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quarta-feira, 29 de maio de 2024

Topografia de um delírio – “O Gabinete do Dr. Caligari” no Theatro São Pedro


Crítica publicada em Notas Musicais a 15 maio 2024. 

O filme silencioso de Robert Wiene foi acompanhado pela Orquestra do Theatro São Pedro. 

O Theatro São Pedro vem eventualmente retomando a sua vocação ao cinema – o espaço foi inaugurado em 1917 como um cineteatro – e exibindo filmes silenciosos com acompanhamento musical ao vivo. Viver esta experiência é visitar nostalgicamente as sessões de cinema do passado: entre fins de 1910 e a década de 1920, existia uma variedade de estabelecimentos como o São Pedro, servindo ao público tanto espetáculos teatrais quanto cinematográficos, à medida de suas necessidades, ou ambos os espetáculos, já que, eventualmente, uma curta cena teatral antecedia a exibição de um filme, muitas vezes recuperando a temática da película a ser exibida. 
A experiência não é apenas nostálgica, mas também pedagógica. Acompanhar um desses programas cuidadosamente organizados pelo São Pedro colabora para a compreensão de como se organizavam as sessões de cinema na época em que a música desempenhava um papel capital durante a exibição – na ausência do texto falado, cabia à música dar voz às personagens, daí os grandes investimentos feitos neste âmbito, fazendo com que as orquestras consumissem, neste recorte de tempo de que falamos, grande parte das verbas empregadas na manutenção dos cinemas. A presença de músicos ao vivo na sala de espetáculo explicita outra característica deste cinema cuja produção foi descontinuada há quase um século: o seu hibridismo, a convivência existente entre o material já pronto e aquele gerado no calor da hora, enfim, o seu caráter teatral, já que nenhum espetáculo era igual ao outro. 
A exibição de O Gabinete do Dr. Caligari pelo Theatro São Pedro tem, além disso, uma função histórica inegável, entrando no escopo de esforços realizados a partir de, sobretudo, os anos de 1980, no intuito de se recuperar a espectatorialidade do cinema silencioso. Desta época em diante, além da contratação de compositores para a escrita de acompanhamento orquestral para filmes específicos, pesquisas historiográficas passam a ser desenvolvidas visando a recuperação dos acompanhamentos originalmente escritos para os filmes. 
Em 1920, embora estúdios compusessem partituras para os seus filmes mais relevantes e as comercializassem juntamente deles, as salas de cinema tinham autonomia para decidir a natureza da música que apresentariam, o que levava em consideração, por exemplo, o número de integrantes da orquestra – não era incomum que certos cinemas abrissem mão das partituras disponíveis, deixando ao pianista o papel de improvisador da música que acompanharia determinado filme. 
Das Cabinet des Dr. Caligari é uma obra paradigmática da presença do expressionismo no cinema. É uma obra de vanguarda, que busca romper com o realismo do cinema comercial, fazendo-o não do ponto de vista da construção cinematográfica (ou seja, de enquadramentos ou cortes inusitados, que surpreendam o público), mas sim da cenografia. Deste modo, abre mão da profundidade de campo oriunda da arte renascentista, em prol de cenários pintados que dão destaque às sombras e à deformação. Ao invés da realidade construída pelo cinema clássico, que se quer um recorte objetivo da realidade do mundo, o cinema expressionista procura fazer emergir as almas torturadas dos seus personagens. Não casualmente, esta estética é empregada por Robert Wiene na Alemanha recém-saída da 1ª Grande Guerra, momento em que o hediondo emerge como realidade comezinha.
O Gabinete do Dr. Caligari é também tributário dos estudos de Freud sobre a alma humana, que seriam depois apropriados por artistas mais comerciais ou menos – mesmo Alfred Hitchcock, que se une a Salvador Dali, em Quando fala o coração (Spellbound, 1945), para criar as sequências dos herméticos sonhos do protagonista, os quais, interpretados, desvendariam a autoria do assassinato de que ele era culpado. 
A obra de Wiene narra em flashback, a partir do ponto de vista de um jovem rapaz, a história de um suposto médico insano que exibe o sonâmbulo Cesare numa feira – o exibicionismo de indivíduos atípicos foi algo comum até os primeiros decênios do século XX. Para além da mera exibição, todavia, Caligari (Werner Krauss) instrumentalizava Cesare (Conrad Veidt) para que cometesse uma série de assassinatos nos locais por onde passava. 
A história acompanha o percurso de um jovem para provar às autoridades que o artista de feira era um criminoso. Cronologicamente apresentam-se ao público duas ações vis de Cesare: o assassinato do amigo deste rapaz e o sequestro da moça que ambos amavam. As investigações culminam na fuga de Caligari e na descoberta, pelo jovem, de que o homem usava o sonâmbulo para repetir os experimentos de um certo Caligari que vivera no século XVIII. As buscas levam o jovem ao hospital psiquiátrico do qual ele julgava que o criminoso era interno, ali descobrindo que Caligari se tratava, na verdade, de um médico. 
Ao fim e ao cabo, o homem desprovido de razão não era Caligari, mas sim o jovem que o investiga – o que o público descobre quando a câmera passa a assumir o ponto de vista do médico, que surge em cena sem os traços lúgubres com que fora pintado ao longo de todo o filme, traços que o jovem lhe atribuía. Assim, a cenografia do filme reproduz o olhar que o rapaz voltava ao mundo. O filme não é apenas ousado no que diz respeito à cenografia. Ele o é porque ludibria o espectador, fazendo-o aderir ao ponto de vista do jovem desprovido de razão, já que praticamente toda a história é contada por ele. 
A ação é acompanhada por uma música de cunho melodramático, que procura ressaltar a dramaticidade encenada e dar voz aos sentimentos das personagens. O som incidental também está presente – a exemplo, o soar da sineta com que Caligari convida o público a assistir ao seu espetáculo –, como acontece nos cânones desta música, que se espraia não só para as obras concertantes, mas também para a ópera e para o cinema, como se vê. A finalidade deste acompanhamento musical é realista, não havendo nele espaço para a ironia ou para uma leitura a contrapelo das imagens, que leve o público a questioná-las. 
De acordo com o release do espetáculo publicado no cultura.sp, o acompanhamento faz uso da música originalmente composta para o filme, de autoria de Giuseppe Becce, a qual soma música original do compositor e temas pré-existentes oriundos de Berlioz, Schumman e Wagner (música romântica, como se observa, grosso modo, no cinema desde meados da primeira década de 1900). 
O maestro Marcelo Falcão foi o responsável pelo arranjo da obra musical para a sua execução pela Orquestra do Theatro São Pedro. O resultado foi tão bem-sucedido quanto os melhores acompanhamentos musicais realizados para o cinema silencioso ao redor do mundo (a exemplo das Giornate del Cinema Muto de Pordenone, Itália). Como pesquisadora do tema que sou, só tenho a comemorar esforços como este realizado no Theatro São Pedro, no intuito de novamente dar voz às sombras silenciosas, levando-as ao encontro do público.

sábado, 3 de outubro de 2020

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2019: Dia VIII


Dia 8, 12 de outubro, sábado 

Último dia da Giornate. Theatro Verdi fechado ao público para o já tradicional ensaio da Orchestra San Marco, que acompanhará o programa que fecha o evento: “The Lodger” (“O inquilino”, 1927), obra da fase silente de Alfred Hitchcock. 


