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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Diário do Metropolitan IV: Samson et Dalila

Vamos fingir que esta resenha não demorou três meses para suceder as anteriores, relativas às apresentações operísticas do MET de outubro do ano passado. Retomo a missão auto-imposta, agora referindo-me à sensual história de Sansão e Dalila, escrita por Ferdinand Lemaire e musicada por Camile Saint-Saëns entre 1867 e 1877, encenada no Metropolitan por um elenco estelar, conduzido pela batuta de Mark Elder: Elina Garanca como Dalila, Roberto Alagna como Samson e Laurent Naouri como o Grão-Sacerdote de Dagon. A direção ficou a cargo de  Darko Tresnjak.
A história remete a uma passagem do Velho Testamento que nada deve às fábulas de La Fontaine. Segundo “Juízes”, 16, Sansão é o hebreu de força sobre-humana que, dez séculos antes de Cristo, invade e submete a cidade de Gaza. Encanta-se pela filistina Dalila, que vive no vale de Soreque, jovem a qual, persuadida pelos príncipes dos filisteus, induz Sansão a lhe contar o segredo de sua força: “E sucedeu que, importunando-o ela todos os dias com as suas palavras, e molestando-o, a sua alma se angustiou até a morte.”, diz o versículo 16 do livro de “Juízes”, deixando implícito que ambos viviam uma relação íntima. A concessão de Sansão ao clamor de Dalila, e o seu posterior martírio, revive a fábula bíblica de Adão e Eva: cabe à mulher à perdição masculina. 
Saint-Saëns lança-se ao trabalho de compor sobre a fábula bíblica um decênio antes de ver a sua obra encenada, o que se dá não em francês, mas numa tradução alemã, em Weimar, dada à rejeição dos franceses a diversas apresentações de trechos da obra, antes de sua completude. Havia, então, na França, resistência no tocante à encenação de conteúdo depreendido da Bíblia; resistência transformada em proibição explícita, no tocante ao teatro: tanto que a notória Sarah Bernhard se vê impedida de levar à cena a "Salomé" de Oscar Wilde – obra que, composta originalmente em francês, em 1891, apenas seria encenada três anos mais tarde, numa tradução, na Inglaterra. 
Embora bem-sucedida em solo alemão, onde estreou em 1877, a ópera em três atos e quatro cenas “Samson et Dalila” apenas subiria à cena na França nos anos de 1890 – primeiro no interior e, no final do ano, em Paris. Torna-se um sucesso, sobretudo devido às árias de Dalila « Printemps qui commence » e « Mon cœur s’ouvre à ta voix » – as quais, dali por diante, passariam a ser conhecidas e repercutidas como obras avulsas, em detrimento da ópera. 
“Samson et Dalila” foi a obra escolhida para abrir a temporada 2018-2019 do Metropolitan. Uma sessão de fotos dos protagonistas, ainda sem os figurinos da produção, divulgada seis meses antes, titilou a curiosidade do público (o MET sabe como propagandear os seus espetáculos...). Levada à cena em setembro, a recepção da crítica foi fria. Não era efetivamente uma montagem a se amar inequivocamente. O cenário de Alexander Dodge e o figurino de Linda Cho estavam em simbiose, apelando sem pudor ao kitsch. Uma estrutura metálica a representar um gigante homem bipartido – espécie de cavalo de Troia cujo sentido último não é de todo compreendido pelo público – serve como centro da sociabilidade dos filisteus: o templo pagão onde sacerdotisas realizavam um erótico ritual. Dalila, que no conto bíblico é uma mulher que vive nas montanhas, é, na obra de Saint-Saëns, o cerne deste organismo. Já se vê que a pecha que o livro bíblico lhe impinge é potencializada nesta montagem. 
Antes de o homem bipartido adentrar e dominar a cena, com o seu séquito, a produção optou pela dualidade estrita, entre os figurinos dos hebreus, em tons pastéis, e dos filistinos, de coloridos resplandecentes. Visualmente menos atraentes, as vestimentas dos hebreus materializam o afastamento de Sansão do seu povo e a sua aproximação da bela Dalila, em plena florescência, naquele princípio de primavera. Sua aparição seduziria o mais incauto dos homens. 
As escadarias cinzentas da cidade de Gaza cingem-se de flores, plumas e paetês que nada devem aos desfiles de nossas escolas de samba, ou às boates cariocas dos anos de 1960 voltadas ao teatro de revista, ou aos números musicais protagonizados por travestis. Digo tudo isso obviamente não para desmerecer esses espetáculos todos, já que o kitsch muito me atrai – Susan Sontag, no elucidativo artigo “Notes on Camp”, publicado nos anos 60 (não por acaso a época das tais boates), analisa a estética com sensibilidade: sua essência seria, segundo ela, “o amor ao inatural – ao artifício e à exageração”. Sontag discorre sobre os cultores do kitsch até a época do artigo. Certamente, a estética deste “Samson et Dalila”, como dos nossos desfiles carnavalescos realizados pelas passarelas cariocas e paulistanas, são apropriações contemporâneas dele. 
