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terça-feira, 27 de maio de 2025

Quando o musical de Hollywood encontra a ópera: os filmes de Jeanette MacDonald & Nelson Eddy (1935-1942)


O musical cinematográfico norte-americano emergiu praticamente com a ascensão do cinema falado em versão industrial. Nos anos da depressão econômica que se seguiu à quebra da bolsa de NY, em 1929, eles – e a magia que forneciam – serviram de alento a uma população extensivamente empobrecida. “A Rosa Púrpura do Cairo” (Woody Allen, 1985) ficcionaliza a este respeito de forma deslumbrante. A obra aborda a história de Cecília, a jovem pobre de uma cidadezinha interiorana que, casada com um brutamontes que a tiraniza, tem o seu imaginário preenchido pelas histórias de amor saídas da “capital do cinema” – sobretudo aquelas protagonizadas por Freddy Astaire e Ginger Rogers, o mais célebre entre os pares românticos produzidos nos anos 30. Sobre eles eu escrevi um texto cheio de afeto nos primórdios deste blog, 15 anos, uma vida atrás
Outro desses casais célebres é o assunto que hoje ressuscita o blog, parado há seis meses: Jeanette MacDonald & Nelson Eddy, menos lembrados que Astaire e Rogers, mas celebérrimos nas décadas de 30 e 40, quando protagonizaram oito musicais da MGM. Como os colegas da RKO Radio Pictures, MacDonald e Eddy ajudaram a dar forma ao musical de Hollywood – no caso deles, misturando a música popular e a clássica, já que ambos eram cantores líricos. É simbólico retomar o blog com esse tema, pois costuro, aqui, os meus amores da juventude e os contemporâneos. 
Quando o casal contracenou pela primeira vez, em “Naughty Marietta” (“Oh, Marietta!” (1935, dir. Robert Z. Leonard e W. S. Van Dyke), a soprano e atriz Jeanette MacDonald (1903-1965) já era uma estrela. Após 10 anos atuando na Broadway, nos coros, em jump-ins e em esporádicos papéis de destaque, a artista finalmente ascendeu a protagonista em 1929, momento em que chamou a atenção de Ernst Lubitsch, que preparava o seu primeiro filme falado. “The Love Parade” (Alvorada do Amor, 1929), em que ela contracena com o galã francês Maurice Chevalier, se transforma num exemplo bem sucedido de filme cantante, concorrendo mesmo ao Oscar. 
A parceria de MacDonald e Lubitsch seria repetida ainda em “An hour with you” (“Uma hora contigo”, 1932) e em “The Merry Widow” (“A viúva alegre”, 1934), nos quais ela também contracenou com Maurice Chevalier (com quem ainda faria “Love me tonight/Ama-me esta noite”, de Rouben Mamoulian, 1932). Para além das bilheterias, essas obras fomentaram as gravações de singles de um punhado de músicas de sucesso, a exemplo de “Dream Lover” (de Victor Schertzinger e Clifford Grey, de “The Love Parade”), “Love me Tonight” (Richard Rodgers e Lorenz Hart, de “Love me tonight”) e “Vilia” (Franz Lehár, Lorenz Hart, de “The Merry Widow”, 1934). 
Em Maytime

