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domingo, 8 de junho de 2014

A Noite Americana: ode à cinefilia

François Truffaut amava tanto o cinema clássico norte-americano que lhe dedicou todo um filme. A Noite Americana (La Nuit Américaine, 1973) é das mais belas homenagens que a “capital dos sonhos” já recebeu. É “cinefilia” no mais alto grau; em que o culto à arte de fazer filmes soma-se ao labor visando a criação de uma obra atenta à sua História, mas, ainda assim, original. 
Já é sabida a relevância que o cinema hollywoodiano teve para a Nouvelle Vague – a qual, por sua vez, foi determinante na elevação da filmografia da América do Norte a objeto digno de reflexão crítica. Quem deseja conhecer os pormenores dessa história precisa percorrer Cinefilia, de Antoine de Baecque, testemunho de fôlego, em letra de forma, do trabalho dos jovens cineastas do grupo. 
Em A Noite Americana, o legado de Hollywood é impresso em película. O filme conta a história da rodagem de um filme. Metalinguagem, reflexão sobre o métier, como a indústria do cinema fizera desde seus primórdios esforço que encontra perfeita expressão no termo francês mise en abyme (a colocação da arte diante de si mesma, refletida, como que num espelho). 
O homem das novidades (The Cameraman, Buster Keaton, 1928), Fazendo fita (Show People, King Vidor, 1928), O homem da câmera (Dziga Vertov, 1929) são obras-primas dentre as centenas de produções a este respeito, rodadas ao redor do mundo desde, ao menos, os anos de 1910. A relação entre elas, seus objetivos e implicações, fariam correr rios de tinta. Contentemo-nos com um regato: o prazer de ficcionalizar coexistiu no cinema, desde sempre, com o de pensar a respeito da materialidade de seu suporte; deste estranho poder da fita de fazer fitas... 
Sim, Truffaut, claro. Não se assustem, não divago. Para este cineasta-cinéfilo, a produção cinematográfica naturalmente implicava na reflexão sobre o medium. Isto fica patente no transcurso deste filme, não apenas povoado da História do cinema (como é, invariavelmente, a obra do artista), mas seu simbólico recriador. Mesmo antes de apresentados os seus créditos: o filme é dedicado às carismáticas irmãs Gish – Lillian e Dorothy –, as primeiras “estrelas” da Sétima Arte, responsáveis, junto a um grupo de artistas regidos pela batuta de Griffith, pelo burilamento do cinema clássico. 
A homenagem se estende para a estrutura do filme-dentro-do-filme, para a escolha do elenco da produção, e para o título, mesmo, da obra. “Nuit Americaine” é o rótulo em francês da técnica cinematográfica americana do day by night: a rodagem de uma cena noturna durante o dia. A Hollywood feita de artifícios surge em primeiro plano no filme francês, que, à guisa de um making of, passeia pelos cenários da produção (fictícia, tão hollywoodiana...) "Je vous presente Pamela" – pelos prédios feitos de madeira, cascas erigidas em ruas cenográficas; a neve de espuma; o vaivém dos figurantes; a convencionalíssima história de amor e traição que é rodada... 
Truffaut tece uma homenagem risonha – apaixonada, ao mesmo tempo em que crítica – ao cinema que o inspirou. Convergem, no filme, a mise-en-scène americana e a francesa; a primeira submetida à segunda. A Nouvelle Vague caminhou a contrapelo do cinema norte-americano em muitos aspectos: ao voltar a câmera às ruas – aos homens “de verdade” –, e dedicar-se ao plano-sequência, buscava impregnar o cinema do “real”, devolver-lhe aquilo que supostamente seria sua inerência, a “objetividade”. 
A relação entre esses dois cinemas emerge dialeticamente no filme. “Je vous presente Pamela” nada deve ao cinema hollywoodiano, feixe de ilusões costuradas por meio da decupagem cuidadosa de planos fragmentados, rodados em cenários cenográficos. Já a mise-en-scène francesa corre por fora, costurando os tropeços do elenco, os vícios, neuroses e estrelismos da prima-dona, os revezes técnicos que atrapalham a rodagem da fita, as gravidezes e as mortes inopinadas, as histórias de amor nascidas e finadas nos bastidores. Costura-lhes por meio de síncopes, como que a chamar, todo o tempo, a atenção para o jogo de cena; para essa brincadeira de gente grande que é o cinema, cujas ficções tocam de modo tão verdadeiro o espectador. 
A estrutura assemelha-se a Fazendo fita/Show People, filme já velho conhecido dos leitores do blog, no passeio de mão-dupla que realiza entre a ficção e a realidade. La Nuit Américaine rompe, todavia, com a matriz, ao estabelecer como protagonista o próprio cinema. Norteia o filme a luta árdua, e não poucas vezes inglória, que é transformar pessoas com sonhos e desejos tão dessemelhantes em pedaços de película, e eles em arte. Cenários, bichos, homens, coadjuvantes e protagonistas adquirem pesos e medidas análogos. 
Neste escopo, o diretor – o grande orquestrador do conjunto (como tão enfaticamente postulara a Nouvelle Vague) – surge pequenino diante do grupo: dirimindo conflitos, lidando com pressões de toda a sorte. Povoado noite e dia por sonhos cinemáticos, esforçando-se para dar unidade onde o que só se vislumbra é o díspar. 
Ao assumir o desempenho desta personagem, no interior de seu filme, Truffaut impregnou-a de simbolismo. Colocou um espelho não apenas diante do cinema, mas diante de si próprio. Sua imagem refletida é muito menos idealizada do que aquela que ele e seus pares impuseram, discursivamente, a respeito de sua classe. Porém, é muito mais amorável. Truffaut coloca-se aos pés da Arte que o assombra e que ele ama. Seu devoto, antes e acima de tudo.