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quarta-feira, 25 de maio de 2016

“Maravilhoso Boccaccio” (2015): a arte de resistir

Falei dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani – diretores deste Maravilhoso Boccaccio (Maraviglioso Boccaccio) – em fins de 2012, após ver o brilhante César deve morrer (Cesare deve morire, 2012), premiado documentário metalinguístico (ganhou o Leão de Ouro no Festival de Berlim) a respeito dos ensaios e encenação do drama de Shakespeare Julio César, na prisão de Rebbibia, em Roma. 
Maravilhoso Boccaccio, a obra seguinte na filmografia dos irmãos, abandona o gênero documental em prol da ficção. Toma uma das obras máximas da literatura italiana, o Decameron de Giovanni Boccaccio – narrativa caudalosa com lastro para preencher centenas de filmes –, depreendendo dela o seu sumo. 
A obra de Boccaccio tem relevância fundamental para a literatura italiana. É narrativa fundacional, a exemplo dos Lusíadas, escrita em dialeto toscano (entre 1348 e 1353) quando a língua de cultura ainda era o latim. E promove uma revolução não só na forma como no conteúdo, advogando, nas portas do Renascimento, em favor de um mundo das sensações, de entrega aos prazeres terrenos, em contraposição ao amor espiritual valorado na Idade Média. 
As cem narrativas impressas ao longo de quase 1000 páginas de texto têm um leitmotiv comum: a rendição ao amor e à pândega, enfim, a fruição da vida, breve como nunca naquele tempo de peste, que a obra retrata sem distanciamento algum que separe o fato histórico do literário. 
A obra é luminosa, aprazendo muito, ainda, o leitor contemporâneo. E proporciona, àqueles que desejam adaptá-la, possibilidades várias de recorte – anos atrás, uma das turmas de teatro da UNICAMP adaptou ao palco, com fortes vieses carnavalescos (e grande rendimento cênico), apenas os contos eróticos do livro. 
Já os Taviani mostraram-se pudicos na escolha dos contos que comporiam a sua obra, o que surpreende, mas talvez remeta à iconografia do Renascimento, glosada pela fotografia da obra. Detêm-se nas histórias de amor derramadas, deixando-se de lado quase que totalmente a explosão de sensualidade que é a principal tônica – ao menos a que eu mais me lembro – da obra de Boccaccio. 
O que de jeito nenhum é uma crítica ao filme. 
Faz-se ali uma leitura linear da obra adaptada. Maravilhoso Boccaccio principia na cidade de Florença infestada pela peste. Há um distanciamento contemplativo na apreensão que os irmãos fazem da melancolia daqueles que morrem e daqueles que veem os seus morrerem. Cortes secos impedem que o público atinja o cerne de certos eventos tabus, que desde tanto tempo viraram espetáculo: o suicídio do homem doente, que despenca do alto do Campanile; ou do pai de duas crianças colhidas pela doença, que escolhe deixar-se enterrar com elas a abandoná-las na vala comum. 
O signo da melancolia faz-se presente mesmo a vivenda que se torna refúgio dos jovens fugidos da cidade doente. Fusões costuram o sangue dos mortos, ou as maçãs perigosamente infectadas, com as flores vermelhas que tingem o gramado verde. E a violência da morte vizinha interpenetra-se nas histórias narradas pelo grupo: o bobo enredado, a vingar-se com insuspeitada violência pela peça que lhe pregam, desdobra-se no mancebo toscano que lhe conta a história e, no fim dela, mimetiza-lhe os trejeitos; a borboleta prenunciadora de desgraças, que se afoga na taça da jovem apaixonada, estende os seus eflúvios da ficção à realidade: ao fim da história, é a morta quem narrará o desenlace de sua existência, visitando empiricamente os jovens que lhe dão vida. 
Ao fim e ao cabo, Maravilhoso Boccaccio não se afasta tanto assim de César deve morrer: entremeia, ele também, vida e arte, ambas instâncias consubstanciais. A literatura de Boccaccio presentificava as histórias narradas, tomando os âmbitos da ficção e da ficção-dentro-da-ficção como fios de um mesmo tear. 
A peste tão próxima, que visita a História como a história em microcosmo que o livro tece, aproxima uma e outra, dando a tudo foros de verdade. A fotografia dos Taviani trata as duas instâncias com o mesmo fulgor, recusando-se igualmente a separá-las, impondo-as ao espectador com uma mesma incontornável presença. Presença potencializada pela música rediviva de Rossini, Verdi e Puccini – distantes temporalmente centenas de anos do texto de Boccaccio, no entanto eternas como ele. 
Há que se dizer um mundo sobre o papel afetivo desempenhado pela música desses três senhores, nesses nossos corações latinos tão eivados da pieguice importada d’além-mar. Além do valor histórico das óperas italianas, fundadoras de um imaginário de pátria – assim como a literatura de Boccaccio fundara uma língua – está o poder de comoção desta trilha que embalou a travessia de tantos dos nossos ascendentes pelos descaminhos da vida. As lágrimas apenas não chegarão aos olhos do espectador cujo coração for feito de pedra...