Já Nelson Eddy (1901-1967) atravessou a primeira metade dos anos de 1920 atuando concomitantemente como barítono (a inclinação ao canto lírico nasceu ainda na infância, em coros de igreja) e jornalista. Acabou abandonando a segunda carreira em prol da primeira, quando, depois de vencer um concurso, ingressou numa companhia operística da Filadélfia, o que lhe permitiu construir um amplo repertório, em que estavam inclusas óperas de Mozart, Verdi e Puccini. No início dos anos de 1930, cantou mesmo no Carnegie Hall, regido por Ottorino Respighi. Contudo, a guinada em sua carreira se daria em 1933, quando às pressas substituiu exitosamente a soprano alemã Lotte Lehmann num concerto em Los Angeles. Após inúmeras pontas em filmes da MGM, estúdio com quem assinou contrato em 1933, foi alçado a co-protagonista de Jeanette MacDonald no supramencionado “Naughty Marieta”. 
A química inequívoca da dupla (o longevo blog https://maceddy.com/ dedica rios de tinta ao romance on e offscreen do casal, então, convido os curiosos a acessarem-no, pois vou me abster das fofocas de bastidores), par a par com a sua beleza clássica e o seu talento como cantores-atores, transformam a obra num sucesso não apenas cinematográfico, mas também discográfico. A obra foi alçada a melhor filme do ano de 1935 pela revista Photoplay, concorreu ao Oscar de melhor filme no ano subsequente, e a canção “Ah! Sweet mystery of life” (Victor Herbert, Rida Johnson Young), entoada pela dupla, alcançou vendas expressivas. MacDonald e Eddy tornam-se, então, The American Sweethearts
“Naughty Marietta” lança as balizas que seriam geralmente seguidas nos filmes da dupla. A obra baseia-se no musical homônimo de Victor Herbert, com letra de Rida Johnson Young, estreado na Broadway em 1910. Repercute, portanto, músicas que já eram notórias do público, senão pela assistência in loco do espetáculo, por sua escuta nas rádios. A transformação do musical nova-iorquino em filme, bem como a disseminação dessas canções em discos e no rádio retroalimentam a nascente cultura de massas. Ademais, os filmes protagonizando o casal adotam fielmente a fórmula da Hollywood clássica (especialmente em suas décadas iniciais), de associar pessoa e personagem, fazendo com que os artistas apresentassem ad nauseam tipos previamente definidos, que já haviam motivado o engajamento do público. 
Para isso colabora a repetição dos corpos artísticos dessas produções. W. S. Van Dyke, por exemplo, diretor bastante experimentado no campo tanto da comédia quanto do drama histórico (dirigiu a série cômica do Tin Man, protagonizada por William Powell e Myrna Loy, e os dramas “Maria Antonieta/Marie Antoinette”, com Norma Shearer e Tyrone Power, 1938, e “San Francisco”, de 1937, com Jeanette MacDonald e Clark Gable), também dirigiu Macdonald e Eddy em “Rose Marie” (1936), “Sweethearts (Canção de Amor, 1938), New Moon (Lua Nova, 1940) e, finalmente, em I Married an Angel (Casei-me com um anjo, 1942). Já Robert Z. Leonard, co-diretor de “Naughty Marieta” e de “New Moon”, dirige também “Maytime” (Primavera, 1937) e “The girl of the Golden West” (A princesa do Eldorado, 1938). 
Ao contrário dos musicais de Rogers e Astaire, que se passam na contemporaneidade – ainda que claramente falseada –, aqueles protagonizados por MacDonald e Eddy recuam até períodos anteriores ao século XX, aproveitando-se das habilidades dos diretores no melodrama histórico – gênero então amado pelo público no âmbito folhetinesco, teatral e cinematográfico. 
Assim, essas obras tematizam a França pré-revolucionária (como, além de “Naughty Marieta”, “New Moon”), o período do império de Louis Napoléon (como “Maytime”), a Londres elisabetana (“Divino Tormento/Bitter Sweet”, 1940) ou a época da penetração no meio oeste americano (“The girl of the Golden West”). Em todas, o desnível social entre a dupla é objeto de tensão – ela é uma princesa, aristocrata ou prima-dona, enquanto ele é pobre, seja policial, mercenário, aspirante a cantor ou bandoleiro. Consequentemente, a democrática ultrapassagem do status quo torna-se o mote dessas obras. 
Se há algum espaço para crítica social nos filmes de MacDonald e Eddy, ela recua no tempo. Criticam-se, no caso de “Naughty Marietta”, os desmandos da monarquia absolutista francesa, que obrigam a princesa prometida a um velho nobre à fuga aos Estados Unidos, terra da promissão, e o seu encontro com o oficial mercenário por quem ela se apaixonará. Os musicais da dupla seguem a tradição do gênero. Não apontam o dedo às mazelas sociais contemporâneas. Apostam, antes, na defesa do self-made man. Isso se dá mesmo no caso de “New Moon”, já que, embora a personagem de Eddy seja originalmente um duque francês (libertário, perseguido pela monarquia), ele precisa se travestir de escravo e serviçal para merecer sua ascensão numa nova ordem social democrática – fundada numa ilha remota ao mesmo tempo em que a França vivia a Revolução. Todavia, vários desses filmes não deixam de se aliar a um patriotismo rasteiro, já que os EUA estavam mergulhados na 2ª Guerra Mundial, e Hollywood se alinhou às hostes belicistas. 
Se “New Moon” aborda a questão de forma implícita (nele fazem-se ouvir os acordes de La Marseillase”, hino da Revolução), “Sweethearts” o faz mais explicitamente. Trata-se de uma das três obras do casal que se passam na contemporaneidade – as outras são “Rose Marie”, história da prima-dona canadense que se embrenha pelas matas do país em busca do irmão – um já ótimo James Stewart anterior ao estrelato – em fuga da polícia, e se apaixona pelo sargento da guarda montada que é escalado para procurar o rapaz; e “I married an angel”, conto (com interessantes laivos surrealistas e psicanalíticos) da secretária apaixonada que reforma o conde estroina, herdeiro do banco onde ela trabalha. 
Filmada em Technicolor, o que dá a dimensão da relevância da dupla na Hollywood clássica, “Sweethearts” pespega no público um conjunto de canções patrióticas entoadas pelo par romântico nas rádios nova-iorquinas. Filmes como este motivavam a venda de bônus de guerra. No entanto, o discurso patriótico não abandona a visada ao lucro. Fiel à fórmula adotada com sucesso por Hollywood, a trama faz referência ao epíteto e à relação amorosa tumultuosa vivida pelo casal protagonista, seja no título, seja no enredo (narra-se a história fictícia de um casal notório da Broadway que é seduzido por Hollywood no momento em que comemora seis anos de seu casamento e da estreia seu bem-sucedido musical). 
Outra questão importante nesses filmes é a autorreflexão da indústria do cinema sobre o seu lugar na cultura mundial. Daí ao diálogo que eles estabelecem entre o musical da Broadway e a ópera. Nos primórdios deste blog, abordei os musicais de Judy Garland e Mickey Rooney, que então me interessavam pelo esforço de defesa do musical norte-americano que eles encenavam – esforço simbólico do (desejado) deslocamento do eixo da produção artística da Europa para os Estados Unidos. 
Já os filmes de Jeanette MacDonald e Nelson Eddy aproveitam o treinamento prévio da dupla no canto lírico – Eddy era, como vimos, cantor de ópera, enquanto MacDonald se dedicaria posteriormente a essas produções –, fazendo-os cantar tanto os números musicais conhecidos pelo público mainstream quanto os operísticos apreciados pelo público mais cultivado, o que procurava elevar a estatura dessas obras. Assim, filtros do tempo que são, esses filmes permitem-nos conhecer os cânones da ópera de 90 anos atrás. 
O repertório abordado pela dupla é extenso e não tenho a intenção, aqui, de ser exaustiva. The girl of the golden West aborda o gênero de forma enviesada, já que adapta cinematograficamente a peça teatral utilizada por Giacomo Puccini para a criação de sua La Fanciulla del West” (a peça, de autoria de David Belasco, estreou em 1905, enquanto a obra do compositor italiano data de 1910). Se numa obra como “New Moon” essa presença é episódica – nela, MacDonald canta “Ombra Mai Fú” (da ópera “Xerxes”, de Georg Friedrich Händel, 1738) –, nos filmes centrados no mundo da ópera ela é contundente. 
Em “Rose Marie”, duas sequências operísticas são determinantes para a construção da curva dramática da personagem da mocinha. Na (longa) inicial, aborda-se a ópera “Romeu e Julieta”, de Charles Gounod (1867), desde a notória ária “Je veux vivre” até a morte do par romântico. Já nos estertores do filme, a personagem feminina, após se ver obrigada a deixar o homem que ama, é uma errática Tosca (da obra homônima de Giacomo Puccini, 1900) na sequência que tematiza a morte de Cavaradossi e o suicídio da protagonista. E, finalmente, o âmbito operístico é fundamental na obra-prima “Maytime” – chegando o seu diretor mesmo a compor uma longa sequência final de uma ópera romântica protagonizada por soprano e barítono, um unicórnio na grafia operística, para que o casal pudesse cantá-la. 
Vistos em conjunto, os filmes protagonizados por MacDonald e Eddy nos apresentam um microcosmo da Hollywood dos anos dourados. Assisti-los é, portanto, pedagógico para que apreendamos o que a indústria do cinema então defendia. Se valores arrevesados e preconceitos os mais variados obviamente emergem do conjunto - dado que tais filmes estão ao menos 80 anos distantes de nós -, eles se sustentam pelo talento do casal protagonista e pela artesania cinematográfica, questões que pretendo discutir oportunamente ao abordar “Maytime”, obra que merece um artigo à parte.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Yes, nós temos bananas: o Rio no imaginário hollywoodiano


