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domingo, 16 de março de 2014

Cacilda Becker vive

Linhas soltas desenham o tema. Estou enrolada. Nos momentos de gastura, o blog sempre acaba sobrando... Restam poucos minutos, que serão gastos alinhavando meus últimos achados sobre Cacilda – também eles construídos no susto. 
O post anterior sobre a atriz esteve longe de fazer sucesso no blog. Fez, no entanto, incomensurável sucesso dentro de mim. Tanto que fiz a volta à web em busca de alguém que tivesse aquele tal “A luz dos meus olhos” (achei). E comprei, assim de rompante, ingresso para ver em Sampa uma “Cacilda” do Teatro Oficina (experiência memorável). 
O dono de “Luz de meus olhos” (obra da Atlântida de 1947, como já anunciei) é José Carlos Neves, dono de um acervo de cinematografia e televisão brasileira e estrangeira extremamente bem fornido. Recomendo que os leitores em busca de alguma raridade o procurem e solicitem a relação de seus DVDs. A mim ele atendeu com presteza. Encontrei consigo, além do filme, um esclarecedor documentário sobre a atriz (da série “A Aventura do Teatro Paulista”, déc. de 1980). 
O filme, como eu já havia anunciado amparada em Domingos Demasi, é uma chanchada-dramalhão. Obra de pouco mais de uma hora, com um aparente lapso de alguns minutos no meio (a qualidade da imagem é razoável), subaproveita a atriz. A trama se centra em Celso Guimarães e Grande Otelo, o músico cego e o rapaz que lhe serve de guia. Cacilda povoa a trama como imagem fantasmática; a musa inspiradora do artista, a quem ele conheceu enquanto estudante, na escola de música. 
O flerte progride para um romance contado em flashback (e algo posado...), que degringola tão logo o rapaz descobre a doença dos olhos. Ele a abandona temendo que ela apenas fique consigo por piedade (the good old melodrama...). Reencontra-a por acaso, enquanto afina o piano da casa dela. A jovem reconhece a música que ele toca, já que foi para si que ele a compusera; desce as escadas ao seu encontro com o garbo de... de Garbo..., de Stanwyck, de Hepburn, daquelas damas a quem a lenda juntou-se ao nome e a gente só consegue enxergar encoberta pela névoa da divindade. Ela encobre os olhos – cegos – do amado (oh, sofrimento!). Por certo que ele descobre quem é. A surpresa quem experimenta é ela, quando descobre a verdade pelos olhos do – ótimo – Grande Otelo. 
Aliás, que grande é Grande Otelo! A figura mais visionária dessa cena convencional; a dizer suas falas com uma fluidez que destoa do todo, talvez porque ele fora formado pelo teatro popular. Figura paradoxal. O nome é uma homenagem ao eterno mouro de Shakespeare? A grandeza da alcunha – que devia por a rir o público da época, justifica-se de sobra pelo gênio do artista. 
Mas divago. Voltemos à Cacilda, nossa sofrida heroína (que fatalidade a fez cair nas malhas de tal trama, oh, céus?). A pobre menina rica tem um noivo. O antigo namorado, ainda inseguro com sua atual condição, foge de suas vistas, abandona o emprego e o guia para que ela nunca mais o encontre. Grande Otelo engatará um trabalho no teatro de revista, para onde leva a canção que dá título à obra. A essa altura, o noivo da moça, de uma abnegação ímpar, deixa-a e procura juntar o casal apaixonado (minha descrição talvez faça parecer que há um tratamento matizado nos caracteres; quando, na verdade, o que existe é uma inanição geral da trama). 
A música é apresentada para uma Cacilda – digo, uma Suzana – sentada na primeira fila. O mocinho chega em cima da hora – ele era desde sempre contra a conspurcação de sua obra numa cena de teatro (...). E ambos acabam por se unir naquela cena final que vende a pipoca, que paga os artistas, que sustenta o cinema (William Holden + Audrey Hepburn em “Quando Paris Alucina”, lembram?) = o beijo. Con-ven-cio-na-líssimo, mas pelo menos temos alguns pés mais de imagens de Cacilda Becker. 