O dia começa no Cinemazero, cinema que, durante o evento, costuma receber uma (ótima) programação paralela voltada às escolas – programação na qual, vez por outra, esta que vos fala entra de penetra. Este programa é, todavia, um pouco mais árido. Denominado “Variações de The Blacksmith, de Buster Keaton e Mal St. Clair”, consiste num esforço de crítica genética realizada por Francesco Ballo e Federico Frefel. Ambos os pesquisadores colocam lado a lado a versão tradicional do curta de Buster Keaton e Mal St. Clair “The Blacksmith” (circa 1921-1922), e a versão recentemente encontrada pelo pesquisador argentino Fernando Peña, e exibida na Giornate em 2013, procurando demonstrar as diferenças substanciais entre ambas as versões. 

A sessão seguinte fecha com chave de ouro o programa Films on Films. Em cena, a espevitada flapper Coleen Moore é – literalmente – uma cinderela às avessas em “Ella Cinders” (Alfred E. Green, 1926). 


Os bastidores da indústria do cinema servem de pano de fundo nesta ficção que lança olhos sobre a trajetória de uma gata borralheira da Era do jazz band, mocinha que, fugindo do jugo da madrasta megera e de suas filhas, vai dar na Meca do cinema, onde acaba por conquistar o estrelado desempenhando... uma gata borralheira. O filme, oriundo de uma série publicada em tirinhas, introduz na diegese narrativa as nossas já conhecidas tomadas do dia a dia dos estúdios e das estrelas cinematográficas da hora. Vislumbramos mesmo um iniciante Frank Capra, então recém chegado a Hollywood, efetivamente dirigindo o filme que então rodava com Harry Langdon – os deslizamentos entre a ficção e a realidade, como se vê, são inúmeros. 


Porém, o filme é delicioso sobretudo porque apresenta com verve práticas comuns àqueles anos em que o cinema se transformava numa indústria importante, como as escolas e estudos de manuais de interpretação (datados dos tempos das diligências, diga-se de passagem...). Em cena, Coleen Moore realiza (também de modo chistoso) o sonho de milhares de meninas de vida inglória, alcançando o sucesso à custa da surpresa infantil com que reagia aos castelos de ficção levantados pela máquina de fazer sonhos (a excelência dramática acidental da personagem rende as melhores sequências cômicas do filme). Essa borralheira na vida “real” e na ficção era a mimese do público alvo do cinema. 

Em seguida a Coleen Moore, vemos o terceiro e último episódio do rocambolesco seriado norte-americano “The Great Gamble” (1919). Retornando ao Theatro Verdi, passamos pela enorme e deliciosa feira-livre que se espraia pelo centro da cidadezinha aos sábados. Suas iguarias servem-nos como o almoço derradeiro daquela semana de festival. À tarde, preparamo-nos para nos despedirmos de William Hart. 


Desta vez, Hart é o “mentiroso” Keno Bates de “Keno Bates, liar” (William S. Hart, 1915), é o “Jim Rawden” de “Blue Blazes Rawden” (William S. Hart, 1918). Separados por três anos, ambos – diz o Catálogo – testemunham o processo de transformação dos filmes de dois rolos em filmes de cinco rolos. Há, concomitantemente, o incremento na construção da personagem protagonista, que, enquanto precisava ser rapidamente identificada pelo público nos filmes de cerca de vinte minutos – daí a caracterização das personagens à flor da pele –, poderia ter suas características desdobradas nos filmes de uma hora de duração. 

Feita esta ressalva, observamos modelarmente em funcionamento, nesses dois filmes, a lógica do studio/star system. Estamos diante de dois típicos westerns de Hart, espaços em que a fronteira entre o bem e o mal é tênue e a moral se constrói à bala. Em ambos há o esforço deste protagonista finalmente bafejado pela moral (que é, como sempre, mais religiosa que jurídica) de proteger a família do bandido que ele matou; em ambos, a tentativa de reduzir-se a mulher indígena ao jugo do colonizador branco – a grande e trágica metáfora da colonização das Américas. 


A última tarde do festival teve como fecho outro filme de Reginald Dennis, ator que é uma das minhas grandes descobertas desta Giornate, “Skinner’s dress suit” (William A. Seiter, 1926), comédia cujos quiproquós giram em torno do caríssimo terno do título, imposto a Skinner – arraia-miúda no mundo dos negócios – pela mulher (Laura La Plante, também sua co-protagonista na joia “What happened to Jones”). Desnecessário dizer que o moço logo se verá sem a possibilidade de pagar pelo terno, uma vez que perde o emprego (são impagáveis as cenas em que ele, precisando do figurino para dar um grande golpe no mundo mercantil, vê-se obrigado a perseguir o alfaiate que vem de recuperar a encomenda). 

No desfecho, o obscuro Skinner se transformará num grande negociante ao longo de um número de dança que é um elo perdido entre os primeiros filmes que flagravam os gêneros musicais da moda, como o jazz, e os musicais da aurora do cinema falante. A escalada do protagonista é também aquela dos ritmos musicais modernos, bastante criticados na entrada dos anos de 1920, perfeitamente incorporados ao gosto do público cinematográfico no final da década. 


À noite é o momento de revermos “The lodger” (1927). O filme, que encerra oficialmente a Giornate – com acompanhamento pela Orchestra San Marco e regência de Ben Palmer – também marca a comemoração dos cem anos de Alfred Hitchcock. Tivemos acesso à nova restauração da obra realizada pela BFI, orquestrada pelo grande Neil Brand. Imagem deslumbrante como eu, hitchcockiana desde criancinha, jamais imaginei possível. 


Neste filme de 1927 já observamos a consolidação de alguns traços característicos do mestre do suspense: no âmbito técnico, os primeiros planos altamente significativos, a decupagem cuidadosa – Hitchcock costumava se guiar por storyboards rigorosamente preparados antes de começar a filmar –; e, no temático, a fascinação pelos desvios de personalidade, o interesse patológico pelas louras (a grande temática deste filme, cujo enredo gira em torno da literal eliminação dessas mulheres). Seria um filme melhor se o diretor não tivesse de transigir com o star system e aceitasse transformar Ivor Novello (ídolo das matinês, então) em mocinho, ele que fora conduzido ao longo de toda a obra como se fora o vilão. Não podemos ter tudo. 

Hoje começa a Edição Limitada da Giornate, realizada de modo integralmente remoto. É uma substituta possível ao evento presencial, considerados esses tempos bisonhos. Embora a Giornate seja muito mais que os filmes que nela se exibem, é um refrigério podermos acessá-la virtualmente. Vamos então a ela!

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

“Eu sou Ingrid Bergman” (Stig Björkman, 2015)

