrey colecionava fãs, embora desempenhasse papéis pequenos nas comédias musicadas das quais participava - como atestam as páginas do programa de "Petit Sauce Tartare" (1949), espetáculo do elegante nightclub londrino Ciro's Club em que ela apenas figura com destaque num dos números e sua foto é impressa no pé da página.



As portas para o sucesso internacional foram apenas abertas para a artista quando ela desempenhava um pequeno papel no filme "Monte Carlo Baby" (1951), rodado em inglês e francês. Não devido ao papel mas porque, nas areias da praia francesa, a jovem esbarrou em Colette, que naquela época estava em busca de protagonista para seu romance recentemente transformado em peça teatral. A dedicatória da escritora à atriz - impressa numa das páginas de The Audrey Hepburn Treasures - ressalta seu olho clínico: "Para Audrey Hepburn, tesouro que encontrei numa praia! Colette". Nem mesmo a jovem tinha, naquele momento, tanta confiança em si. O livro lembra que, convidada pela escritora para desempenhar a sapeca Gigi, ela teria respondido: "Sinto muito, madame, mas é impossível. Eu não poderia, pois não sei atuar."
No mesmo ano de 1951, em novembro, a Gigi de Audrey Hepburn enlouquecia a crítica da Filadélfia. A peça estreou na Broadway no final de novembro e ficou em cartaz até 31 de maio de 1952. Abaixo, páginas do programa da peça. E, um detalhe: "Gigi" ganhou os palcos na forma de comédia, portanto, sem as canções de Alan Jay Lerner e Frederick Loewe que cooperaram para que a maravilhosa adaptação cinematográfica dirigida por Vincent Minnelli arrebatasse 9 Oscars em 1959.

Tendo começado a carreira artística como dançarina e cantora, Audrey conquistou seu lugar ao sol como atriz, que sem dúvida era o que ela sabia fazer melhor. A maquinaria de Hollywood funcionou, como era costumeiro, para a divulgação de sua imagem - com as notícias eufóricas que surgiam a seu respeito enquanto ela estava na Itália rodando, com Gregory Peck, seu debut no cinema norte-americano e o filme que lhe daria o Prêmio de Melhor Atriz da Academia. Mesmo assim, é inegável que Audrey rouba a cena em "A Princesa e o Plebeu" ("Roman Holiday", 1953), o que motiva seu galã a conceder à atriz iniciante a honra de ela figurar ao seu lado acima do título do filme. Peck afirma ter feito isso para seu próprio bem, já que sabia que a atriz "ganharia o Oscar em seu primeiro papel". A Academia pode ser imprevisível e inegavelmente é muitas vezes injusta, porém, é bonito ver o nascimento de uma estrela consagrado desse modo. Audrey guardou sua via do recibo do recebimento da estatueta, que a comprometia a mantê-la em sua posse - se quisesse vendê-la, apenas poderia fazê-lo à Academia, recebendo por ela a soma de $ 10,00...

Até aqui, é visível (se o leitor ainda não se cansou e me abandonou no meio do caminho) que a atriz era uma religiosa guardadora de recordações. Identifico-me com esse ímpeto de arquivar a vida em pastas e mais pastas - e, ao relê-la, me redescobrir entre os pedaços de passado que resolvi eternizar. Há, em meio aos documentos selecionados pelas organizadoras do volume, um cartão postal (de 1959) em que Audrey dedica à família uma Feliz Páscoa em nome dela, do marido e do amado cãozinho que ilustra o cartão, Famous - presente de Mel Ferrer que por um tempo ocupou o espaço do filho que Audrey tentava ter. Há também o anúncio de nascimento de Sean, momento em que a "Miss Audrey Hepburn" da galáxia hollywoodiana dá lugar à mãe de família "Mrs. Melchor G. Ferrer" - papel que ela desempenhou com deleite, daí as lindas fotografias dela com o filho impressas no volume.