Pano para a transcriação contemporânea da nossa diva. Em cena, o Teatro Oficina apresenta “Cacilda!!!” (as exclamações fazem juz à obra) – terceira parte da quatrilogia saída da fértil imaginação de Zé Celso Martinez Corrêa, lépido de corpo e alma, a negar em todas as 6 (seis) horas de espetáculo os seus setenta anos passados. A quem não conhece a troupe do Zé Celso, recomendo uma visita ao prédio do Oficina. O lugar é emblemático. Espremido pelas construções que cresceram com a especulação imobiliária, abre-se à negação do jogo do capitalismo em prol do jogo dramático. 
Daí as 6 horas de duração do espetáculo – ruptura com um suposto bom senso contemporâneo que pede arte em homeopáticas doses de um par de horas, a serem encaixadas entre os afazeres do dia-a-dia. Experimenta-se, ali, uma relação sui generis com a cena teatral. Rompe-se a quarta-parede (ok, isso já é comum); o palco vira passarela carnavalesca (apoteoses constantes); feito de andaimes, é espaço em eterna construção; o público participa da encenação, compartilhando empiricamente da vida e da morte de Cacilda, já que a vive ali entre a plateia/palco, espaços cujos limites se embaralham. 
“Cacilda!!!” divide-se entre a fundação do TBC e os embates de 1968 (dos artistas de teatro pela queda da censura e proteção ao métier). Começa no plano superior, onde a artista encontra-se com seu Walmor (que coisas tão belas disse dela no documentário do acervo de José Carlos). Ali ele decide se matar para viver junto dela uma nova vida de palco. Cleyde também surge, fiel escudeira da irmã também na vida da morte. 
Alude-se à eternidade da arte, assim como a segunda parte lê os protestos de 2013 no espelho de 1968. Força-se a relação, talvez, mas ao mesmo tempo se acena para beleza do homem combativo. O saldo é o renascimento de Cacilda, multiplicada em cena em “Pegas fogos” mil, na Carmen do Abílio Pereira de Almeida, no mendigo que espera infinitamente Godot, em tantas outras personagens, em cada um de nós que a ajuda a vivê-la naquela noite. No galpão do Oficina, Cacilda vive. 
E então, ecoa uma canção. Conheço-a de algum lugar. Fico sabendo que José Miguel Wisnik a compôs para “Cacilda!”, a primeira Cacilda do Oficina. Ouvi-a infinitas vezes na voz de Maria Bethânia, naquele glorioso “Diamante Verdadeiro”, álbum em que ela canta poesias e declama canções. “Com que lábios te beijei/ lábios de amor, lábios de atriz”. Arte e vida amalgamadas. Vou para casa cantando-a, e Cacilda vive em mim.


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As fotos que ilustram o texto são de minha autoria, tiradas durante a peça (com autorização da equipe).
O prometido contato de José Carlos Neves é o que segue: magobardo@yahoo.com 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Cacilda Becker em fita