Lendo as sinopses de filmes pregadas no mural de um cinema paulistano, deparo-me com este título, o – segundo o ranking de uma determinada revista – melhor em cartaz em São Paulo. Um longa-metragem passa, então, em fast motion pela minha cabeça. 
Eu sou Ingrid Bergman. 
Certas coisas estão impregnadas de memória afetiva. Dez, doze anos atrás, esbarrei em Ingrid Bergman num filme de Hitchcock, e ela definiu o meu destino. Dali por diante eu precisava conhecer toda a sua obra: e de roldão conheci Hitchcock, Rossellini, George Cukor, Anna Magnani e uma porção não desprezível do céu estrelado onde a divindade da Sétima Arte repousa. 
O filme em questão nem é o que de melhor fez Hitchcock. Trata-se de “Quando fala o coração” (1944), um melodrama com laivos de psicanálise e muito mel – violinos insistentes torturando o tema amoroso enquanto os olhares da Dra. Constance Petersen se cruzam com os de John Ballantyne, seu suposto colega de trabalho acusado, não muito tempo mais tarde, do assassinato do psicanalista-chefe da casa. “Vou te curar e, se isso acontecer, permanecer contigo” – diz a psicanalista apaixonada. 
 Meloso, mas Miss Bergman já está toda aí, com os óculos de grau que deformam a aparência estelar que a Hollywood clássica lhe buscava imprimir, com a assertividade da mulher profissional que não se deixaria tanger pelos homens ou pelas circunstâncias. Foi isso, talvez, que fez os nossos caminhos se cruzarem. 
O enredo do documentário tece-se a partir da primeira pessoa – dos diários que Ingrid manteve durante toda a vida, quiçá desde que começou a escrever. É lido no original sueco por Alicia Vikander – ótima jovem atriz que o Oscar acabou de notar – e corroborado pelas vozes de Pia, Isabella, Ingrid Rossellini e Roberto Rossellini, os quatro filhos da atriz. É curioso ver um Roberto Rossellini belo e bonachão, mistura de Ingrid e Roberto, homem que construiu a vida distante das câmeras: nem a genética, nem o nome de batismo já de saída célebre, parecem tê-lo feito se envolver mais do que esparsamente com o cinema. 
Com os filhos Roberto e Isabella
A mais conhecida do quarteto é Isabella Rossellini, que herdou o rosto da mãe – a semelhança é mesmo assustadora – e os cabelos do pai. E o talento de ambos, que, notado unanimemente na ocasião do lançamento de “Veludo Azul” (David Lynch, 1986), continua a ser exercido, nos campos da atuação cinematográfica e teatral, e da produção. Tem a sede da mãe, ao que parece, já que envereda agora pelas searas do experimentalismo. 
O quarteto invoca a mãe de modo muito semelhante ao que fizera no DVD de The Hollywood Collection dedicado a ela. A Ingrid ausente, envolvida invariavelmente com o trabalho, a ver os filhos apenas nas férias, recupera-se na Ingrid fantasmática, a se desdobrar na tela num sem-fim de filmes de família, rodados desde que a jovem atriz era uma promessa ainda não concretizada, na pequena Suécia natal. 
Em "Anastácia" (1956)
O filme é doce, aparando as arestas de uma vida turbulenta de modo como nem mesmo a própria Ingrid Bergman procurou fazer em sua autobiografia, onde ela narra sem pecha sua necessidade de sistematicamente deixar os filhos para ir atrás do trabalho e dos amores. É como se, passado tanto tempo desde a sua morte, após o que Cannes lhe erigiu um portentoso memorial comemorativo aos seus 100 anos, Ingrid tenha sido transmutada, mesmo na memória dos filhos, de mulher a mito. Não acredito que ela o quisesse – sempre disposta que estava a descer do pedestal e se desgrenhar, sujar-se das cinzas do vulcão e viver plenamente a carreira e a vida, sem que os liames comezinhos da sociedade a prendessem. 
O documentário sustenta-se como o esforço das quatro crianças de emendarem os pedaços de vida da mãe aos seus. A Ingrid Bergman divertida e carinhosa emerge dos depoimentos e das imagens: a abraçar os filhos, a brincar com eles. A vida é transformada em espetáculo por meio das imagens silenciosas que mostram uma Ingrid desempenhando a contento um papel para o qual ela era talhada apenas ocasionalmente – como se fora contratada para um saltitante musical-família da MGM, após o qual ela precisava de trabalho sério. Felizmente. 
Em "À Meia Luz", 1944
Nenhuma atriz, como ela, passeou com tanta segurança pela Hollywood Clássica e pelas novas ondas italiana e francesa. Negando os rótulos, foi mulher de vida airada quando sua imagem de mocinha já estava consolidada (em “O Médico e o Monstro”, Victor Fleming, 1941); meteu-se com o Neorealismo Italiano e com Rossellini (em “Stromboli”, 1950) quando era a atriz mais celebrada nos Estados Unidos; no exílio obrigatório de quase dez anos, pela “imoralidade que cometera”, trabalhou com Jean Renoir e acabou por ganhar um Oscar, capitulação cabal de Hollywood... Gostava de um desafio – sua filmografia é um belo passaporte para um apaixonado por cinema adentrar pela cinematografia dos anos de 1930-1980. 
O documentário passeia por estas veredas todas, mas concentra-se na imagem da mãe. A Ingrid Bergman que eu amo é mais ardida que essa: como a Alicia Huberman de “Interlúdio” (Hitchcock, 1946), é meio a ébria, meio a prostituta, meio a santa, meio a apaixonada. A esta Ingrid eu devo a minha fascinação pela sétima arte.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Oscar 2013. Parte 5: “Hitchcock”

“Hitchcock”, de Sacha Gervasi, é outro que presta homenagem ao cinema clássico. Homenagem de qualidade média, é preciso que se diga, malgrado o interesse do assunto escolhido: a carreira de Alfred Hitchcock no final dos anos 50, mais especificamente a faixa de tempo que compreende desde o sucesso de “Intriga Internacional” e até o sucesso retumbante de “Psicose”. 
Desnecessário dizer que o filme faz hagiografia. O tema é sagrado demais, e o público-alvo demasiado dado a sacralizações, para que um filme sobre Hitchcock vença o panegírico e mergulhe na humanização do mito... 
O original e a cópia
Falei meses antes sobre o ótimo “Fascinado pela Beleza”, em que Donald Spoto esmiúça a relação conturbada que Hitchcock tinha com o sexo feminino, sobretudo a esposa e muito especialmente as estrelas com as quais trabalhava. Nada disso há neste “Hitchcock”, cujo título tem a pretensão de englobar a universalidade da obra e das personas privada e pública do mestre do suspense.
Hitch aqui é o genial beberrão que apenas intimidava Janet Leigh visando tirar dela a excelência, e que no final das contas amava apaixonadamente sua Alma Reville – prova é o romântico beijo público que Sacha Gervasi faz as personagens do diretor e de sua esposa trocarem no final, enquanto compartilham dos aplausos pelo sucesso de “Psicose”. 
Hitchcock (Anthony Hopkins) e Alma Reville (Helen Mirren)
Trágico que, nesta altura do campeonato, Hollywood ainda tenha de se apoiar no happy end para vender seus produtos. Porque não necessariamente uma leitura do cinema clássico precisa copiar-lhe o epílogo (exemplo claro é “The Master”, que com qualidade relê a época com olhos modernos). O roteiro de “Hitchcock” possibilitava andamentos mais argutos que esse. 
Scarlet Johanson, Janet Leigh, na
antológica cena do chuveiro
 
Exemplo? O Hitch de Hopkins (que está bem como o personagem título, embora eu o tenha achado algo posado nalguns momentos, como se ele fosse o medalhão vivo do biografado) diz: “Em Hollywood, o diretor apenas é tão bom quanto a sua última obra.” E o filme, ao invés de ler a assertiva pela chave dramática, demonstrando o terror que é a necessidade constante de se superar no métier para ser bem considerado, ao invés de dar relevo aos contornos trágicos daquele homem de ego imenso cuja saúde se deteriorava e as relações interpessoais idem, ao invés disso tudo decide por uma abordagem upbeating, que toma Hitch como o homem de visão privilegiada que luta contra tudo e contra todos para ver sua obra-prima na tela branca. Ao fazer isso, a obra acaba por tomar “Psicose” como a maior das obras do diretor, confundindo o seu sucesso de público nos cinemas com a sua qualidade empírica. 
Um Hitchcock afável pega carona no carro da estrela
Não, não estou pintando a anti-imagem de Hithcock – que, diga-se de passagem, para mim é um deus. Porém, desde meu ponto de vista, seria intelectualmente mais estimulante que o público descobrisse a genialidade do homem por si só, ao invés de vê-la ensinada por a + b no correr deste “Hitchcock”. 
Mas o filme enfrenta um problema ainda mais sério: sua falta quase que completa de ritmo. Ele é escolar, notamos desde o princípio. Documentalmente escolar, logo perceberemos decepcionados, pois escapa de todas as chances que tem de construir tensão e suspense em prol da mais convencional das narrativas, que soma uma leitura açucarada do relacionamento de Hich com sua senhora e com sua estrela; e que prefere todo o tempo agrupar fatos de pesos semelhantes em detrimento de construir uma narrativa que estabeleça momentos de clímax (coisa que o biografado tão bem sabia fazer). 
“Hitchcock” não é um filme ruim, mas não alça grandes voos – tampouco os intenta. É, portanto, esquecível. É óbvio, coisa que Hitchcock não era. Duvido que o diretor aprovasse essa homenagem que lhe prestam, mesmo sendo narcisista como era...
*
Só agora percebo que nada disse sobre Helen Mirren, que desempenha no filme a esposa do diretor. Talvez porque o papel que deram a ela seja apagado demais... Mesmo assim, Mirren está bem, como sempre. Uma pena não terem lhe ampliado as possibilidades de brilhar. Ela certamente não decepcionaria. 