Nesta toada, enquanto Roberto Alagna – o hebreu de força incomensurável e longos cabelos –, veste surradas túnicas, uma Elina Garanca linda de doer, numa longa e encaracolada peruca ruiva, enverga um radiante vestido de jacquart magenta, bordado de dourado, o qual, à certa altura, é substituído por uma túnica verde limão. No terceiro ato, o de sua coroação, usa uma variante desse traje, mas vermelho – a exemplo do Grão-Sacerdote de Dagon (o ótimo Laurent Naouri) e das demais figuras políticas filistinas: o “inatural” de que fala Sontag é, pois, a estética que levanta com consistência o espetáculo. 
Pode-se dizer que o revival de uma fábula bíblica no seio do racionalista século XIX apenas poderia fazer sentido sob a forma do kitsch, daí às escolhas cênicas e de figurino acertadas. No entanto, a música de Saint-Saëns, se roça o exótico, tem um sabor igualmente lírico – mesmo bucólico, como podemos perceber pelas duas referidas árias que sobreviveram à posteridade, as quais, cantadas por Dalila, aludem ao amor incomensurável que ela tem por aquele homem tão distinto de si, lamentando a sua frieza. 
Ao adaptarem a fábula de Sansão e Dalila, Saint-Saëns e Lemaire procuram dar facetas humanas essas duas personagens apenas delineadas no livro bíblico. Em entrevista sobre a montagem, Garanca faz menção a um breve trecho que antecede à ária « Mon cœur s’ouvre... », infantil e bucólico, no qual Dalila lembra a Sansão dos dias de felicidade que ambos haviam vivido. 
No entanto, é igualmente verdade que o compositor e o libretista eram homens de seu tempo, quando a visada ao gênero feminino era ainda eivada de preconceitos. A sua Dalila é, como a bíblica, prole da Eva medieval – a quem a paixão serve como força motriz para a vilania: movida pela ordem do Grão-Sacerdote de entregar a ele o homem que ameaçava o seu reinado, ela lhe afirma com todas as letras que não desejava dinheiro, mas vingança; a fidelidade ao seu povo motiva a sua atitude manipuladora. E então, a música turva-se, à medida do caráter de Dalila. 
A Dalila da Saint-Saëns recupera o arquétipo milenar da mulher vampira. Imagino que seja difícil para qualquer mulher autoconsciente repercuti-lo. Garanca parece ser dessas mulheres. Os trajes de femme fatale serviram-lhe de camisa de força, e ela lutou bravamente para imprimir alguma ambiguidade à sua personagem. De um ponto de vista puramente dramático, penso que ela se sairia melhor caso se jogasse de corpo e alma no papel da “Bela dama sem misericórdia” sobre a qual Keats poetiza (ver) – doce vampira que seduzia os cavaleiros para depois desencaminhá-los; sem nenhum remorso, sem nenhuma comoção. O preço que se paga pela consciência de gênero geralmente é alto... 
O que de modo algum significa que ela tenha se saído mal. É, além de lindíssima e voluptuosa - tem o physique du rôle perfeito de Dalila -, uma grande cantora, e imprimiu à sua Dalila um timbre morno e sensual. Além disso, Garanca soa gloriosamente bem ao lado de Roberto Alagna, com quem tem grande química. A mezzo me parece, no entanto, mais solta na montagem de “Samson et Dalila” levada à cena pela ópera da Baviera no primeiro semestre de 2018 – que tem longos trechos disponíveis online –, porque o enquadramento de drama de boudoir dado à montagem, se (ao meu ver) a afasta daquilo que buscavam o compositor e o libretista, acaba por favorecer a criação de alguma ambiguidade à personagem da sacerdotisa.
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domingo, 28 de outubro de 2018

Diário do Metropolitan I: A ópera na sala de exibição; a ópera no cinema

Na segunda semana de outubro empreendi a primeira viagem sem fins estritamente práticos que faço em anos. O motivo: passar uma semana em Nova Iorque assistindo, pessoalmente, às óperas do Metropolitan. E relato, a partir daqui, a experiência. 
Principio pelas generalidades, antes mergulhar em análises mais detidas das quatro produções que vi ali, Aida (Verdi), La Fanciulla del West (Puccini), Samson et Dalila (Saint-Saëns) e La Bohème (Puccini), as duas primeiras com dois elencos diferentes. Semana escolhida cirurgicamente, na qual o MET foi ocupado por uma porção de artistas de nomeada internacional, vários de meus favoritos, dentre eles Eva-Maria Westbroek, Elina Garanca, Anna Netrebko, Jonas Kaufmann, Zeljko Lucic e Roberto Alagna. 