Cacilda Becker (1921-1969)
Passei toda essa semana com uma tremenda vontade de escrever sobre Cacilda Becker. Mas, o que dizer dela? Meu conhecimento da brilhante e fugidia atriz me faz esbarrar num dos (inúmeros) gaps de minha formação; leva-me a revisitar minhas escolhas acadêmicas. Se tivesse começado o doutorado um ano mais cedo, eu certamente a tornaria meu objeto de estudo. Enquanto escrevo, folheio as páginas do Teatro Cacilda Becker, de Inez Barros de Almeida, caminho pela história ilustrada das Chanchadas e dramalhões, do Domingos Demasi - livros que eu trouxe de uma viagem ao Rio lá pelos idos de 2008, quando ainda perseguia o intento de estudá-la. Despedi-me da ideia antes de qualquer mergulho aprofundado na obra da artista da qual, parecia-me, já se falava tanto. 
com Paulo Autran em Antígona
Virada esta página, procurei um objeto mais “tangível” sobre o que me debruçar, já àquela altura frustrada com a experiência errática de reconstruir montagens teatrais a partir do que era dito delas, no preto e branco da imprensa. Resolvida a pendência psicológica, reencontrei Cacilda em película, no que suponho serem suas duas únicas produções completas que chegaram aos nossos dias: o filme Floradas na Serra (1954) e o teleteatro Inês de Castro (1968). Descobri-a, finalmente.  
em Esperando Godot
As duas obras estão longe de ser o que de mais significativo ela realizou. Cacilda Becker levou à cena Antígona (Sófocles), A Dama das camélias (Dumas Filho), Seis personagens à procura de um autor (Pirandello). Sofreu o derrame que a levaria à morte vestida de Beckett, durante uma sessão de Esperando Godot, coup de théâtre insólito do acaso. Drummond diria: “A morte emendou a gramática./Morreram Cacilda Becker./Não era uma só. Era tantas.” A variedade de sua obra, as “mil Cacildas em Cacilda” das quais fala o poeta, infelizmente nunca teremos a chance de conhecer. Aos infortunados resta o muito que foi dito dela, pelas velhas gerações que a viram em cena (e pelas novas, que lhes reproduzem os julgamentos críticos) e a transformaram num mito de largueza quiçá maior à que ela teria caso não tivesse dado objetivamente corpo às personagens trágicas que encenava, desaparecendo tão cedo... 
Dama das Camélias (Teatro Municipal, 1951)
Não tento aqui, obviamente, diminuí-la. Morta Cacilda, resta-nos sua presença fantasmática: incorruptível, luzidia, tão moderna. O cerne da carreira da atriz aconteceu na ribalta, cujo fascínio constrói-se na raridade do registro, na presença empírica do artista, na singularidade do ato. Sua multiplicação na cena dos anos 40-60 converteu-se, ao público de hoje, em apenas duas obras, nas quais se encontra surpreendente encanto, não obstante Floradas na Serra se trate de um “dramalhão deliquescente” (na definição bem-humorada de Domingos Demasi), e Inês de Castro, de um teleteatro datado. Mas, porque nunca conheceremos Cacilda Becker, este nada é muito. 
As obras flagram as passagens bissextas da atriz pelo cinema e tevê. Floradas na Serra, último filme da paulistana Vera Cruz, é o segundo e último de Cacilda, o único como protagonista (em 1947 ela havia composto o elenco do melodrama da Atlântida A luz dos meus olhos, aparentemente perdido). Já Inês de Castro testemunha sua passagem pela Rede Bandeirantes, para a qual, pelo espaço de um ano, sua companhia realizou duas dezenas de teleteatros – gênero de sucesso, anterior à telenovela. Trechos desses espetáculos estão disponíveis no YouTube. A maioria perdeu-se, seja porque não tenha sido gravada em fita (teleteatros costumavam ser apresentados ao vivo), seja porque as fitas foram reaproveitadas em gravações futuras (o certo é que tenho comigo o registro de Inês de Castro, gravado por um amigo, mas cuja procedência primeira ignoro). 