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Hitchcock, o gênio assombrado


Ninguém mais ou menos familiar com a obra de Alfred Hitchcock é capaz de negar que ela apresenta um denso compêndio de neuroses.
Nela desfilam homens feridos física e/ou psicologicamente por armas às vezes tão mortais quanto desconhecidas. Homens fechados ao relacionamento amoroso, como o agente da inteligência norte-americana em tempos de guerra Cary Grant, de “Interlúdio” (Notorious, 1946), que convence a mulher de costumes fáceis Ingrid Bergman a se juntar aos Aliados, casando-se com um espião nazista. Homens aos quais a Guerra só fez emergir um complexo pré-existente, como o suposto médico e suposto assassino Gregory Peck de “Quando fala o coração(Spellbound, 1945), curado com a conjuração da psicanálise freudiana pela Dr. Constance Petersen (novamente Ingrid Bergman). Homens esquivos como o taxidermista Norman Bates de “Psicose”, que cobre com a capa da afabilidade outro feixe de complexos altamente tributários de Freud; cuja relação com a mãe se desdobra do complexo de Édipo para a projeção/identificação. 

Ou voyeristas como o fotógrafo ao qual James Stewart dá corpo em “Janela Indiscreta” (Rear window, 1954), a fugir da relação de carne e osso com a bela Grace Kelly para mergulhar o olhar na apreciação detalhada da vida alheia, a partir das lentes de aumento da teleobjetiva. 
Uma mente sã certamente não seria capaz de engendrar tais fantasmas. O próprio Hitchcock tratou de construir literatura a seu respeito, como forma de estabelecer os lastros reais, biográficos, das fantasias que dirigiu. A longa entrevista dada já no fim da vida a Truffaut é preciosa por mostrar, no esmiuçamento de alguns personagens, o quanto eles dialogam com as neuroses de seu diretor. A prisão que os pais lhe teriam impingido certa vez, quando ele ainda era garoto, se reproduz cinematograficamente, na sua obra, numa série de indivíduos atados. Atados, muitas vezes, por algemas empíricas, como a lourinha June de “O inquilino sinistro” (The lodger, 1927), presa pelo noivo como um simbólico (e sinistro) prelúdio do casamento; Madeleine Carroll, a quem Robert Donat subjulga nos “39 Degraus” (The 39 steps, 1935), a união forçada transformando-se rápido na aproximação amorosa; ou a algema do suspeito de terrorismo de “Sabotador” (Saboteur, 1942), a qual o tio cego da mocinha simbolicamente não enxerga – enquanto que a deficiência visual o faz ver aquilo que a aparência não mostra; a inocência do jovem perseguido. 
Os objetos cênicos adquirem valor simbólico nos filmes do mestre do suspense. Isso, claro, não é exceção em sua obra. Ocorre em todo grande cinema. Mas falamos de Alfred Hitchcock, que transformou-se a si num de seus mais interessantes personagens. O legado tão precioso que ele deixou à cultura não poderia deixar de motivar reflexões sobre a mente que o construiu. 
Um trabalho notável neste sentido é Fascinado pela beleza, de Donald Spoto, estudioso de cinema com longa lista de publicações na área e cujo estudo sobre a obra de Hitchcock gerou uma tríade de livros, da qual este é o último. Spoto abre o volume com uma longa lista de agradecimentos às atrizes que ele entrevistou. Nomes como Ingrid Bergman, Grace Kelly, Kim Novak, Eva Mary Saint, Tippi Hendren – praticamente todas as protagonistas figuram nela. Ao fim, uma bibliografia igualmente volumosa explicita que a obra não é fruto de meras conjecturas. Estas partes do texto são fundamentais, pois as conclusões da análise de Spoto são estrondosas. 

Os críticos que torcem o nariz para a leitura biografista do objeto artístico terão dificuldades de debelar a argumentação construída pelo crítico. Spoto soma às entrevistas com as atrizes, atores, roteiristas e assistentes, a análise dos textos originais dos roteiros dos filmes e outros documentos de produção, para pintar com cores penetrantes a imagem do homem Alfred Hitchcock: encarcerado no seu tipo físico de glutão, apaixonando-se como um jovem romântico por suas estrelas ao ponto de desejar possuir-lhes o corpo e a mente. 
Pode-se, no início, acusar o sr. Spoto de sensacionalista ou bradar acerca da inutilidade de sua empreitada. 
Mas em certos trechos brilhantes, em que o crítico consegue alinhar as informações de suas fontes ao rendimento cênico de sequências de alguns filmes, só nos resta concordar com ele. Um exemplo é a análise de como sua paixão por Ingrid Bergman, explicitada em convites para martinis noturnos e na escritura de uma cena de “Quando fala o coração” que claramente aludiria a esse sentimento unilateral (a saber: a conversa entre a Dr. Petersen e seu apaixonado colega de profissão, que culmina com a seguinte resposta da doutora: “Ao me tocar você sente apenas seus próprios desejos e pulsações. Eles em nada se parecem com os meus.”), leva-o a tomá-la em primeiros planos extremamente emocionais, a tornarem-na feminina, frágil, monumental. 

Ingrid Bergman e Cary Grant, "Interlúdio" (1946)

Ingrid conseguiu manter seu diretor nas rédeas, conservando com ele uma relação de amizade para toda a vida. O mesmo não se deu com Tippy Hendren. Descoberta pelo diretor numa publicidade, a modelo sem qualquer experiência cinematográfica viu-se uma Eliza Dollittle nas mãos de um Pigmalião (ou nas mãos de um Svengali, como o próprio Hitchcock  se chamava, variante do homem que molda um ser que sacie seus próprios desejos). No pico de sua popularidade, o diretor julgava-se intocável (e efetivamente o era, como prova Spoto). Daí as tentativas de afastar Tippi Hendren do restante dos elencos de “Os Pássaros” (The Birds, 1963) e “Marnie” (1964), de colocar, no encalço da atriz, informantes a relatarem seus passos, de lhe fazer propostas explícitas. Presa por um long term contract, Hendren não via escapatória. 
Ela era a versão humana da doentia relação amorosa que vive com Sean Connery em “Marnie”. Em entrevista, Hendren conta que, durante a rodagem deste filme, Hitchcock lhe informara de que, daquele momento em diante, ela deveria estar completamente disponível para ele; sexualmente, inclusive. Spoto lembra do que a personagem de Connery diz a Marnie a certa altura do filme: “Você acha que eu sou algum tipo de animal que você enredou”, diz ela. “É isso mesmo o que você é. Dessa vez peguei algo realmente selvagem. E pretendo mantê-la em minha posse.”, ele retruca. Em rompantes românticos, o diretor externava à sua estrela os sonhos cinematográficos que nutria com ela (“Sonhei que os raios do sol entravam pela nossa casa pela manhã”...), tal e qual um garoto incapaz de diferenciar ficção e realidade, ou então alguém demasiadamente enredado pelas imagens em movimento, desejoso de tomar objetivamente parte delas. O que fazer quando o garoto iludido é, ao mesmo tempo, o artista criador da ilusão? 
Ingrid, Hitch e Gregory Peck nos bastidores de "Quando fala o coração" (1945)