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O teatro no cinema: “Cesar doit mourir” (2012), “Vous n’avez encore rien vu” (2011), "Traviata et nous" (2012)


Três bons filmes em cartaz por aqui atualmente trazem a mesma questão de fundo, a de como o cinema representa o teatro: “Cesar doit mourir” (Cesare deve morire, 2012), dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani, vencedor do Urso de Ouro de Berlim; “Vous n’avez encore rien vu”, de Alain Resnais e Bruno Podalydès, nominado à Palma de Ouro, e “Traviata et nous”, de Philippe Béziat. Cada um se debruça sobre um gênero distinto – a tragédia, o drama e a ópera – e sobre o passado, fazendo-o reverberar novamente no palco, a arte da presença, e enfim na tela do cinema, lugar em que o passado é embalsamado, como diz André Bazin... 
Digna de nota é não apenas a escolha do assunto, mas o mise-en-scène dessas produções. 

Cesar...” toma a tragédia de William Shakespeare “Júlio César”, recriando a Roma do bardo inglês no seio de Rebbibia, prisão de segurança máxima romana. Internos transformam-se nos reis, tiranos, escravos e homens livres. Transformam-se neles e os transformam. No contexto de tolhimento da liberdade em que se encontram, quanto mais se aproximam de seus personagens, mais eles conseguem dar voz aos seus temores e anseios. A obra de Shakespeare é, então, impregnada dos dissabores individuais daqueles homens, alguns dos quais jamais transporão os muros da detenção. 
A recíproca também é verdadeira. Eles conhecem bem os coups de théâtre, as reviravoltas repentinas que determinam o futuro dos homens. Por isso parecem tão bem talhados a encenar o percurso do rei que se torna tirano, acabando, enfim, assassinado pelo seu círculo mais próximo. A prisão transforma-se em laboratório e divã. E a arte exerce, enfim, todo o seu potencial disruptor: dá asas ao grupo, que descobre sua força ao transcriar a tragédia shakespeariana, e tolhe-a, ao encerrar a Roma eterna do dramaturgo inglês em torno das grades de Rebbibia. Cosimo Rega, um dos internos do complexo, o Cassio da obra, sintetiza bem isso ao constatar que as grades apenas se tornaram para ele uma prisão depois que ele descobriu a arte. 

Vous n’avez encore rien vu” toma como objeto o drama “Eurydice”, de Jean Anouilh, encenado pela primeira vez no Théâtre de l’Atelier em 1941. Drama que, por sua vez, recria a fábula de Orfeu e Eurídice. Neste caso a protagonista é atriz de uma companhia mambembe que se apaixona perdida e reciprocamente pelo jovem músico que encontra na estação de trem. O realismo fantástico conduz a ação. Depois de morta a jovem, o rapaz conhece seus antigos relacionamentos. Louco de amor e ciúmes, ele aceita a ajuda de um deles para tornar a encontrá-la, apenas para perdê-la novamente, já que não respeita as exigências do homem e a olha. 
Diferente de “Cesar...”, o drama aqui dá os braços a um fio de enredo: dois elencos antigos de “Eurydice” encontram-se depois da morte de seu autor – personagem fictício – por uma disposição testamentária dele. Juntos devem assistir a uma recente encenação do drama e opinar sobre ela: encenação simbólica, bem ao gosto contemporâneo. Sentados na sala escura do cinema tornado teatro, os artistas que outrora deram vida à peça são pouco a pouco impregnados pelos personagens, até que novamente tornam-se eles, encetando uma relação dialética com o teatro-filme apresentado no écran
Cenas fundamentais da obra são recriadas, várias delas experimentadas por cada um dos dois pares românticos que até então ocupavam passivamente a plateia. Aqui o que importa não é o sentido completo da criação, mas a poesia das palavras e dos gestos. No fim temos um encorpado exercício de desdobramento. Não mais uma, mas três Eurydices e três Orpheus se alternam para demonstrar a inexistência de sentidos fechados, unívocos, para a obra artística. “Eurydice” pode sempre renascer. Ainda mais no centro do palco, onde tudo é sempre novo. Uma homenagem ao teatro que se rende até mesmo a um explícito coup de théâtre, que não conto para não estragar a surpresa do espectador... 
Para o público brasileiro o filme apresenta dois atrativos especiais: Lambert Wilson, do ótimo “Homens e Deuses” (Des hommes et des dieux, 2010) como um dos Orfeus e Michel Piccoli do igualmente ótimo “Habemus Papam” (2011) como os dois pais. Eles desempenham-se num só tempo a si próprios e aos papéis de “Eurydice”. Teriam eles efetivamente composto os elencos de duas montagens distintas da peça? Não consegui responder a questão. Gostei no entanto, do entremear da ficção na realidade. 

