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domingo, 13 de maio de 2012

Henry James e William Wyler: de “Washington Square” a “The Heiress”


Em 1880, o romancista nova-iorquino Henry James publicou o romance Washington Square aos pedaços na “Cornhill Magazine” e na Harper’s New Monthly Magazine”. Naquele mesmo ano, a Harpers & Brothers lançou a totalidade da obra num daqueles volumes de capa dura e letras douradas que caíam como uma luva na decoração das bibliotecas das elites. Em 1949, estreou “The Heiress” (Tarde Demais), tratamento cinematográfico do livro de James dirigido por William Wyler e roteirizado por Ruth Goetz e Augustus Goetz. 
O livro e o filme são ambos de altíssimo nível. O livro, porque Henry James injeta no gênero um frescor e um veneno saborosos. Figura central do realismo literário, James não doura a pílula ao apresentar a alta sociedade americana dos estertores do século XIX. Sua “heroína” mal pode ser caracterizada como tal. É moça simplória, rica em altruísmo mas pobre de encantos, como o pai não esquece de lembrá-la cada vez que a vê impossibilitada de ostentar um vestido de baile com graça análoga a de sua mãe – que morrera ao lhe dar a luz – ou a levar adiante uma conversação. O único talento verdadeiro da jovem Catherine é o bordado, à qual ela se dedica com afinco: era aprendiz pela metade das prendas domésticas que lhe dariam um marido de valor. 
O romancista se deleita em detalhar o dia-a-dia de Catherine: A festa para a qual ela veste traje caro e sem gosto, denotativo da imperícia com que manejava seus parcos encantos. E sua timidez, sua simples sinceridade e o calmo amor que nutria primeiro pelo pai e depois por Morris Townsend. O grande protagonista do romance eu penso que seja mesmo Henry James, que maneja a pena de modo a chamar a atenção não apenas para o tema, mas também para a forma do texto, coisa surpreendente na época. 

Washington Square (NY), 1910

O enredo é de uma simplicidade monacal. Porque ele data de 150 anos e seu conhecimento não prejudica a fruição do livro, deem licença de eu contá-lo: Catherine descobre-se objeto da atenção do belo e desocupado Morris Townsend. Porque ela não tem gênio o suficiente para enxergá-lo como desocupado, preferindo sobretudo vê-lo como um bonito exemplar do gênero masculino que, além disso, oh, glória!, mostra-se interessado por ela – emoção nova na vidinha simples que levava – a moça começa a corresponder ao flerte. Quem observa de camarote a reviravolta de Catherine, de moça calma a pseudo-heroína romântica, é seu pai, médico arguto que transpira ceticismo. E ele a observa com olhos sadistas, perfeitamente cônscio de que a filha está sendo embrulhada pelo seu galã de romance romântico – o qual, pela cartilha do realismo, não passa de um interesseiro, que prepara o bote para ascender socialmente. 
O Dr. Sloper maneja a filha-títere como se ela fosse um experimento de laboratório. Primeiro, instando-a a corresponder às atenções do jovem Townsend, supondo assim que a moça finalmente devolveria à sua vida (à vida do médico, bem entendido) o brilho que fora embora quando sua esposa se finara. Depois, quando a jovem – que afinal de contas era um exemplar de fêmea da sociedade do fim do século, sem espírito suficiente para sentimentos impetuosos, porém, talhada ao matrimônio – aceita o pedido de casamento de Townsend e comunica-o ao pai com aquela simplicidade que lhe era inerente. Aí ele empregará todos os métodos conhecidos na novelística para afastar a filha de Townsend: vasculha a vida do rapaz para esfregá-la no nariz na moça; ameaça deserdá-la; leva à Europa para fazê-la esquecê-lo. Nada consegue. Para a cabecinha da simplória Catherine, a Europa torna-se uma extensão de sua casa neo-clássica na nova-iorquina Washington Square. Durante a viagem que lhe formaria o espírito às coisas da arte e da vida, tudo o que a jovem faz é se corresponder com o namorado, antevendo o momento em que se tornaria a Senhora Townsend. Como ela, o autor prefere se debruçar em sua heroína a tratar da arquitetura que ele – que tantas vezes viajara à Europa – conhecia tão bem. 

Washington Square, séc. XX - arremedo da parisiense Place de l'Etoile

Porém, nem Catherine, nem o Dr. Sloper (Ralph Richardson no filme), nem Morris, nem a tia velha (Miriam Hopkins) – sátira feroz ao éthos romanesco meia-irmã da Madame Bovary de Flaubert. O ventriloquista-mor de Washington Square é mesmo Henry James, pai malvado não só de Catherine como do restante das personagens e, em suma, da sociedade de aparências do fim dos oitocentos. 
Porque ele era homem e só a muito custo foge-se às determinações sociais do gênero, ele trata o Dr. Sloper com um pouco mais de respeito. Mas mesmo o proclamado amor paterno do personagem impede o autor de desenhar-lhe mais e mais vil: vileza que culmina na exclusão da filha da herança quando ela, pela primeira e única vez na vida, se dá ao luxo de desafiá-lo. O pai de Catherine é por vezes alter-ego do narrador, que explicitamente considera a moça uma pobre coitada: carente de criatividade ou vivacidade, carrega como cruz o desdém do pai por toda a extensão da obra, apenas fazendo-se notar quando se transforma numa solteirona (existia coisa pior na sociedade da época?), exímia em dar conselhos à juventude, justo ela que passara toda a vida na inação.