Spoto faz um trabalho relevante de desvelamento do eu conturbado de Hitchcock. Um trabalho fundamental, aliás, malgrado a animosidade com que o receberam os fãs mais ferrenhos do mestre. Puxado o véu, a imagem que aparece dele está longe de ser bela, mas ela ajuda a dar complexidade à reflexão sobre a Sétima Arte. 
O analista fala muito bem sobre os medos recônditos de Hitchcock emergirem, na imagem cinematográfica, por meio de símbolos. Há nessa assertiva um tanto da psicanálise que interessou ao diretor em dois pontos fundamentais de sua filmografia, distanciados quase 20 anos um do outro: “Quando fala o coração” e “Marnie”. Há, todavia, outro tanto de cinema. A imagem prenhe de sentido, ao ponto de atingir o valor de símbolo: esta não é também a especificidade do cinema? Hitchcock não nos deixa perder de vista o parentesco entre o símbolo que confere perenidade ao cinema e o símbolo por meio do qual o psicótico transfigura a realidade, já que é incapaz de lidar plenamente com ela. 
O cinema foi o divã e a fábrica de sonhos de Alfred Hitchcock. Deu-lhe a possibilidade de apresentar seus fantasmas à apreciação das massas. Exímio contador de histórias visuais que era, fê-las mergulhar em universos vários, na esteira das estrelas e de suas histórias de mistério. E acabou, ele próprio, por mergulhar neste mundo de faz-de-conta, Svengali sedento de novas Trilbies às quais pudesse transformar em rainhas para depois por elas se apaixonar. 
Kim Novak, "Um corpo que cai" (1958)

Há em sua trajetória muito do doentio percurso da personagem de James Stewart em “Um corpo que cai” (Vertigo, 1958), como bem observa Spoto. Apaixonando-se por uma mulher que não existe, já que é fruto da ficção inventada por um ex-colega de colégio no intuito de ludibriá-lo, Jimmy leva toda a segunda parte do filme a recriar a tão desejada figura feminina. Lá está ela, finalmente, à sua frente, arremedo quase perfeito da jovem supostamente louca e suicida: inclusos os cabelos louros que ele mandara tingir (os louros cabelos desde sempre objetos de desejo do fetichista Hitchcock) e o tailleur cinza que ele lhe comprara. Faltava apenas que ela prendesse seus cabelos num coque, e ele obriga a pobre moça a realizar o gesto final de despersonalização e, assim, dar acabamento à ficção. Anos depois Hitchcock diria a Truffaut: “era como se a mulher estivesse pronta para o amor, mas ainda assim se recusasse a tirar a calcinha”. A máscara corresponde ao desnudamento completo. Mais hitchcockiano que isso, impossível. 
Hitchcock e o apaixonado a quem James Stewart dá corpo, criador e criatura, descobrirão tarde a impossibilidade de realização completa da quimera. Porque, por mais deleitantes que possam ser as imagens cinematográficas, elas não passam de imagens: contornos feitos de luzes e sombras sem vida própria além daquela que nós lhes conferimos quando nelas nos detemos.

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Para quem se interessar pelo livro, segue sua referência completa: Fascinado pela beleza: Alfred Hitchcock e suas atrizes, de Donald Spoto, publicado pela Larousse do Brasil em 2009. A Estante Virtual oferece edições novas a preços bem convidativos. 
As citações dos livros, mesmo as entre aspas, foram tomadas de orelhada. Eles estão em minha prateleira e eu, na estrada...

sábado, 13 de agosto de 2011

Os 112 anos de Hitchcock: notas sobre “Um corpo que cai”, a indústria do cinema e outras cositas mais


Hoje os cinéfilos precisam comemorar: faz 112 anos que nasceu Alfred Hitchcock (13/8/1889-29/4/1980).
O que dizer desse inglês de alma cosmopolita cuja impecável sensibilidade artística gerou uma das obras mais densas da cinematografia mundial? Eu o amo apaixonadamente desde que era menina. Para mim, ele é quem melhor resume a Sétima Arte. Suas obras repletas de cenas de perseguição, grandes romances, traços detetivescos e bom-humor convidam o grande público à diversão. Porém, os elementos do melodrama rocambolesco são sempre sutilmente desvirtuados, para que saciem o gosto do público sem que traiam a arte.
Da primeira vez que vi “Um corpo que cai”, “Janela Indiscreta” ou “Psicose”, eu, que então devorava loucamente Agatha Christie, só queria descobrir o mistério que se escondia por detrás das personagens de Madeleine Elster, Lars Thorwald e Norman Bates. Quinze anos depois, volto a essas obras ainda com avidez. O diretor é um bruxo danado – algumas das faíscas que iluminam suas produções só se fazem visíveis para o espectador insistente.
Eu sou das devotadas, ao ponto de voltar pela 15ª vez a um filme como “Interlúdio”, por exemplo, mesmo que conheça de cor enredo e diálogos, apenas para prestar atenção nas tomadas, no modo como os planos são montados, na composição dos quadros, nas trucagens. Nem sempre dá certo. Mesmo que agora eu tenha mais maturidade e instrumentos críticos para captar as nuances dos diálogos ou o simbolismo dos objetos, muitas vezes acabo mesmo é enredada pela história. Ainda continuo torcendo para Cary Grant conseguir arrancar Ingrid Bergman da casa infestada de espiões nazistas; para ver Grace Kelly finalmente se colocar em posição de igualdade com o solteirão convicto Jimmy Stewart e, assim, dobrá-lo; para a velhinha informante de “A dama oculta” (1938) escapar do trem e cantarolar ao governo inglês a informação secreta em forma de melodia; para o belo Laurence Olivier se livrar do fantasma de Rebeca...
Tomar de passagem a filmografia de Hitchcock, apenas para o mérito da homenagem, geraria simplificações desnecessárias. Pelo menos 20 de suas 50 obras pedem mergulhos profundos que, infelizmente, não tenho meios de dar neste momento. Portanto, deixo os leitores com um bate-papo que Isabella Batista de Souza e eu fizemos sobre Hitch - e especialmente sobre "Vertigo"/"Um corpo que cai” (1958) - no final de 2010. Como eu, Isabella é da área de Letras. Vasculhando a internet em busca de referência sobre o filme para um trabalho de final de disciplina (na UFMG), ela trombou com o post que escrevi sobre ele em março de 2010. A conversa a seguir reflete o desejo dessas duas colegas de formação de entender o maior dos Hitchcocks.

I: Hitchcock é considerado o mestre do suspense e um dos melhores diretores de todos os tempos. Por que ele conquistou tamanha importância no cenário cinematográfico?

