quarta-feira, 19 de junho de 2019

84 Charing Cross Road/ Nunca te vi, sempre te amei (1987): amor às letras entre os Atlânticos


A proximidade afetiva, o companheirismo e a identidade espiritual precisam às vezes – hélas –, conviver com o distanciamento físico. Filme que apanha modelarmente uma relação do tipo é “84 Charing Cross Road”, ou, entre nós, brasileiros, “Nunca te vi, sempre te amei”, de David Hugh Jones, sobre o qual aqui falo a partir de agora. 
A obra ficcionaliza sobre um fato real: a troca de correspondência ocorrida entre fins da década de 1940 e fins da década de 1960, entre a nova-iorquina Helene Hanff e o londrino Frank P. Doel, co-proprietário da Marks & Co., “antiquário de livros” da cidade. 
84 Charing Cross Road, 1969.
A Helene Hanff histórica deu-se conta do traço romanesco da relação, publicando a este respeito, em 1970, a obra homônima que seria, em 1975, transformada em episódio da série radiofônica “Play for Today”, da BBC, tornando-se, por consequência, obra teatral exibida na Nova Iorque de princípios dos anos 80 e, enfim, obra fílmica. 
Malgrado um mundo de avanço tecnológico pareça separar tais correspondentes de nosso atual contexto, certas coisas permanecem iguais. A devoção passional às letras como forma de aproximar pessoas com traços característicos muitas vezes dessemelhantes, situadas a um oceano de distância, remonta ao menos ao século XIX: daí às muitas correspondências trocadas entre o Brasil e a Europa, por letrados que habitavam os dois extremos, muitas vezes mantidas na esfera particular, outras tantas publicizadas em volumes ou nas páginas de jornais. 
O romance de Helene Hanff flagra esta dobra do tempo, da correspondência pessoal cuidadosamente burilada ao e-mail despojado; da morosidade do correio transatlântico à instantaneidade das mensagens virtuais. 
O filme tem um sopro nostálgico não apenas porque remete à desolação restante do pós-guerra, e à reconstrução maior ou menor das nações que a enfrentaram, mas porque pressente os câmbios que viriam a ocorrer não muitos anos mais tarde ao tempo histórico de seu lançamento: o computador, já então uma novidade nos anos de 1970, data da escrita da obra literária, é uma realidade cada vez mais presente quando o filme é lançado. Não muito mais tarde, a “World wide web” já estaria vulgarizada, não apenas apressando as trocas interpessoais como criando ferramentas como os grandes e impessoais antiquários/sebos virtuais, os quais acabariam por inviabilizar o nascimento de uma relação como a de Helene e Frank. 
A obra fílmica recupera textualmente trechos do romance – o qual, por sua vez, cita, sabe-se lá com que grau de acuidade (falamos aqui de apropriação da realidade pela arte), as cartas trocadas entre o casal – mais tarde, entre Helene e todos os funcionários da loja, com os quais ela estabelecerá uma relação de crescente pessoalidade. Abre-se com um plano de Helene (Anne Bancroft) chegando a Londres, sua comoção desde a viagem aérea à circulação de táxi pelas ruas da cidade, a chegada ao hotel ecoada em off por excerto da primeira carta enviada à Marc & Co, tendo agora sob os pés a Londres que até então ela conhecera em letra de forma: “Seu anúncio na Saturday Review of Literatura diz que vocês são especializados em obras fora de catálogo. (...)”. 
Um flashback dá-nos conta das indagações vãs feitas por Helene num passado distante, nas livrarias nova-iorquinas, no intuito de encontrar edições de obras inglesas fora de catálogo, e de seu consequente contato com a Marks & Co., sob a sugestão de um livreiro da cidade. A sua chegada física a Londres, seguida da ida ao já familiar 84 Charing Cross Road, onde se situa a tal loja, desdobra-se em melancolia frente ao abandono em que se encontrava o local – às estantes despidas dos livros que a conectaram com o país longínquo. 
Um belo prólogo que prepara o espírito do público para uma possível história de amor, levando-o a antegozar a possível chegada de Frank (Anthony Hopkins), no desfecho da obra, entre os escombros da livraria, à la “Aconteceu naquela noite”. 
No entanto, no terço final da obra, e do modo menos altissonante possível, ficamos sabendo que o encontro seria impossível: certa carta dá à mulher a notícia do falecimento recente de Frank. O esqueleto da livraria torna-se, portanto, não ponto de encontro, mas túmulo, repositório derradeiro de uma história de caráter pessoal e de uma era. Sua visita, que na visada de Helene se deve à resolução de “negócios inacabados”, corresponde ao encontro derradeiro com os corpos defuntos no intuito de, a partir de sua materialidade, vivenciar-se o seu luto. 
Malgrado a melancolia de fundo, a história é bafejada por uma aragem leve. Trata-se, para além de uma história de amor – no sentido lato –, de um romance de formação conduzido com habilidade, cuja protagonista é Helene. 
Observa-se, neste sentido, a dicotomia entre o amadurecimento paulatino físico e intelectual da mulher, par a par com a sua ascensão profissional, desenhados pela obra, e as permanências vividas por Frank, constantemente entre a livraria e a casa da família. Dicotomia refletida sob os panos de fundo onde ambas as personagens circulam, o vicejante Upper West Side da Nova York dos anos de 1940-1960, cidade que apenas indiretamente sentiu os efeitos da Guerra (embora a fotografia assinada e emoldurada de um oficial, no apartamento de Helene, denote que ela sentira na pele os efeitos da conflagração), pintado por uma paleta saturada de cores; e a Londres do pós-guerra, a enfrentar severos racionamentos de gêneros alimentícios e vestuários – a Londres cujo principal bem era o espírito, conforme Helene de saída percebera – desenhada em tons terrosos. 
O distanciamento físico é coberto pela proximidade afetiva que emerge das cartas – visível no programa de rádio da BBC dedicado à obra, no qual as cartas ocupam um indiscutível primeiro plano (um excerto pode ser escutado aqui), o suporte radiofônico dando relevo ao caráter confessional do gênero; e é potencializado pela materialidade do cinema, pelo seu poder de sintetizar o tempo e o espaço, aproximando, na tela, os indivíduos afastados por milhares de milhas. 
A obra fílmica lida com questões intrincadas com tocante leveza. Vejo que o seu diretor visitou de passagem o cinema, concentrando-se na televisão. Certas estratégias fílmicas, como o direcionamento constante dos atores à câmera e ao espectador – modernas até hoje no tocante à cinematografia, por romperem com a ilusão fílmica –, são características incontornáveis de variados gêneros televisivos desde a sua gênese. 
Essas quebras de ilusão impedem que o filme descambe ao dramalhão ou torne-se um drama irrespirável. Os solitários últimos momentos de vida de certo velho funcionário da Marks & Co., as latas de conserva, presentes de Helene, recebidas com emoção pelos funcionários da loja que há tempos não viam certos alimentos, a impassibilidade esboçada pelo rosto de Frank frente aos dissabores da vida servem de planos de fundo às trocas espirituais entre os dois amigos que o Atlântico separava – primeiro plano absoluto da obra. A arte serve de ancoradouro frente ao mundo que se esboroa: organizando-o, fazendo emergir os seus amargores e doçuras, apontando, através da sua materialidade, para caminhos que o torvelinho da realidade torna invisíveis.

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