De volta a Hollywood, Audrey atuou, em 1961 e 1964, em duas de suas mais notórias películas, "Bonequinha de Luxo" ("Breakfast at Tiffany") e "My fair lady". De ambas as produções, Audrey nos guardou recordações interessantes. Das páginas datilografadas de uma das mais melancólicas - e difíceis - cenas da "Bonequinha...", apreendemos detalhes do métier de atriz: palavras grifadas do roteiro lembram-nos daquela inconfundível musicalidade de sua voz, sobre a qual me referi ao falar sobre "Uma cruz à beira do abismo"; e uma das réplicas de Holly a Paul (a penúltima réplica constante na página amarela do roteiro) foi transcrita literalmente por Audrey no verso do roteiro - estratégia comum de memorização.




Há uma porção de fac-símiles relativos À "Bonequinha de luxo", incluindo uma carta de Truman Capote (autor do romance do qual originou-se a versão cinematográfica) à atriz, mas vou fazer suspense até que tenha condições de escrever um post exclusivamente sobre esse filme, que amo desde muito tempo.
Relativo a "My fair lady" há um ticket da premiére mundial do filme, que teve lugar no Criterion Theatre de Nova Iorque em 21 de outubro de 1964. O preço salgado do assento, $ 150,00, seria revertido a um hospital e centro de pesquisa do Estado.

todavia, os dois documentos que mais me atraem relativos ao filme são, o primeiro, a carta de Katharine Hepburn e Spencer Tracy à Audrey e George Cukor (diretor da obra e amigo de longa data de Kate, a quem dirigiu em produções memoráveis como "Núpcias de Escândalo" e "A Costela de Adão"), congratulando-lhes pelo sucesso da película. Katharine, numa letra tão impossível quanto a de Audrey e bastante semelhante à dela (o parentesco entre ambas que seus sobrenomes podem indicar não se sustenta de fato) lhe diz algo como: "You two certanly hit the nail on the head. (...) You scared all your friends to death. A million congratulations. It's a real triumph."

E, por fim, um cartão do "Pygmalion", "Grande Magazine de Novidades" situado no Bd. Sébastopol, em Paris - cartão que, de acordo com o livro, foi usado pela atriz como marcador de página do roteiro de "My fair lady". Adoro conhecer as pequenas inspirações responsáveis pela criação dos grandes papéis. Aliás, lembram-se do post em que ensaiei uma trajetória do Pigmalião da antiguidade até o Professor Higgins ao qual Rex Harrison deu vida na versão cômico-musicada e, depois, cinematográfica de "My fair lady"?


E agora, para encerrar, dois registros da Audrey madura, tão bela por dentro quanto por fora. A primeira, um postal de Hupert Givenchy (de aprox. 1984) - estilista responsável por transformar a Holly Golightly e sua criadora em epítomes de beleza. Aqui ambos estão atentos um ao outro, sem badalação, em meio ao inverno parisiense que joga neblina nos monumentos históricos da cidade. A dedicatória afetuosa sublinha a amizade que os unia:

Minha Audrey.
Estou muito feliz de estar perto de você nesta noite de domingo.
Sempre com amor.
Hupert.


E, por fim, uma obra de arte (de 1988) que revela outra faceta de Audrey - a desenhista - retratando uma das imagens que mais a chocaram em suas peregrinações como Embaixadora de Boa Vontade da UNICEF: o sofrimento de uma mãe etíope vendo o filho sucumbir à fome. O original foi leiloado e a verba, revertida na compra de animais para o transporte de vacinas às crianças que habitavam regiões remotas e inacessíveis, afirma The Audrey Hepburn Treasures.

E agora, preciso parar, pois estou sendo quase que impedida de respirar por aquela familiar nostalgia dos velhos tempos: tempos em que tela do cinema projetava sombras mais reais que a própria vida, sombras que encontravam eco em figuras grandiosas de carne e osso. Ah, Audrey, quando nascerá outra estrela como você?