D: A obra de Hitchcock como um todo é importante para a história do cinema porque ele conseguiu elevar o filme de suspense (considerado até então um gênero menor) a objeto de arte. Os produtos do gênero hoje são influenciados pela obra do diretor – embora a massa dos filmes de suspense produzidas em nossos dias não chega aos pés da produzida por ele.
Todavia, embora hoje ninguém negue que o diretor é um dos maiores de todos os tempos, sua obra demorou para ser aceita pela Academia (apenas uma vez uma obra sua foi premiada com o Oscar de Melhor Filme – “Rebeca”, de 1940 – e ele nunca recebeu o prêmio de Melhor Diretor). Até a altura dos anos de 1960, Hitchcock era, no geral, considerado como mais um diretor da indústria do cinema, desejoso apenas de agradar o público para vender seu produto. Foi nessa época que os cineastas vanguardistas franceses enxergaram uma unidade em sua obra, o que respondia ao conceito de “autoria” criado por eles. Significava grosso modo que, mesmo produzindo seus filmes no centro da indústria cultural, alguns diretores teriam conseguido se descolar dos parâmetros meramente mercadológicos criados por ela. Exemplos de diretores de cuja obra se poderia depreender um estilo autoral seriam John Ford e Hitchcock: se se analisasse suas obras completas, seria possível perceber nelas o desenvolvimento e amadurecimento, ao longo do tempo, de alguns traços ou temas. Em 1962, François Truffaut, fundador da revista francesa Cahiers du Cinema, conduziu uma série de entrevistas históricas com Hitchcock, buscando derrubar por terra a ideia vulgarizada de que o diretor não produzia obras dignas de debate. As entrevistas, compiladas em português no ótimo Hitchcock/Truffaut: entrevistas, foram fundamentais para a mudança de posicionamento da crítica acerca da obra do diretor.

Vertigo, embora tenha sido um fracasso de bilheteria, está entre os 100 melhores filmes, de acordo com o Instituto de Cinema Americano. Por que essa obra carrega tão grande importância na carreira de Hitchcock e no cinema, em geral?

Bem, a questão da recepção das obras cinematográficas é curiosa. Nós hoje pouco sabemos sobre alguns filmes que geraram grandes bilheterias no seu tempo, porém, consideramos grandes obras outros que foram fracassos de público. Não convém levantar os motivos disso, que são muitos (e duvido que eu conheça todos), mas eles têm relação com uma série de fatores. Apenas um exemplo: No começo do cinema sonoro, os primeiros filmes musicais de Al Jolson (protagonista de “The Jazz Singer”, 1927, o primeiro filme sonoro rodado) foram assistidos por grande parte da população norte-americana, curiosa por ver nas telas pela primeira vez a sincronização de som e imagem. Hoje, poucos conhecem este artista e muitos de seus filmes são considerados apenas por sua importância histórica, já que não têm grandes qualidades artísticas.
Não podemos nos esquecer também de quão importante é a publicidade para a venda de um filme. A indústria norte-americana do cinema descobriu isso logo nos anos de 1910. Os departamentos de marketing eram peças importantes dos estúdios, tornando públicas as imagens dos artistas e as películas que faziam. Hollywood construía estrelas – mudava os nomes dos artistas que contratava, lhes inventava biografias chamativas, tudo isso para torná-los interessantes para o público que ia ao cinema e alimentava a indústria. Essa sede que o público tem hoje de conhecer as vidas das celebridades vem daquela época.
Hitchcock, como todos os outros diretores, sabia que o interesse do público era motivado por razões que nem sempre tinham relação com a esfera artística, por isso seus filmes foram tão bem sucedidos na época. O melhor exemplo talvez seja o caso de Psicose (1960): O diretor fez uma campanha junto ao público de “Não conte o final do filme para ninguém, para não estragar o prazer do espectador de conhecê-lo por si mesmo.” (isso pode ser conferido nos extras da edição do filme distribuída pela Paramount). Ele criava suspense junto ao público com relação à sua própria obra, ou seja, acima de tudo era um bom negociador. Além disso, era conhecedor do público que assistia aos seus filmes, portanto, elaborava as cenas objetivando determinadas reações das plateias. Isso fez com que parte considerável de sua obra tivesse obtido sucesso de bilheteria.
Tal sucesso não aconteceu com Vertigo, que, no entanto, teve cerca de 1 milhão e setecentos mil dólares de lucro (segundo informação do IMDB). Na entrevista a Truffaut, Hitchcock vê o filme como um fracasso porque afirma que as bilheterias apenas cobriram os gastos – estamos falando de um diretor que respeitava bastante a opinião do público. Isso considerado, é visível que o diretor não via no filme a relevância que hoje vemos nele. A análise retrospectiva da obra que ele nos deixou, no entanto, nos permite considerá-lo um dos mais importantes, porque nele o diretor atinge a excelência no manejo de temáticas e elementos com que trabalhou durante sua carreira: a sexualidade, as taras que se escondem na vida privada do homem burguês, etc.

Hitchcock, a esposa e a equipe de filmagem na Europa dos anos de 1920

A linguagem da câmera, os planos, o próprio nome do filme (Vertigo) – todas essas expressões carregam significados. Na resenha sobre o filme, você fala de como o “modo como imagens e sons se agrupam dizem mais sobre os personagens que o enredo”, exemplificando a primeira cena, em que John Ferguson e Midge Wood se encontram. Quais recursos o diretor utiliza para expressar características dos personagens, além das explicitadas no enredo? E quais são essas características?

Eu tentei pontuar um pouco isso ao longo da resenha (que, aliás, foi escrita numa tarde e não tem qualquer intenção de fechar uma interpretação da obra). Quis dizer que o enredo de Vertigo é básico comparado à excelência com que ele é construído cinematograficamente. Essa cena que você sublinhou, por exemplo. De acordo com o enredo, nela precisamos ficar sabendo que John está doente e recebendo apoio da amiga, que sente por ele um amor platônico. Quantas vezes não ouvimos histórias assim? Isso beira a subliteratura. Porém, o trabalho de Midge, o silêncio com que ela escuta o que lhe fala o homem e o modo como ela o olha quando ele menciona o episódio do casamento, bem como o modo como ela o ampara quando ele despenca da escada, trazem à tona essas ideias de modo incrivelmente conciso e denso, o que torna a cena tão fascinante.
Hitchcock é notório por escolher obras literárias menores para transformar em filmes. Perguntado por Truffaut sobre porque nunca havia adaptado nenhum clássico, afirmou algo como: “Porque essas obras têm muitas palavras e todas são importantes.”. Nós, que somos da Letras, devemos atentar a isso: o diretor percebe que o mundo construído pelos grandes romancistas passa pelas palavras que escolheram utilizar – retirar uma palavra do todo seria destruir a obra. Isso fica claro tão logo vemos as adaptações cinematográficas de Memórias Póstumas de Brás Cubas ou Dom Casmurro – as piores são aquelas que desejam com mais veemência copiar literalmente a obra de Machado de Assis para as telas. Em Vertigo, Hitchcock estava interessado em trabalhar as ideias de modo cinematográfico (o que, aliás, é uma constante na produção dele). Por isso nessa cena faz uso de símbolos para mostrar a força de Midge e a fraqueza de John. O modo como a cena é organizada através da montagem diz mais que quaisquer palavras. Por exemplo (sem nenhuma intenção de fazer uma análise exaustiva): O sutiã que a mulher desenha mostra seu papel empreendedor. Ele não é usado como um símbolo da inferioridade feminina com relação ao homem, mas sim simboliza o papel da mulher que trabalha. Neste sentido, contrapomos Midge e John: ela ganha seu próprio dinheiro, ele foi aposentado por problemas psicológicos. O modo irreverente como ela trata a sexualidade ao longo da cena mostra que ela é assertiva, enquanto a fragilidade de John torna-o passivo. Ao mesmo tempo, vemos que ela ainda é apaixonada por ele. Esses elementos, trabalhados na composição dos quadros dessa cena e na montagem dela, serão trabalhados ao longo do filme – quando Midge cuida de John no manicômio, quando cola seu rosto no corpo da suposta antepassada de Madeleine, no quadro que pinta, etc.


com Janet Leigh (Psicose)

Nesse mesmo post você fala, também, da maneira que, na visão de homem apaixonado de John, a mulher “misteriosa” se assemelha a um objeto de arte. Quando isso acontece e quais os símbolos responsáveis por tal interpretação?