Começo o post pela cena que me motivou a escrevê-lo: Mickey Rooney imitando a Carmen

Miranda em "Babes on Broadway" (1941), um dos Rooney & Garland pictures. É certo que a imitação é mais uma homenagem que uma sátira, cumprindo o programa de irmandade cultural fomentado por ambos os países (tanto que há registros da própria Carmen ensinando o Mickey a balançar as cadeiras). O que mais me fascinou nela - não apenas nela, mas no grosso das películas que fazem alusão ao Brasil - é o olhar estereotipado que lançam ao país, mais especificamente ao Rio de Janeiro, metonímia do Brasil aos olhos do cinema standard norte-americano da época (e, ouso dizer, também de hoje).
É um prazer ver Mickey cantando "Mamá, yo quiero mamar.". O rapazinho é tão carismático que acabamos deixando de lado o quão perniciosa é a caracterização que junta todos países sul-americanos num mesmo pacote, amarrando-os com um laço bem grande e colorido que os transforma em charge. Outra coisa não era Carmen Miranda, uma das maiores cantoras nacionais que, em Hollywood, teve de se contentar com papéis de raparigas sensuais e exóticas, cujos sotaques estilizados não deixavam negar as origens: o país tropical, do calor e do sexo fácil. Carmen ganhou dinheiro e notoriedade, levando o nome do país aos quatro cantos do mundo através das películas em Tecnicolor rodadas pela Twentieth Century Fox. No entanto, contribuiu para que se perpetuasse no estrangeiro a imagem do país do eterno carnaval de acordo com a qual ainda somos conhecidos, imagem que nos trás turistas sedentos de calor e diversão, mas também motiva o turismo sexual.

Mas esse post está tomando um caminho pedregoso que não estou disposta a trilhar, não depois de ter separado com tanto entusiasmo uma porção de fotogramas de alguns filmes (dos quais gosto muito, aliás) em que o Brasil - ou melhor, o Rio - é personagem relevante.
Então vou agora mesmo mudar o rumo e tentar transformar isso aqui em um passeio turístico tão leve e agradável quanto aquele ao qual Hollywood buscava conduzir seus espectadores quando colocava em primeiro plano o brilho de nosso país, deixando de lado as nossas mazelas sociais. Lá vamos nós então.