Traviata et nous” percorre os bastidores da montagem da célebre ópera de Verdi para um festival ocorrido em Aix-en-Provence na primavera de 2011 (mise-en-scène de Jean François Sivadier, maestro Louis Langrée). Uma espécie de making of, diríamos à primeira vista – já que a encenação da própria ópera já está disponível para a venda –, não fosse o esforço que faz o documentário em negar a obra teatral para se concentrar na maquinaria que a engendra. 
Ideia luminosa, pois por mais eficiente que parece ter sido esta montagem, a ópera de Verdi continua a ser a boa e velha “La Traviata” cujas árias caíram nas graças do público há mais de 100 anos, espalhadas por meio do palco, de partituras, do cinema e do teatro – lembrem-se, no que toca ao cinema, da Júlia Roberts de “Uma linda mulher” (Pretty Woman, 1990) banhada em lágrimas ao som de “Amami Alfredi” ou do ébrio de Ray Milland acompanhando sedento os copos em “Farrapo Humano” (The lost weekend, 1945) enquanto o tenor entoa “Libiamo ne’ lieti calici” (como a-do-ro o humor negro de Billy Wilder...). 
Ao jogar luzes para o processo de criação desta montagem de “La Traviata”, Philippe Béziat repõe o interesse intelectual por essa ópera já tão conhecida. 
“La Traviata” é obra de grande espetáculo adaptada por Verdi de um grande sucesso literário e teatral de meados do século XIX – “A Dama das Camélias”, de Dumas. É de uma época de teatros ruidosos, claros, aos quais importavam especialmente o aparato cênico e a voz; daí o transbordamento geral dos gestos e das notas. 
Béziat opta por dar destaque ao detalhe. Portanto sublinha o trabalho de Sivadier no sentido de reduzir os cenários, multiplicar os símbolos e ajudar Natalie Dessay a criar uma Violeta cujo rosto expressa tanto quanto a voz. O filme evidencia bem o esforço do encenador, ao recortar a atriz em primeiros planos quando ela está mais plenamente mergulhada na personagem. Um mover de olhos, as mãos que acariciam o amado corpo imaginado, nascido de um arranjo de flores esquecido no proscênio. Fundamental na ópera, a voz torna-se aqui só mais um elemento da criação. O filme investe na elucidação do mise-en-scène que tornou possível o resultado final. 
Mas o resultado final a gente não vê. Esse e os outros dois filmes partem do teatro para torná-lo cinema, por isso eles me são tão interessantes nesse momento. Um truc fundamental nesse sentido é a inserção, em “Traviata et nous”, de uma sequência em que se sucedem fragmentos da morte de Violeta, tomados durante os ensaios. Serviriam eles como metáfora do cinema, que prima pela reprodução, ao contrário do teatro, ao qual importa o gesto final, perfeito? Ainda não sei. Mas o fato de a produção cinematográfica de hoje estar insistindo em questões como essas me entusiasma a pensar um pouco mais sobre elas.

Violeta aprende a fazer Alfredo presente
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A parte da resenha referente a "Traviata et nous" foi ligeiramente reformulada em 15/11. Demorei uns dias para me dar conta de que o diretor do documentário e o responsável pela mise-en-scène da ópera não eram as mesmas pessoas, e outros tantos dias para ter tempo de consertar meu equívoco...