Floradas na Serra narra a história da jovem tuberculosa que morre de amor, na estância idílica de Campos do Jordão onde ela se internara para se tratar. É drama romântico stricto sensu, daqueles vividos ou cantados desde os tempos de Casimiro de Abreu e Álvares de Azevedo. Não é, portanto, do mote que tiraremos o interesse da história. Certamente tampouco de sua medíocre banda sonora, que não raro nos obriga à leitura labial (as distribuidoras que recuperam a história do cinema brasileiro prestariam um inestimável serviço se legendassem o que lançam). Visualmente, o resultado chega perto da cinematografia estrangeira – ideal de Alberto Cavalcanti quando ele deu o pontapé inicial da Vera Cruz. Porém, é sobretudo por Cacilda Becker que o filme vale. 
Floradas na Serra (fotograma)
É vê-la em cena para que comecemos a dar corpo às palavras de Décio de Almeida Prado, ao descrevê-la nos pequenos palcos paulistanos. A exiguidade dos espaços permitia-lhe baixar a voz ao sussurro e se fazer vista por todos. O público experimentava “com clareza exemplar o desenho psicológico da cena, a linha evolutiva da situação dramática”. Para Décio, Cacilda atinge o cume de uma linha evolutiva de atuação que tem início com Procópio Ferreira. Com ela – e, mais amplamente, com o TBC – floresce um gênero de atuação que busca construir a personagem a partir do cerne, paulatinamente, dotando-lhe de individualidade. Rótulos estanques de “cômico” e “dramático” caem por terra, os tipos tornam-se homens. A contenção, palavra chave dessa vertente interpretativa, encontra no cinema campo propício de florescimento. 
Floradas na Serra (fotograma)
A proximidade da câmera faz as vezes da pequena sala de teatro. Cacilda é Lucília, dama da alta roda cuja vida de excessos é abandonada em detrimento d’outra que se revelará muito mais mortal. No sanatório, a convalescente encontrará Bruno (Jardel Filho, depois galã da teledramaturgia nacional): pobre, frágil, sedutor, apaixonado. Cedo o tomará aos seus cuidados, despencando de cabeça no torvelinho romântico. Sob a atenção da mulher que o ama, Bruno torna-se forte. Os ponteiros se invertem: Lucília, moída de desgostos, verá a saúde degringolar. 
Floradas na Serra (fotograma)
Passem o enredo mesquinho. É precioso vê-la em cena, carregada nos braços de uma heroína romântica que nada deve à Marguerite Gautier de Garbo (1936). No cinema, Cacilda Becker é a nossa Greta Garbo. Esbelta, pálida e angulosa; a esvair-se devagar, junto da personagem que encorpa, depois de atingir as culminâncias da alegria e do desespero. A uma entrega análoga ela submete sua Inês de Castro, não obstante a maior artificialidade deste registro, a meio caminho do teatro e da televisão, num tempo em que este medium ainda engatinhava. Se não tivesse morrido, quanto ela não haveria de ter feito pela tevê e pelo cinema, quanto mais não faria pelo teatro? Aceitemos, todavia, o libreto truncado escrito pelo acaso. Cantemos Cacilda Becker como a temos, a partir da incompletude: pela multiplicidade de personagens que apenas poderemos acessar por essas duas, as quais, embora as anunciem, parcamente a representam.
Inês de Castro (fotogramas)

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Cacilda Becker - acima e além:

- Cacilda Becker na Enciclopédia Itaú Cultural de Teatro: http://goo.gl/ud8I7b
- Carlos Drummond de Andrade. Atriz
- Décio de Almeida Prado. Peças, pessoas, personagens: o teatro brasileiro de Procópio Ferreira a Cacilda Becker. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
- Domingos Demasi. Chanchadas e Dramalhões. Rio de Janeiro: Funarte, 2002.
- Floradas na Serra (1954). Dirigido por Luciano Salce, a partir do romance de Dinah Silveira de Queiroz. Com Cacilda Becker, Jardel Filho, Ilka Soares, Silva Fernanda, Gilda Nery.
- Inês de Castro (1968). Produzida pelo Teatro Cacilda Becker, em conjunto com a Bandeirantes. Diretor assistente: Ody Fraga, texto de Henry de Montherlant. Com Cacilda Becker, Mauro Mendonça, Homero Kossak, Jairo Arco e Flexa, Martha Gheiss.
- Inez Barros de Almeida. Teatro Cacilda Becker. Rio de Janeiro: Inacen, 1987.