Os primeiros fotogramas são do musical de 1933 "Flying down to Rio", no qual Ginger Rogers e Fred Astaire dividem a cena pela primeira vez, ainda como artistas coadjuvantes. O conjunto de cenas (parte delas stills), apresentados sucessivamente, dos pontos turísticos da ainda então capital da República, explicitam o imaginário que se construía do Brasil como um país de vicejante beleza natural e muita diversão. A Baía de Guanabara anunciando ao fundo o Pão de Açúcar; o Teatro Municipal, a Avenida Copacabana, o Hipódromo. Puxamos pela memória as últimas novelas das oito e vemos que o imaginário pouco mudou.
Contudo, nesses filmes antigos essas cenas, que não deixam de ser registro histórico de um tempo que há muito já se foi, ganham uma graça especial que sempre acaba por me entusiasmar. Bati os olhos no Hipódromo, hoje praticamente abandonado dada à decadência do esporte, e me lembrei do registro histórico/poético que Manuel Bandeira faz do local nos anos de 1940:

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo
(...)

E ao trombar com os "Turunas Band", banda nacional a princípio ironizada pelo conjunto comandado pela personagem de Astaire, me dei conta de quão up to date estavam os norte-americanos no que se tratava da cultura de nosso país. Para constar apenas de passagem, alguns "turunas" passaram pela cena artística de nosso país, a exemplo dos "Turunas da Mauriceia", grupo pernambucano que fez sucesso no Rio entre 1927 e 1930 tocando canções típicas do nordeste, como emboladas e cocos. Abaixo, um registro do grupo e, a seguir, dos "Turunas" inventados por Hollywood.



A disposição do conjunto nega o epíteto do grupo (turuna: forte, valente, ágil), deixando ainda mais claro aos brasileiros que aos norte-americanos o quanto ela tinha de pejorativa. Mas nem por isso ela deixa de ser engraçada, pois também os brasileiros redefiniam a cultura de seus vizinhos ao apreendê-la. O Brasil era um dos maiores mercados consumidores da produção cinematográfica norte-americana - o que o tornava, por extensão, consumidor do modo de vida daquele país. As jazz-bands pululavam em território nacional, alegrando os cassinos, as rádios, vendendo discos e divertindo as plateias do já abrasileirado teatro de revista. A "Turunas Band" inventada por Hollywood, que tocava foxtrote e a carioca, não ficava muito longe dos grupos compostos por elementos nacionais - no final dos anos 20, "Arthur Castro & American Jazz Band" fizeram sucesso com um maxixe chamado "Cristo nasceu na Bahia". O cosmopolitismo das bandas acenava para o cosmopolitismo instaurado pela indústria do cinema, em que tudo ganhava status semelhante de item de consumo para as massas. A própria "carioca" inventada na película mistura elementos norte-americanos e brasileiros, o violoncelo, o chocalho e o triângulo, os dançarinos de tap dancing e baiana sestrosa.




Aliás, a baiana de "Flying down..." nega a informação historicamente consolidada de que a responsável por elevar o tipo, até então estigmatizado, foi Carmen Miranda. O tipo da brasileira/baiana já parecia bem introjetado no imaginário norte-americano quando Carmen apareceu por lá. Nas películas rodadas em Hollywood, a imagem edênica do país se sobrepõe à sua realidade empírica - não é atoa que, nos anos 50, "Orfeu negro" arrebatou os estrangeiros, apresentando-lhes um país desconhecido. Para a construção do imaginário ajudou o fato de os filmes serem costumeiramente rodados em estúdio, sendo a cor local dada por telões que impunham a magia do espaço físico assim como as fotografias turísticas que batemos dos lugares mais bonitos que visitamos. Fred e Ginger caminham contra o telão que registra a avenida Gonçalves Dias, ponto tradicional da boemia literária carioca, e vão dar num arremedo da Confeitaria Colombo.
Não muito longe dali, cartazes anunciam, em inglês, os "Yankees Clippers" no "Hotel Atlantico". Neles, coqueiros, a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar. Perdura a imagem do Rio como destino de turistas estrangeiros.

É digno de nota o fato de o Brasil comparecer especialmente em comédias musicais, produções em que a fantasia se sobrepõe à realidade. Em "Uma noite no Rio" (That night in Rio, 1941), fotografias da cidade são substituídas por registros pictóricos dela, que salientam a invenção do país em detrimento de seu registro objetivo.


Carmen surge em seguida com a vestimenta de baiana que se tornou a sua segunda pele.

Casais fantasiados dançam tendo ao fundo a Baía de Guanabara. O Technicolor permitiu que se salientasse o colorido que se queria imprimir para o país. O fotograma acena também para outra característica do país que o tornava destino privilegiado, o carnaval.

Isso é ressaltado noutra película dos anos 40, "Romance on the high seas" (1949), debut cinematográfico de Doris Day. O baile de carnaval que dá fecho ao filme, tornando possível o happy end, aponta cabalmente para como nosso país é imaginado lá fora. Inegavelmente, é uma propaganda aos quatro cantos do mundo de nossa cordialidade. Que viengan os turistas...

