sábado, 25 de janeiro de 2020

Shakespeare em tempos de guerra: “O Camareiro”, em cartaz no Teatro FAAP, faz a arte espelhar a vida

A contemporaneidade é a era do revival. Atentos a isso, artífices do cinema, da telenovela e do teatro reeditam tramas que enredaram as gerações passadas: a atual telenovela "Éramos seis", exibida pela Rede Globo, é remake da trama do SBT rodada nos anos 90; "Ossos do Barão", também desta emissora, será a próxima produção recuperada pela Globo. A nostalgia é o estado de espírito que nos define a todos – nós, pobres diabos, voltamo-nos ao passado buscando a luz que nos ilumine o caminho frente à boçalidade reinante. 
Um mergulho no passado é o que intenta “O Camareiro”, dirigido por Ulysses Cruz, em nova temporada no Teatro FAAP (a primeira, em 2015, consagrou Tarcísio Meira com um prêmio Shell; a segunda ocorreu de outubro a dezembro do ano passado, e esta última encerra-se no dia 2 de fevereiro deste ano). 
Mergulho em potência, já que a comédia dramática escrita por Ronald Harwood, produzida pela primeira vez pelo Royal Exchange Theatre (de Manchester, no Reino Unido) em 1980, passava-se no interior inglês envolto na Segunda Grande Guerra. Curiosamente, outra obra de temática semelhante, a francesa "O último metrô" (Le Dernier Metro, de Truffaut), foi rodada também em 1980. Ambas as obras foram produzidas por países diretamente envolvidos na Guerra, no entanto, há mais que isso em jogo. 
As últimas décadas do século XX foram permeadas por guerras – a Guerra Civil do Camboja e a Guerra do Vietnã findaram-se em 1975, deixando uma torrente de mortos e de traumas; em 1979, o Reino Unido envolveu-se na ocupação soviética do Afeganistão; em 1982, data em que “O Camareiro” transforma-se num cultuado filme de Hollywood (de Peter Yates), indicado a 5 Oscars, o Reino Unido disputava as Malvinas. Sabemos que a arte representa a história do passado no espelho do presente. Portanto, é digno de nota que Tarcísio Meira tenha se entregue a este trabalho em 2015. 
Cinéfilos ou contemporâneos da década de 80 devem conhecer a história do velho ator de teatro que arrasta o manto das divindades shakespeareanas sob as rajadas de balas alemãs, pelas províncias inglesas de 1942. Velho e alquebrado, já tocado pela insânia, o “Sir” criado por Harwood traz no corpo a arrogância, a verve e o gênio daquele velho teatro no qual o primeiro ator acumulava as funções de chefe da companhia e diretor de cena – como um João Caetano e um Procópio Ferreira fizeram no Brasil, antes que o teatro moderno fizesse emergir a figura do “encenador”. A era de ouro de Hollywood foi pródiga em desenhar esses tipos, fazendo-os, vez por outra, ser encenados por atores também oriundos do teatro - a exemplo do antológico John Barrymore, o decadente e ébrio ator de “Jantar às Oito” (1933) o qual decide transformar o fecho de sua vida num grand finale teatral, fazendo o abajur de holofote e declamando, altivo, versos de Ibsen (“Mother, give me the moon.”) pouco antes de expirar. 
Na montagem de Ulysses Cruz, Tarcísio Meira faz jus a esta História. Como Barrymore, Meira tem uma longuíssima vida artística, acompanhada quase toda ela pelo grande público, já que atuou em marcos da televisão e do cinema nacionais nos últimos 50 anos, como “2-5499 Ocupado” (1963), a primeira telenovela diária brasileira, exibida na Excelsior, e “O Beijo no Asfalto” (1981), rodado por Bruno Barreto, adaptação cinematográfica da peça revolucionária de Nelson Rodrigues. 
Verdadeira entidade dos palcos e telas nacionais, totem como a já aqui tratada Fernanda Montenegro, Tarcísio Meira está soberbo num papel que é, em grande medida, seu alter ego. 
A obra de Ronald Harwood é um bom exemplar do grande teatro que tão bem serve às estrelas. O primeiro ato de “O Camareiro” prepara com maestria a entrada do velho “Sir” – assim simplesmente denominado, prova de que seu talento ganhara chancela real. Seu camareiro – fiel escudeiro de Sir, costurador das pontas da trama, interpretado com agudeza por Cassio Scapin – escova e seca o sobretudo do amo desaparecido. Uma saraivada de balas varre de tempos em tempos o teatro interiorano no qual apenas restam aqueles aos quais a guerra rejeita: as mulheres, os aleijados e os velhos. A companheira de Sir narra a procura por ele, em meio ao corre-corre que sucedera o toque de recolher – as metralhadoras alemãs varriam novamente a cidade. 
Sir, Tarcísio Meira, adentra a cena depois de ser psicologicamente esquadrinhado por aquelas duas personagens. O público, devidamente preparado, já o conhece bem, e cola, na imagem querida que ele viu por décadas na televisão e no cinema, a imagem daquele velho ator inglês que insistia em encenar Shakespeare em meio aos escombros. 
“O Camareiro” realiza, então, um trajeto de mão dupla entre a arte e a vida: entre a insânia, a genialidade, a nobreza e o alquebramento do velho Sir e a altivez do monarca que decide ratear seu reino entre as três filhas, distribuindo as partes à medida do amor que elas lhe dedicavam. Sir é o “Rei Lear”: o teatrinho decadente, as roupas puídas e o elenco mambembe são o seu reino, e ele guarda a altivez dos grandes atores de outrora – semideuses, mesmo que esfomeados e rotos. 
A trama de “O Camareiro” caminha entre os bastidores do último “Rei Lear” jamais encenado por Sir e o proscênio: pondo em primeiro plano a máquina de vento e os tambores responsáveis por colocar em moção a tempestade da peça; o camarim pobre, a maquiagem barata, a coroa reles que ele trata com um desvelo real. Entre a cena e os bastidores, nos dizeres explícitos de Sir e em suas ações, patenteia-se a fundamental importância da arte. 
Nietzsche afirmou que “A arte existe para que a verdade não nos destrua”. Verdade inquestionável, naquele 1942 que lutava para não submergir ao nazismo como nos dias de hoje, em que o discurso nazista lamentavelmente ainda perdura e tem fiéis. Ao fim da peça, Cássio Scapin leu um manifesto demandando que a arte seja pautada pela democracia. A encenação de “O Camareiro” em si já é um manifesto. O brilhante Tarcísio Meira (que emoção é vê-lo em cena) e o primoroso elenco que o circunda atam as pontas do presente às do passado, demonstrando que hoje, como antes, a arte é um ato de resistência à barbárie.

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O convite ao público para que assista à peça é ainda mais efusivo porque a temporada encerra-se no dia 2, e Tarcísio Meira acabou de anunciar a sua aposentadoria dos palcos - o espectador absolutamente não deve deixar de vê-lo.