Renée Fleming e Elina Garanca em
O Cavaleiro da Rosa (MET, 2017)
O MET desde tempos me inspira um misto de fascínio e de curiosidade (mórbida). Suas produções, exibidas sob demanda pelo Met Opera on Demand, vez por outra ventiladas pelo Youtube e/ou comercializadas em DVD/Blu-ray, cheiram a blockbusters cinematográficos. O recentemente lançado Cavaleiro da Rosa (Der Rosenkavalier, de Richard Strauss), tirou-me o fôlego. A câmera bailarina a devassar o boudoir da Marie Thérèse de Renée Fleming – e os corpos e almas de si e de seu amado Octavian (Elina Garanca, estonteante) –, provocaram-me mais uma vez a conhecer a engenharia dessa ópera que se torna cinema: pois a ópera existe, hoje, inextrincavelmente atrelada à Sétima Arte. 
O palco do MET desde o Family Circle
A consolidação de eventos como o brasileiro Ópera na Tela (que traz aos cinemas daqui um feixe de produções europeias), ou o MET em HD (o braço cinematográfico do Metropolitan, exibido ao vivo em cerca de 2500 cinemas/80 países, depois disponibilizado no referido site sob demanda) denota uma simbiose entre o star system cinematográfico e o operístico (talvez, melhor dizendo, denota a migração da estrutura de criação de celebridades do cinema à ópera). Os closes cinematográficos engendram um novo tipo de cantor, atento tanto à voz quanto às feições da personagem representada. 
Mais que isso: à medida que a câmera se achega, os espaços mais recônditos da personagem não são mais expressos pela voz, mas sim pela fisionomia. A mise-en-scène cinematográfica passa a nutrir a ópera, daí a escolha de artistas cujos físicos cada vez mais se aproximam das personagens representadas. A música e o canto, cernes do gênero operístico, passam a servir à intensificação dos rostos que preenchem a tela, dividindo com eles o protagonismo, a exemplo do que se dá com a música no cinema
Piquenique ao sol durante os (longos)
intervalos
Eu no meio disso: num só tempo apaixonada e analista, procuro colocar-me de fora para observar o nascimento de seres no mais das vezes completamente formatados segundo velhas convenções, e, não obstante, acabo sempre sendo carregada de roldão para dentro desses mundos de ficção, submetida por Elina Garanca do mesmo modo como sou sempre submetida por Garbo – grandes, belas e angulosas andróginas às quais as convenções seguem atribuindo sobretudo papéis de vampiras (a exceção é o já mencionado deslumbrante Octavian de Garanca, que atravessa os escopos entre os gêneros feminino e masculino com a facilidade de quem troca uma peruca). 
Dez câmeras registram, em duas ocasiões diferentes (na primeira, num teste às vésperas da exibição do espetáculo ao vivo) as performances operísticas que serão, depois, transmitidas ao vivo, ao redor do mundo, pelo MET em HD. Oito microfones estão distribuídos pelo procênio, direcionados aos artistas.
Ocupei, no dia em que vi a maquinaria em ação, um lugar na primeira fileira da plateia (aliás, aos estudantes que frequentarem o MET, sugiro que cheguem na manhã da récita na bilheteria do teatro, com a carteirinha na mão, pois praticamente sempre há possibilidade de trocar-se gratuitamente o ingresso por um estudantil, na plateia ou na Grand Tier, cujos preços são originalmente bem salgados). Pude dali conversar com o técnico responsável pelo manejo de uma das câmeras, a respeito dos equipamentos de filmagem de que a casa lança mão: 
Vista do hall central
Uma grua com braço de mais ou menos 4 metros de comprimento, instalada no foyer lateral imediatamente à esquerda do palco, dá à câmera aquela mobilidade bailarina sobre a qual me referi acima. Uma dependura-se no 3º foyer à direita. Outra, num trilho, percorre, num movimento de vai-e-vem, a metade direita do palco. Outra se posiciona entre o fosso da orquestra e o corredor, imediatamente ao lado do maestro. No dia em que vi a maquinaria funcionando (na véspera da exibição ao vivo de Samson et Dalila), uma câmera no canto lateral esquerdo da fileira M apresentava uma síntese de uma decupagem bastante tributária do cinema. Mais duas ficam ao fundo do palco, em alturas diferentes, e outras três cobrem os bastidores. Do lado de fora do teatro, o diretor de cena, num furgão, constrói a decupagem do espetáculo em tempo real. A gravação-teste é depois revista e ajustada para a gravação/exibição efetiva, em tempo real. A gravação requer uma força-tarefa que custa milhões (os patrocinadores são sempre lembrados nas Playbills dos espetáculos). 
A câmera na grua
Nos seis pisos do Metropolitan – 3800 lugares, duas vezes o Teatro Municipal de São Paulo ou do Rio –, Elina Garanca recupera as suas dimensões originais. Quase invisível desde certas distâncias (do Family Circle, último andar atrás do Balcão, no 5º piso da sala, por exemplo), readquire a sua grandeza pela voz, antes de ser seccionada pelas dez câmeras espalhadas pelo teatro e oferecida aos espectadores cinematográficos como grandes e suculentos pedaços de pêssegos em conserva (na acepção de Alberto Cavalcanti ao analisar com sagacidade a diferença entre a encenação/fruição do teatro e do cinema). 

Continua...