Antes de ser "feliz para sempre", Doris Day entoa "It's Magic" na Praia de Copacabana, canção que a tornará the toast of Hotel Atlântico, mimetizando a relevância que exerce na ascensão da jovem crooner a estrela da música e do cinema.


A praia de Copacabana e o carnaval retornam brevemente em "Papai Pernilongo" (Daddy long legs, 1955), e novamente enquanto pintura, numa sequência estilizada colorida e lúgubre que lembra (e lembra até demais, para o próprio bem do filme) o antológico balé de "Sinfonia de Paris" (1951).




Brasil, paraíso terrestre, lugar da fantasia, do escapismo. Não é um acaso que casais sexualmente reprimidos vivessem seu idílio envoltos por nossa brisa amena e sob os olhos amorosos do Pão de Açúcar. É o que acontece em "Estranha Passageira" (Now, voyager, 1940), no qual a personagem de Bette Davis torna-se "Camille" à medida em que se aproxima de nosso país tropical - alusão à heroína romântica de Dumas Filho que se entrega a um amor proibido e foge para o campo para vivê-lo. Camille e seu Armand (Paul Heinred) dormem lado a lado numa cabana abandonada na estrada rumo ao Pão de Açúcar, desafiando a moral vigente e a censura cinematográfica. Estou lembrando que já falei sobre esse filme em duas outras ocasiões, quando falava sobre o cigarro no cinema e o sexo em Hollywood... Nem preciso dizer que gosto muito dele, não?



O romance de Ingrid Bergman e Cary Grant também se beneficia das belezas naturais do Rio. Em "Notorious" (Interlúdio, 1946), um dos grandes Hitchcocks, a personagem de Ingrid é outra Dama das Camélias que encontra a regeneração no amor.


Porém, sabemos que o romantismo do diretor percorre vias tortuosas. Antes de oferecer a oportunidade de regeneração à heroína, o Rio torna-se palco de seu mais arrematado decaimento. O imaginário é desconstruído. O hipódromo, cuja elegância contribui para enfeitar as películas norte-americanas, ganha em "Notorious" aquele sabor amargo que adquire para Manuel Bandeira: "Os cavalinhos correndo,/ E nós, cavalões, comendo... (...)/O sol tão claro lá fora,/ O sol tão claro, Esmeralda,/ E em minhalma — anoitecendo!".




Nele, a personagem de Ingrid contará ao homem que ama: "Você pode colocar Sebastian em minha lista de admiradores." Ela sabe que o caminho não tem volta. Precisará se casar com o espião nazista para levar a cabo o plano do governo americano.
A Cinelândia, até então passarela de turistas despreocupados, impregna-se da carga dramática da personagem que, então, já caminhava numa corda bamba. O belo edifício da Biblioteca Nacional, o qual, junto ao Teatro Municipal, ajuda a compor o patrimônio artístico da capital, torna-se no filme a base de operações da polícia brasileira/ norte-americana. Sua magnificência esmaga a protagonista, tanto quanto as luzes da cidade cegam-na, tornando sua doença ainda mais insuportável. Graças à Hitchcock, o Adão e a Eva cinematográficos são finalmente expulsos do paraíso.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Ginger Rogers & Fred Astaire (e eu): "Heaven, I'm in heaven"

"Heaven, I'm in heaven. And my heart beats so that I can't hardly speak. And I seem to find the happiness I seek. When we're out together dancing cheek to cheek...". Foi ao som desta canção que fui apresentada a Fred Astaire e Ginger Rogers, enquanto deslizavam os créditos iniciais da "Rosa Púrpura do Cairo" e a mocinha ingênua suspirava defronte ao cinema no qual costumava passar suas noites românticas com seus ídolos. Creio que o belo "The purple rose of Cairo" (1985) seja o veículo ideal para que eu os conduza a um passeio pelo cinema dos tempos da grande Depressão norte-americana e lhes apresente duas de minhas paixões, Ginger Rogers e Fred Astaire - ou uma, já que eles não teriam deixado recordação tão indelével em tantos se não tivessem se transformado em um enquanto dançavam. Esta será, portanto, uma postagem não muito sóbria, o que, aliás, é a atitude costumeira daqueles que gostam tanto de uma coisa que supõem-na sem defeitos. Perdoem.

