A proximidade afetiva, o companheirismo e a identidade espiritual precisam às vezes – hélas –, conviver com o distanciamento físico. Filme que apanha modelarmente uma relação do tipo é “84 Charing Cross Road”, ou, entre nós, brasileiros, “Nunca te vi, sempre te amei”, de David Hugh Jones, sobre o qual aqui falo a partir de agora.
A obra ficcionaliza sobre um fato real: a troca de correspondência ocorrida entre fins da década de 1940 e fins da década de 1960, entre a nova-iorquina Helene Hanff e o londrino Frank P. Doel, co-proprietário da Marks & Co., “antiquário de livros” da cidade.
A obra ficcionaliza sobre um fato real: a troca de correspondência ocorrida entre fins da década de 1940 e fins da década de 1960, entre a nova-iorquina Helene Hanff e o londrino Frank P. Doel, co-proprietário da Marks & Co., “antiquário de livros” da cidade.
84 Charing Cross Road, 1969. |
Malgrado um mundo de avanço tecnológico pareça separar tais correspondentes de nosso atual contexto, certas coisas permanecem iguais. A devoção passional às letras como forma de aproximar pessoas com traços característicos muitas vezes dessemelhantes, situadas a um oceano de distância, remonta ao menos ao século XIX: daí às muitas correspondências trocadas entre o Brasil e a Europa, por letrados que habitavam os dois extremos, muitas vezes mantidas na esfera particular, outras tantas publicizadas em volumes ou nas páginas de jornais.
O romance de Helene Hanff flagra esta dobra do tempo, da correspondência pessoal cuidadosamente burilada ao e-mail despojado; da morosidade do correio transatlântico à instantaneidade das mensagens virtuais.
O filme tem um sopro nostálgico não apenas porque remete à desolação restante do pós-guerra, e à reconstrução maior ou menor das nações que a enfrentaram, mas porque pressente os câmbios que viriam a ocorrer não muitos anos mais tarde ao tempo histórico de seu lançamento: o computador, já então uma novidade nos anos de 1970, data da escrita da obra literária, é uma realidade cada vez mais presente quando o filme é lançado. Não muito mais tarde, a “World wide web” já estaria vulgarizada, não apenas apressando as trocas interpessoais como criando ferramentas como os grandes e impessoais antiquários/sebos virtuais, os quais acabariam por inviabilizar o nascimento de uma relação como a de Helene e Frank.
Um flashback dá-nos conta das indagações vãs feitas por Helene num passado distante, nas livrarias nova-iorquinas, no intuito de encontrar edições de obras inglesas fora de catálogo, e de seu consequente contato com a Marks & Co., sob a sugestão de um livreiro da cidade. A sua chegada física a Londres, seguida da ida ao já familiar 84 Charing Cross Road, onde se situa a tal loja, desdobra-se em melancolia frente ao abandono em que se encontrava o local – às estantes despidas dos livros que a conectaram com o país longínquo.
Um belo prólogo que prepara o espírito do público para uma possível história de amor, levando-o a antegozar a possível chegada de Frank (Anthony Hopkins), no desfecho da obra, entre os escombros da livraria, à la “Aconteceu naquela noite”.
No entanto, no terço final da obra, e do modo menos altissonante possível, ficamos sabendo que o encontro seria impossível: certa carta dá à mulher a notícia do falecimento recente de Frank. O esqueleto da livraria torna-se, portanto, não ponto de encontro, mas túmulo, repositório derradeiro de uma história de caráter pessoal e de uma era. Sua visita, que na visada de Helene se deve à resolução de “negócios inacabados”, corresponde ao encontro derradeiro com os corpos defuntos no intuito de, a partir de sua materialidade, vivenciar-se o seu luto.
Malgrado a melancolia de fundo, a história é bafejada por uma aragem leve. Trata-se, para além de uma história de amor – no sentido lato –, de um romance de formação conduzido com habilidade, cuja protagonista é Helene.
Observa-se, neste sentido, a dicotomia entre o amadurecimento paulatino físico e intelectual da mulher, par a par com a sua ascensão profissional, desenhados pela obra, e as permanências vividas por Frank, constantemente entre a livraria e a casa da família. Dicotomia refletida sob os panos de fundo onde ambas as personagens circulam, o vicejante Upper West Side da Nova York dos anos de 1940-1960, cidade que apenas indiretamente sentiu os efeitos da Guerra (embora a fotografia assinada e emoldurada de um oficial, no apartamento de Helene, denote que ela sentira na pele os efeitos da conflagração), pintado por uma paleta saturada de cores; e a Londres do pós-guerra, a enfrentar severos racionamentos de gêneros alimentícios e vestuários – a Londres cujo principal bem era o espírito, conforme Helene de saída percebera – desenhada em tons terrosos.
Observa-se, neste sentido, a dicotomia entre o amadurecimento paulatino físico e intelectual da mulher, par a par com a sua ascensão profissional, desenhados pela obra, e as permanências vividas por Frank, constantemente entre a livraria e a casa da família. Dicotomia refletida sob os panos de fundo onde ambas as personagens circulam, o vicejante Upper West Side da Nova York dos anos de 1940-1960, cidade que apenas indiretamente sentiu os efeitos da Guerra (embora a fotografia assinada e emoldurada de um oficial, no apartamento de Helene, denote que ela sentira na pele os efeitos da conflagração), pintado por uma paleta saturada de cores; e a Londres do pós-guerra, a enfrentar severos racionamentos de gêneros alimentícios e vestuários – a Londres cujo principal bem era o espírito, conforme Helene de saída percebera – desenhada em tons terrosos.
O distanciamento físico é coberto pela proximidade afetiva que emerge das cartas – visível no programa de rádio da BBC dedicado à obra, no qual as cartas ocupam um indiscutível primeiro plano (um excerto pode ser escutado aqui), o suporte radiofônico dando relevo ao caráter confessional do gênero; e é potencializado pela materialidade do cinema, pelo seu poder de sintetizar o tempo e o espaço, aproximando, na tela, os indivíduos afastados por milhares de milhas.
A obra fílmica lida com questões intrincadas com tocante leveza. Vejo que o seu diretor visitou de passagem o cinema, concentrando-se na televisão. Certas estratégias fílmicas, como o direcionamento constante dos atores à câmera e ao espectador – modernas até hoje no tocante à cinematografia, por romperem com a ilusão fílmica –, são características incontornáveis de variados gêneros televisivos desde a sua gênese.
A obra fílmica lida com questões intrincadas com tocante leveza. Vejo que o seu diretor visitou de passagem o cinema, concentrando-se na televisão. Certas estratégias fílmicas, como o direcionamento constante dos atores à câmera e ao espectador – modernas até hoje no tocante à cinematografia, por romperem com a ilusão fílmica –, são características incontornáveis de variados gêneros televisivos desde a sua gênese.
Essas quebras de ilusão impedem que o filme descambe ao dramalhão ou torne-se um drama irrespirável. Os solitários últimos momentos de vida de certo velho funcionário da Marks & Co., as latas de conserva, presentes de Helene, recebidas com emoção pelos funcionários da loja que há tempos não viam certos alimentos, a impassibilidade esboçada pelo rosto de Frank frente aos dissabores da vida servem de planos de fundo às trocas espirituais entre os dois amigos que o Atlântico separava – primeiro plano absoluto da obra. A arte serve de ancoradouro frente ao mundo que se esboroa: organizando-o, fazendo emergir os seus amargores e doçuras, apontando, através da sua materialidade, para caminhos que o torvelinho da realidade torna invisíveis.
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