William Wyler não poderia ter escolhido objeto melhor a que voltar sua câmera ferina. O diretor é um notável artesão das feridas da sociedade. Exemplos de como ele as escarafuncha não faltam: “Infâmia” (The Children’s Hour, 1961), em que a angelical Audrey Hepburn desempenha uma personagem perseguida por seu suposto homossexualismo, deixa isso claro. Ele soube como poucos colocar a constelação de Hollywood em papéis ousados. O que é aquela “Pérfida” Bette Davis, que espreme até a última gota o marido com o qual se casou por obrigação (The little foxes, 1941)? Wyler foi mestre em estender diante da tela o amarrotado tecido social. “The Heiress” se beneficia muito disso. 
Pelo título do filme vê-se que a personagem principal agora é Catherine, interpretada por Olivia de Havilland no papel que lhe daria o Oscar. Wyler enfeia a bela Olivia e malevolamente escala como seu galã o homem mais lindo da Hollywood daquele tempo: Montgomery Clift. A escolha do ator beneficia a personagem de Townsend, pois o rosto de Clift somava beleza física e densidade psicológica como o de nenhum outro artista da época. Em seu corpo, Townsend parece menos arrivista social e mais apaixonado, o que parece uma redução do personagem dele ao gosto de Hollywood, mas na verdade é uma valorização, já que em toda a primeira parte do livro Townsend é desenhado por Henry James de modo ambíguo. 
 O primeiro plano do rosto do jovem ao se despedir de Catherine no baile onde se conheceram é prova disso: seus olhos brilham, seus lábios esboçam um breve sorriso, mas todo seu rosto exala seriedade. É raro no cinema de Hollywood dos 50 que um primeiro plano mostre tanto e ao mesmo tempo tão pouco. Quem é Townsend? Sem o narrador onisciente de James, que do meio para o final de Washington Square dedica-se a esmiuçar suas falhas, Townsend é um ser incerto. E Wyler aproveita-se bem disso. Depois daquele primeiro plano, o jovem é tomado numa sucessão de perfis que explicitam a dificuldade de se lhe apreender completamente. Porque ninguém é estritamente bom ou mau, talvez. Porque a máscara social esconde segredos terríveis, provavelmente. E como Wyler era bom em lançar luz sobre eles! 
Ao contrário de James, Wyler parece ter se apaixonado irrestritamente pelos seus personagens. Sua Catherine é tirada da inação. Não se torna mocinha romântica stricto sensu, bela de uma hora para outra como tantas tocadas pelo amor. Porém, ela caminha da timidez à ousadia e ao final torna-se brilhante em seu bom senso e depois, em seu amargor. Deixada pelo noivo, despeja no pai sua revolta por anos de menosprezo: 

Se era para comprar um homem, eu preferia ter comprado Morris. (...) Eu o amo. 

Nem precisamos olhar muito longe para percebermos que a assertiva é atualíssima... Impossível saber se Townsend seria incapaz de amar Catherine e, de todo modo, seu próprio pai passara uma vida sem amá-la – é o que ela por fim constata. 
 Porém, o roteiro não deixa de transmitir a amargura oriunda dessa tomada de consciência. A Catherine de Henry James repudia Townsend porque felizmente o pai lhe abrira os olhos. A Catherine hollywoodiana repudia-o não só por descobrir que sua atenção encobria segundas intenções, mas porque a manipulação do pai acabara com toda a doçura que havia nela. 
Em sua leitura crítica do passado, “The Heiress” toma com sensibilidade a mulher da sociedade machista dos anos de 1880. A fotografia e os enquadramentos do filme falam tanto quanto os personagens. Exímio na composição de quadros, Wyler enquadra o pai sempre em primeiro plano, de costas para a câmera, encarando impositivamente a filha ou Townsend, que ocupam um segundo plano que os apequena. Potencializa assim a grandeza ameaçadora do velho, cerne da sociedade patriarcal. E a arquitetura anacrônica da casa de Washington Square não apenas serve de cenário. Soma-se aos enquadramentos para contar a história de opressão da mulher daquela sociedade – não só da mocinha que não se encaixava bem no papel de objeto de luxo que a História impunha ao seu sexo, mas de todas as mulheres, obrigadas a passar das mãos do pai para as mãos do homem que ele escolheu para elas. Henry James cria “Catherine Sloper”, mas quem a entende realmente é “The Heiress”. É William Wyler e o casal de roteiristas que adaptou o romance quase 100 anos depois.