O filme de Woody Allen fecha brilhantemente um conjunto de homenagens - talvez eu devesse dizer rememorações - a esse que se tornou o primeiro casal de dançarinos das telas. A homenagem de Allen tem uma dose de crítica e outra de paixão. Sua paixão exacerbada pelo cinema levou-o a tornar literal a metáfora da identificação do espectador com o artista de cinema. Cecília, a mulher simples de uma cidadezinha do interior dos Estados Unidos, realiza o sonho de outras tantas jovens daquele tempo (e, porque não dizer, deste tempo): é cortejada pelo aventureiro personagem de uma de suas películas preferidas. Porém, cedo a moça perceberá que vive uma aventura impossível.
Neste sentido, a sequência inicial do filme é simbólica: a jovem que observa encantada o pôster do filme enquanto soa a "Cheek to cheek" por pouco não é atingida por um pedaço de seu letreiro quando ele despenca. Cecília, a mocinha sonhadora, perigosamente caminha na linha tênue que divide ilusão e realidade. A bela ilusão, que lhe permite conviver por alguns momentos com destemidos aventureiros e belas damas da alta-sociedade - representados pelos galãs e divas com os quais ela convive em suas noites no cinema - e a sombria realidade, composta pelo marido desempregado, violento e bêbado, pelo emprego de garçonete que ela desgosta e pela Grande Depressão dos anos 30. Woody Allen retrata no filme uma época da história em que o cinema teria sido fundamental para garantir a sanidade de tantos norte-americanos que, sem dinheiro nem perspectivas, encontravam na ilusão nas telas a fuga de suas desilusões. É claro que Allen não deixa de lado o que há de alienante nessa oferta de alento para as massas desesperadas. Tanto que Cecília acaba abandonada pelo galã por cujo personagem ela se apaixona. Todavia, o desfecho da fita explicita o quanto a ficção - e todas as ilusões que ela pode gerar - é fundamental em nossas vidas. Cecília adentra o cinema ainda carregando consigo as malas que levaria da cidadezinha e embarca no filme - no "Picolino" - e, ao ver o casal Rogers & Astaire dançando "Cheek to cheek", seu rosto já traz novamente aquela expressão de felicidade sonhadora que conhecemos no início da película.

Quando vi a Ginger e o Fred dançarem "Cheek to cheek", senti-me como Cecília - fascinada, atraída pela tela, esperando que o sr. Astaire abrisse seus braços e me convidasse para dançar. Isso foi muito antes de tomar algum contato com teorizações sobre o appeal calculado dos astros ou de ler a formulação de Katharine Hepburn segundo a qual "Ginger torna Fred sexy e ele lhe dá classe". De fato, a química desses astros é tão perfeita que Fred (a beleza certamente não está entre seus atributos) torna-se belo devido à paixão com que Ginger o olha. É ela a culpada por querermos estar no seu lugar. Depois que fiquei um pouco mais escolada a respeito disso, devo dizer que meu fascínio diminuiu pouco - ou, porque não dizer, aumentou bastante... "O Picolino" ("Top hat", 1935) foi, por motivos claros, o primeiro filme que vi da dupla.

Sequência musical Cheek to cheek (Top hat, 1935)

E graças à bem cuidada edição do filme distribuída pela Warner, conheci detalhes curiosos da produção. Por exemplo: o vestido de penas desenhado pela Ginger que parecia branco era, na verdade, azul, e levou Fred a uma crise de espirros que culminou num sururu do qual até a mãe da Ginger tomou parte. Mais uma dentre tantas outras fascinantes histórias de bastidores que apresentam os percalços pelos quais a ficção passa até ela parecer realidade... Aliás, o casal perdido entre a montanha de técnicos demonstra como os bastidores de uma filmagem daria um filme fascinante...

Bastidores de Cheek to cheek (Top hat, 1935)

Entre 1933 e 1949, Fred e Ginger fizeram juntos 10 filmes. "O Picolino" é o Astaire & Rogers quintessencial. As canções compostas por Irving Berlin pertencem hoje ao "American songbook". Cheek to cheek ganhou o prêmio da Academia de melhor canção original e iniciou uma parceria que se tornaria recorrente: é Berlin que assina a trilha sonora de "As águas da esquadra" (1936) e "Carefree" (1938). Esta colaboração flagra o que se tornou marca registrada nos filmes da dupla: a contratação de compositores de talento e de sucesso, cujos nomes ajudavam na publicidade das películas. Aqui, os três se deixam fotografar lado a lado durante a rodagem de "Carefree".


Lembro-me de Stanley Donen dançando "Cheek to cheek" com o Oscar honorário que recebeu em 1997 (que alegria encontrar registro disso no Youtube!), e Martin Scorsese contando como o então menininho de 9 anos apaixonado por musicais foi convencido por Ginger e Fred a fazer aulas de dança e depois tornou-se um dos diretores do maravilhoso "Cantando na chuva". Ou como a canção acompanhou minha infância nas vozes de Frank Sinatra e Nat King Cole. O "Picolino" foi um reencontro com a canção e com minha infância, daí a sua relevância em minha vida.
O valor deste filme não repousa apenas em sua importância histórica. Ele perdura nos dias de hoje. Seus ditos espirituosos permanecem tão vivos quanto as belas sequências musicais. Aliás, esses dois aspectos foram fundamentais para manter o público atraído durante a primeira leva de 9 filmes rodados pela dupla entre 1933 e 1939. Eric Rhodes, o costureiro italiano Alberto Beddini que no "Picolino" tem como lema "Às mulheres, um beijo. Aos homens, a espada!", na "Alegre Divorciada" ("The Gay divorcée", 1934) desempenha o papel do tenor desafinado Tonetti, que diz "As mulheres estão a salvo com Tonetti. Ele prefere espaguetti."
Personagens tipos povoam grande parte da série de filmes, o que é característico das comédias musicadas teatrais: Helen Broderick é a matrona que tem sempre um dito ácido (muitas vezes concernentes ao sexo oposto); Eric Blore é o serviçal voluntarioso que invariavelmente desconcerta os patrões; Edward Everett Horton é o marido (ou pretendente) abobalhado que é dominado por uma mulher; Fred é o dançarino idealista salvo pela mocinha linda e séria, conquistada num número de dança.
Porém, antes de "A alegre divorciada" inaugurar o modelo, os dois astros tomaram parte no delicioso "Flying down to Rio" ("Voando para o Rio", 1933), onde Ginger encarna uma daquelas criaturas espevitadas que a tornaram célebre em "Footlight parade" e "Rua 42", no mesmo ano, nos quais ela desempenhou papéis de pouco destaque. Em "Voando...", percebeu-se o potencial da dupla tão logo Ginger aceita o convite de Fred para que se aventurem pela "Carioca" e ensinem aos brasileiros "One thing or three".