Hitchcock emoldura a personagem de Kim Novak – você percebeu isso bem ao apontar, abaixo, a moldura que envolve o perfil da atriz, assemelhando-a a uma estátua grega. Isso também é patente na cena da floricultura e, imediatamente depois, na do museu de arte. A composição de imagens nessas duas cenas se assemelha: Na primeira, John abre uma porta no final do beco e dá num lugar incrivelmente florido; na segunda, a fria construção do museu recebe um quadro de temática e cores análogas. Ambos os lugares convidam o mergulho na imagem (o mergulho na ficção, por parte do personagem principal que observa a cena e por parte do espectador, que, por tabela, a vê). Isso também pode ser lido como uma metáfora no mergulho do espectador no objeto produzido pela Sétima Arte: teóricos na época ressaltavam o papel da montagem cinematográfica na identificação do espectador com a história apresentada nas telas. Lembra-se da Rosa Púrpura do Cairo, quando a personagem de Cecília é convidada pelo mocinho do filme a entrar na tela? Woody Allen tornou literal a metáfora da projeção do espectador no filme.

Em várias cenas, as molduras são presentes no cenário (em alguns, com abundância). Na cena em que John vê Madeleine, pela primeira vez, há um momento em que ela se levanta da mesa, com sutileza, ao fundo uma moldura a envolve. Ela sai da mesa, passa por outra moldura, para e quando sai do restaurante sua imagem está em um espelho. Esses enquadramentos poderiam ser interpretados como uma metáfora do “segredo” do filme?

Do meu ponto de vista, essas composições sugerem o mistério que envolve a personagem (já que o mistério que a circunda é criado primeiramente pelo suposto marido dela e em seguida pelo próprio John); o romantismo com que o protagonista a observa; e, em última instância, a existência da mulher apenas enquanto construção ficcional – já que, como uma pintura, ela é apenas fruto da interpretação de alguém. Neste sentido, creio que podemos dizer que isso metaforiza o segredo do filme, sim.

Você diz que “Madeleine não é apenas uma mulher fugidia, ela é uma mulher que não existe (para perceber isso logo do princípio, o espectador precisa ver o filme uma segunda vez)”. Gostaria que você explicasse o porquê da afirmação de que “o espectador precisa ver o filme uma segunda vez” e falasse mais do envolvimento do telespectador, manipulado, ou não por Hitchcock.

Bem, eu escrevi o texto quando já tinha visto o filme umas dez vezes pelo menos. Uma obra de substância como essa vai se revelando para os espectadores aos poucos. Só prestamos atenção na relação entre o elemento pictórico e a ironia que envolve a personagem, por exemplo, quando já conhecemos o final da história – ou seja, depois que já sabemos que a misteriosa Madeleine não passava de uma simplória vendedora, e que a imagem de mistério dela foi construída para nós, como um pintor bom corrige as imperfeições de uma pessoa ao desenhá-la. Ao vermos o filme pela primeira vez, somos enganados tanto quanto Johnny. Depois de o vermos algumas vezes, conseguimos organizar seus símbolos em direção a uma interpretação. Sobre a manipulação do cinema, lembro os debates fomentados por Béla Balázs e Edgar Morin sobre o modo como a montagem direciona o olhar do espectador. No cinema, somos levados a enxergar com os olhos das personagens: quando uma personagem olha para determinado objeto, nós também o olhamos. Isso acontece pela alternância entre as objetivas indiretas (o olhar da câmera aos objetos) e as subjetivas diretas (o olhar do personagem aos objetos) – por exemplo, a câmera focaliza o personagem e, em seguida, focaliza o que ele vê. Esse movimento contínuo faz com que tenhamos a sensação de estarmos do filme, daí nossa identificação – ou seja, daí a sermos manipulados pelo diretor, já que é ele o responsável por organizar os olhares aos personagens, às coisas e os olhares dos personagens às coisas.
Hitchcock e Ingrid Bergman

sábado, 30 de julho de 2011

As parcerias inspiradas de Catherine Deneuve & François Truffaut: “A sereia do Mississippi” (1969) e “O último metrô” (1980)

“Potiche”, ao qual recentemente me referi aqui quando falei sobre o Festival Varilux do Cinema Francês, me obrigou a uma visitação na filmografia de Catherine Deneuve. Retorno do passeio extremamente impressionada – besta, para dizer a verdade – com a variedade e a qualidade dos trabalhos por ela realizados e as nuances que ela soube dar às personagens criadas sob as batutas de diretores muito diferentes: o português Manoel de Oliveira, o inglês Roman Polanski, os franceses Luis Buñuel, Jacques Demy, François Truffaut, para citar só alguns poucos. Duas das obras de sua filmografia que mais me impressionaram foram dirigidas por esse último: “Le dernier métro” e “La sirène du Mississippi”. Embora diferentes entre si, ambas conservam um bom humor, delicadeza e frescor análogos, o que as torna tão atraentes.
Falar sobre elas é uma missão algo difícil para esta cinéfila que carece de conhecimento da produção de Truffaut ou do cinema posterior a 1960, e que até dois meses atrás não havia visto de Deneuve mais que os dois clássicos lançados pela Folha em meados de 1990, “A bela da tarde” e “Indochina”. Por esse motivo, o post terá, como o leitor vai perceber, um agudo quê impressionista. Se ele não se salvará enquanto leitura da produção autoral de Truffaut, espero que se salve como propaganda. Ele e Deneuve alimentaram mais que uma ardente histoire de l’amour, como nos comprovam essas duas pérolas.

A primeira é um surpreendente thriller romântico-farsesco com pinceladas certeiras de Hitchcock. Não posso deixar de lê-lo em diálogo com a extensa e maravilhosa (tantas vezes já recomendada aqui) entrevista que o diretor francês fez com um Hitch já maduro, um bate-bola memorável em que ambos discorrem sobre o cinema com clareza e profundidade.
A produção cinematográfica do diretor inglês deixou recordação indelével no francês desde jovem – como o entrevistador deixa claro ao entrevistado inúmeras vezes. Truffaut entrevista Hitchcock em 1962; "Hitchcock/Truffaut: entrevistas" sai pela primeira vez em 67. A emulação bem humorada de Hitchcock feita por Truffaut na “Sereia do Mississippi” parece desdobramento natural daquela admiração. Emulação que ganha contornos próprio, distintos da obra do mestre, bem entendido. Mais que entrevistador, o diretor francês fora um dos críticos responsáveis por elevar a obra de Hitchcock do lugar de “entretenimento banal” que ela ocupava para “obra autoral” de primeira grandeza.