Sequência musical The Carioca (Flying down to Rio, 1933)

Não por acaso, são ambos - até então, coadjuvantes - que fecham o filme, enquanto dão adeus a uma Dolores Del Rio e a um Gene Raymond que partem para nunca mais se juntarem a eles. Ginger e Fred voltam para "A alegre divorciada", um dos grandes sucessos da dupla, onde a personagem de Fred encontra a mocinha pela qual se apaixonara enquanto canta "A needle in a haystack" ("Uma agulha num palheiro"), e conquista-a na legendária "Night and day", de Cole Porter, a qual termina com aquele acender simbólico do cigarro sobre o qual já conversamos no post passado. Aliás, esta canção é a única que migrou do musical "The gay divorcée" - estrelado por Astaire na Broadway entre 1932 e 1933 - para a telona. Adoro-a na voz de Frank Sinatra e Doris Day, mas nada como ver a personagem de Fred Astaire dizendo à de Ginger que uma voz dentro dele repete "you, you, you" assim como o incessante tique-taque do relógio de parede ou o pingar das gotas de chuva. A pieguice decididamente não está no que se diz, mas no modo como se diz...

Sequência musical Night and day (The gay divorcée, 1934)

Outra deliciosa canção, "The Continental" - esta também premiada com o Oscar - pinta outra característica da série: os números musicais grandiosos, do qual tomam parte centenas de extras e culminam com Ginger e Fred juntos, em nossa frente, convidando-nos a participar da extravaganza.

The Continental (The gay divorcée, 1934)

Depois da "Alegre Divorciada", a dupla dividiu as telas com Irene Dunne e Randoph Scott em "Roberta" (1935), no qual Ginger faz uma divertida norte-americana interiorana que se finge de russa para conquistar a noite parisiense (!), e Fred, um regente de orquestra que acaba obrigado a conduzir um atelier de costura (!!) que é objeto de um litígio às avessas por Irene e Randolph. É delicioso o modo como Miss Rogers canta "I'll be hard to handle" debaixo do olhar divertido daquele que fora seu namorado de infância (e que, pelo desdobrar da canção, parecia julgar a moça efetivamente muito difícil de se lidar) e como ela o convida para dançar e ele recusa-se através da deliciosa canção "I won't dance", de Jerome Kern e Otto A. Harbach, outra canção obrigatória. Algo que me fascinou a respeito de "Roberta" foi a campanha promovida pelo estúdio para a divulgação do filme, com direito a flashs das gravações dos números musicais, curiosidades acerca deles, biografias dos artistas e entrevistas com eles. O "Campaign book" da película fala por si só:

Edição facsimilar do "Campaign book" de "Roberta" (1935)

Depois de "O Picolino" e de "Roberta" seguiu-se "Nas águas da esquadra" ("Follow the fleet", 1937), em que ambos deixam de lado o glamour anterior para encarnarem, ela, uma dançarina de 10 centavos, e ele, um marinheiro. Ironicamente, a sequência mais lembrada é aquela em que ambos encarnam membros da high society e Fred salva uma Ginger deprimida ao som de "Let's face the music and dance", - sequência que motiva a paródia agridoce de Giulietta Massina e Marcello Mastroianni dirigida por Fellini em "Ginger e Fred" (1986).

Sequência musical Let's face the music and dance (Follow the fleet, 1936)

A próxima película, "Ritmo louco" ("Swing time", 1936), é, se não a mais significativa, talvez a mais bela de ambos. A começar pelas canções, umas tão lindas, como "The way you look tonight" (outra oscarizada), outras tão divertidas, como "Pick yourself up". Ginger é, aqui, mais graciosa do que em qualquer outro filme da série. Os ensaios incessantes com Hermes Pan se fazem notar cabalmente pela perfeição com que ela dança em sequências como "Waltz in swing time" (uma mélange de compassos de valsa e swing) e "Never gonna dance", cuja continua execução para as filmagens, diz-se a trivia hollywoodiana, fez com que os pés da atriz sangrassem.

Sequência musical Never gonna dance (Swing time, 1936)

Abaixo, um registro fotográfico de Ginger e Hermes ensaiando. Essas imagens com copywright da RKO fazem parte da "Complete Film Collection" da dupla.

Dali em diante, o interesse do público pelo casal começou a esmaecer. Mesmo assim, outros 3 filmes foram rodados. O primeiro deles, "Vamos dançar" ("Shaw we dance", 1937), trás uma canção deveras influenciada pela Depressão: "Shall we dance/ Or keep on moping?/ Shall we dance/ or walk on air?/ Shall we give in/ to despair/ Or shall we dance with never a care". Parecia, no entanto, que o público havia se cansado de bailar em companhia de Ginger e Fred, tanto que demorou um ano e meio para os dançarinos rodarem outra fita. "Carefree", um dos filmes mais desdenhados da série, é curiosamente um dos meus preferidos: um tanto pela pseudo-psicanálise que gera alguns quiprocós hilários (Ginger hipnotizada maltratando os patrocinadores de seu programa de rádio ou quebrando um vidro com o cassetete de um guarda, por exemplo), outro pouco por sequências musicais como "The Yam", em que ela está radiante nos braços de Fred e, por isso, ele parece lindo como nunca.

Sequência musical The Yam (Carefree, 1938)

Mas especialmente na engenhosa sequência musical do sonho, em que Fred Astaire, o diretor Mark Sandrich e Hermes Pan combinam um cenário surreal e a ação em câmera lenta para apreenderem a paixão da jovem Amanda Cooper por seu psiquiatra. A beleza da sequência merece um registro especial. Sou muito grata a quem colocou-a no youtube:

A cena é também digna de nota por um outro motivo: Ginger e Fred trocam seu primeiro beijo romântico em frente às câmeras. Até então, o ator dizia que ele não precisava dos lábios para fazer amor com sua protagonista, já que tinha os pés. A trivia hollywoodiana encontra um motivo mais picante: sua esposa morria de ciúmes de Ginger Rogers.
O fracasso de bilheteria de "Carefree" faz com que ambos abandonem a fórmula e voltem em "The story of Vernon and Irene Castle", biografia de um casal de dançarinos querido do público dos anos 10 que encontra um fim trágico com a morte de Vernon na guerra. O público não gostou e tampouco a verdadeira Irene, descontente com o fato de ser desempenhada por uma atriz que, para a sociedade machista da época, não gozava da melhor das reputações.

Com a película, o casal de dançarinos despede-se soturnamente das telas. As lágrimas que Irene derrama ao dizer adeus àquele que fora seu par nos palcos e na vida, e o modo como o espectro de ambos dançam pela estrada florida até darem lugar ao "The End", anunciavam que Ginger Rogers e Fred Astaire deixariam as telas para alimentarem, a partir de então, a memória daqueles que os amavam. Na década que se seguiu à "História de Irene Castle e Vernon", Fred aposentou-se das telas e Ginger recebeu da Academia o prêmio de melhor atriz por "Kitty Foyle" (1940), saciando o desejo comum das estrelas do teatro/cinema alegre de brilhar no gênero dramático.
O acaso - ou, porque não, o destino - juntou-os novamente no delicioso musical "Ciúme, sinal de amor" ("The Berkleys of Broadway", 1949), que, aliás, jocosamente arremeda suas vidas. Nele, Ginger é uma atriz do teatro musicado que deseja ser reconhecida por seus dotes dramáticos. Conflitos com o esposo (Fred) - que se julga seu Svengali - levam-na ao divórcio e ao sucesso no papel de Sarah Bernhardt. No entanto, ela realmente nos conquista quando dança com Fred um novo arranjo de "They can't take that away from me", canção de George e Ira Gerswhin que compartilharam em "Vamos dançar" ("Shall we dance", 1937) - ah, como eu gostaria de estar no lugar de um daqueles figurantes que se sentaram no teatro onde aquela cena foi gravada e os viram! No desfecho, a mulher descobre que seu lugar é dançando junto ao esposo numa peça saltitante, com figurinos estravagantes e sem enredo, à moda dos musicais teatrais que faziam sucesso nessa mesma época.

They can't take that away from me (Berkleys of Broadway, 1949)

A dupla recebeu outra homenagem - esta menos conhecida - no "The Jack Benny Program" de 1957 que, ironicamente, glosa o modo como ela seria vista nos anos seguintes. No show, a atriz é abandonada por Fred no palco do programa porque este perdera o avião. A gag resolve-se numa hilária sequência em que Jack toma o lugar do dançarino e conduz Miss Rogers nuns passos estravagantes filmados em alternados close-ups e long shots (claramente os long shots registram a performance de um dublê de Benny). No entanto, o abandono que era mote do programa tornou-se aparentemente uma situação costumeira para Ginger que, já no final da vida, diz com amargura numa entrevista que Fred não a fez e tampouco ele estava sozinho nos filmes da dupla. "I'm my own master", diz ela, desejosa de receber um pouco das alvíssaras que couberam ao seu companheiro das telas. Infelizmente ela não está mais aqui para recebê-las das novas gerações que cativou.

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As homenagens à Ginger e Fred:


Ginger Rogers e Jack Benny, "The Jack Benny Program", 1957.

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Julie Andrews e Ken Berry, "Julie Andrews Hour", 1973. (clique sobre a imagem para vê-lo no youtube)

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Bernadette Peters e Steve Martin, "Pennies from heaven", 1981.

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Giulietta Massina e Marcello Mastroianni, "Ginger & Fred", 1986.