“A Sereia do Mississippi” (La sirène du Mississippi, 1969) deixa patente seu lastro com a fantasia e o mito logo no título, no predicativo que atribui à personagem de Catherine Deneuve: como o ser fantástico (um pássaro ou um peixe, dependendo da origem da mitologia), sua Julie/Marion é uma mulher ambivalente – o que se apercebe a partir de seus nomes, um de conotação maviosa e outro, severa. Ela começa a história como a esposa por encomenda de um plantador de fumo de uma ilha do Oceano Índico; mulher loura, linda e misteriosa que, vestida com tecidos de estampas suavemente florais, surpreende o noivo à espera de uma mulher morena e comum. O charme da jovem enreda o noivo e, por tabela, o público. Depois de crer com facilidade na história pouco verossímil contada pela mulher, o jovem (Jean-Paul Belmondo) se casa com ela e se coloca aos seus pés: Vous êtes adorable, Julie – o mantra que ele repete durante a primeira parte da história sugere a perda de razão gerada pelo fascínio que a literatura ocidental tanto atribuiu às sereias.
A graça da película está na quebra de expectativas que o diretor vai inserindo na história. O idílio amoroso vivido pelo casal em lua de mel é brevemente quebrado por uma saída misteriosa da mocinha. O marido não percebe. Truffaut, a partir daí, começa a brincar de ser Hitchcock. Assim como faz o mestre inglês faz em “Um corpo que cai” (1958), o francês constrói o suspense depois de tornar o público ciente de algo que o protagonista não sabe: no filme americano, o espectador fica sabendo muito antes de Jimmy Stewart que a simplória Judy e a misteriosa Madeleine são a mesma pessoa; na “Sereia do Mississippi”, a escapada da jovem obriga o público a subverter o olhar de encantamento que desde o princípio voltara à Julie. A semelhança dos nomes Marion/Madeleine – Julie/Judy também não parece coincidência, bem como a sua conotação. O “Mad” (louca) de “Madeleine” pode ser lido como alusão à suposta insânia da personagem de Hitchcock. A inversão que Truffaut promove na atribuição de nomes à sua personagem aponta para o caráter de emulação/subversão que o diretor francês imporá à obra o inglês. Caráter que atinge o paroxismo na segunda parte do filme, na multiplicação das referências às obras de Hitchcock: os primeiros planos dos trilhos do trem que levam o jovem apaixonado em busca da amada lembram “Pacto Sinistro” (1951) e “Quando fala o coração” (1945); sua internação num manicômio para se curar do transtorno emocional que sofrera com o abandono da mulher lembram o destino de Johnny em “O corpo que cai”; a corrida louca do casal pelos quatro cantos de Paris, tendo insolitamente no encalço o detetive que o próprio protagonista contratara para achar a mulher, lembra “Intriga Internacional” (1959); a deliciosamente absurda cena do envenenamento do mocinho lembra “Interlúdio” (1946): tanto pelo móvel do crime quanto pela personagem que o intenta.

Truffaut só lembra dos grandes Hitchcocks, daqueles que, durante a entrevista, ele próprio dissera ao diretor inglês que eram seus preferidos. E o uso que faz dos filmes só faz reforçar o tom de homenagem bem humorada: as constantes quebras de expectativas surpreendem e deleitam o público tanto quanto o faz Hitchcock usando expedientes diferentes. Hitch constrói suas personagens ancorado na realidade. Truffaut manda o mundo real às favas e cria uma fábula divertidíssima, como que uma brincadeira de criança. Até a loura elegante e aparentemente frígida ele traz do mestre (tenho pra mim que Deneuve daria uma grande musa de Hitchcock, se ambos tivessem se encontrado a tempo), atribuindo-lhe uma original dose de baratinamento sexual, moral e afetivo. Também a conclusão é subvertida: livre da necessidade de um Happy End – ao qual Hitchcock tantas vezes fora obrigado – Truffaut leva para o ritmo do filme a dinâmica de sua personagem principal, deixando a conclusão em aberto. A mulher-sereia não poderia dar uma existência de constante felicidade ao seu eleito. Mas de modo algum isso o afastava dela. O sentimento ambíguo de medo e paixão que ele nutre pela esposa fazem-no concluir: Vous êtes si belle, Julie, que te regarder c’est une joie et une souffrance. (Você é tão bela, Julie, que te olhar é uma alegria e um sofrimento).


O sensacional é que esta frase volta, quase que ipsis litteris, noutra parceria inspirada de Truffaut & Deneuve, “O último metrô” (Le dernier métro, 1980). Um parênteses necessário é o de que a beleza da musa francesa lhe rendeu, com o passar dos anos, uma legião de fãs/jornalistas/diretores extasiados. Em nenhuma de suas entrevistas ela deixa de ser atingida com perguntas que concernem a sua aparência física. Perguntada recentemente no Brasil sobre se “É um peso ser bela”, ela respondeu de modo inspirado: “Peso maior é ser feia”. Além de não ter pelo na língua (Bravo, Catherine!), a atriz demonstra que esta é, para si, uma questão menor. Tenho para mim, portanto, que ela e seu diretor decidiram de comum acordo transformar o assunto em tema de chiste. Quem pronuncia a sentença no filme de 1980 é a personagem desempenhada pela personagem de Gérard Depardieu na peça de teatro “decadentista” que um grupo francês encena numa Paris invadida pelos alemães durante a 2ª G.M. A frase, pronunciada com agudeza pelo ator, combina com o tom ultra-meloso e escapista da peça que o grupo põe em cena. Pensando-a no diálogo com o contexto, ela me parece uma gozação com o modo romantizado pelo qual público e imprensa veem a atriz – que, não raras vezes, afirma esperar no futuro “ser lembrada pela competência como intérprete e não pela beleza”.

Parênteses devidamente fechado, vamos agora a esse que é, sem dúvida, um dos melhores filmes de todos os tempos. E isso por tantos motivos... Pela profundidade com que trata das relações sociais estabelecidas em tempos de guerra, pela sutileza com que as personagens são construídas, pela solidíssima construção cinematográfica que torna o filme num só tempo inteligente, comovente, dinâmico, enfim, uma delícia de se ver e rever. Nele, Deneuve é uma ex-atriz de cinema que passa a tocar um teatro junto do marido diretor. Quando estoura a guerra, o homem de ascendência judia é obrigado a se esconder sob o palco do teatro, tornando-se, literalmente, a base sobre a qual se sustenta o edifício da peça ensaiada. Truffaut conduz uma câmera fluida para unir, de modo simbólico, o diretor apaixonado e o elenco alheio à sua presença: nas mais sofisticadas tomadas, a câmera desliza das cadeiras do teatro para o palco, dele para os atores e, em seguida, para a tubulação que levará as palavras ao diretor que, no subsolo, as repete com prazer. Emergem dessas cenas a dedicação pela arte, a luta pela liberdade e a possibilidade de o indivíduo espoliado retomar seu lugar na sociedade utilizando-se para isso da argúcia – expedientes que antes transformaram “Ser ou não ser” (1942), seu irmão de temática, noutro grande filme.
Em paralelo ao drama do diretor corre o drama de cada uma das personagens, as quais, apesar de livres, paradoxalmente sofrem mais revezes que o diretor. Longe dos olhos, mas não dos ouvidos do marido, a personagem de Deneuve protagoniza com a de Depardieu uma das histórias de amor mais surpreendentes da história do cinema. A economia dos gestos da atriz e a delicada robustez do ator presenteiam o público com um par romântico belo e verossímil. Um dos pontos altos do filme é a interferência do marido da jovem para esse desenlace. Tal inferferência mostra que Bernard Shaw estava certo ao dizer - tanto tempo atrás - que preferia a sutileza do Dr. Wangel (de “A dama no Mar”, drama de Ibsen) ao dispensar sua esposa do compromisso de ambos, do que a machadinha que certa personagem de Sardou usava para dar cabo da mulher que o traíra...
Com o filme, Truffaut prova cabalmente que o conceito de “autoria” não é sinônimo de emprego e reemprego incansável da mesma série de procedimentos tendo em vista chegar a um fim já conhecido. No "Último Metrô" está todo o charme de “A Sereia do Mississippi”, porém, numa ancoragem muito mais incisiva na realidade; num tratamento muito mais humano àquelas mulheres e homens que tinham de lidar com duros conflitos – não só externos como também internos.