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quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

O Fernando Pessoa roteirista de cinema: “Argumentos para filmes” (2011)

A devassa no baú de escritos de Fernando Pessoa está trazendo à luz coisas do arco da velha. Quem poderia imaginar que aquele que reverberava contra o cinema nas páginas do “Livro do Desassossego” era também escritor de scripts cinematográficos?
Aliás, porque não? Durante sua vida relativamente curta, Pessoa desdobrou-se num sem número de outros. Foi campônio sem cultura letrada e metafísica, engenheiro cantor das benesses da tecnologia; poetou sobre a devastação da guerra, os heróis pátrios, transformou o Deus em homem para senti-lo inteiro. Empunhou uma pena sofredora, otimista, ferina, amorosa, idealista, angustiada. Colocou em primeiro plano sua fragmentação e incompletude, criando eus diferentes – muitas vezes contraditórios – entre si: figuras que juntas completam esse álbum ainda longe de ser desvendado por completo que é Fernando Pessoa.
Passa também por aí a leitura que o escritor faz do cinematógrafo. Ao longo de sua obra – quase toda ela publicada postumamente – alinham-se verrinas e elogios sobre o assunto. O crítico das figuras bidimensionais e ocas do cinema silencioso (das “Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias”, publicadas 1967) é também aquele que percebe as convenções do cinema como uma extensão das convenções do mundo. Essas e outras contradições são trazidas à baila por Patricio Ferrari e Claudia Fischer na “Introdução” à obra "Fernando Pessoa: Argumentos para filmes", impressa há pouco pela editora portuguesa Ática:
Convidado por José Régio a responder a uma enquete da revista "Presença" referente ao cinema, Fernando Pessoa primeiro convida o heterônimo Álvaro de Campos para ajudá-lo na empreitada (“podem sempre contar comigo, ou dizendo melhor e com fabrico de termo plural, comigos?”) para, dias depois, escrever ao amigo: “Ao inquérito sobre o cinema não responderei. Não sei o que penso do cinema.” Inútil perguntarmos quem é esse “eu” que nada sabe do assunto. Mais divertido, penso eu, é mergulharmos nas ambivalências do complexo e genial escritor – ainda mais agora, que mais do que nunca chafurdamos na banalidade.

Datiloscrito de um dos roteiro de Fernando Pessoa: "Note for a silly thriller or for a film"
Para isso, o livro em questão é um belo passaporte. Além de dois ensaios densos (o segundo é escrito por Fernando Guerreiro) que discutem a relação de Fernando Pessoa – e dos escritores portugueses seus pares – com o assunto em pauta, apresenta uma listagem dos recortes referentes ao tema que foram guardados pelo escritor e uma relação exaustiva de todos os filmes citados nos tais recortes. Traz também fac-símiles de algumas obras sobre o cinema pertencentes à biblioteca pessoana, o conjunto de fragmentos com pensamentos do escritor sobre o assunto e os manuscritos/datiloscritos de seus roteiros. Cerne da obra, os scripts são apresentados no original (em inglês, francês ou português) e, quando necessário, em traduções dos editores para o português.
O conjunto é de tirar o fôlego. É certo que esta que vos fala, além de estudar o tema, já esteve doente atrás das reflexões de Fernando Pessoa sobre ele – adorou saber, por exemplo, que o escritor guardou quatro cartazes do musical hollywoodiano A Viúva Alegre (The Merry Widow, 1934), protagonizado por Jeanette MacDonald e Maurice Chevalier, publicados em três jornais diferentes. Porém, é bem possível que o leitor comum com algum interesse por Fernando Pessoa também se divirta ao saber que os roteiros do escritor flertavam muito mais com o cinema comercial do que com o cinema de vanguarda - ao contrário do que se poderia imaginar.
Os “Film Arguments” – título atribuído pelo próprio Pessoa para uma de suas produções, o que aponta talvez um intuito de o escritor investir seriamente no medium – constroem seu objeto sempre com graça e senso crítico.
O primeiro é denominado “Note for a silly thriller or a film”. A tolice é patente no enredo, um desses rocamboles a la Sherlock Homes protagonizados por um milionário que contrata um detetive para proteger a coleção de pedras preciosas que ele precisa deslocar de um continente para outro. Durante a viagem, não poderiam faltar os bandidos, os quiproquós, as trocas de identidade, as reviravoltas supreendentes que deixam o leitor sem fôlego... O escritor parece conhecer bem onde pisa, tanto que deixa rubricas do tipo “This can be made interesting by a series of liveliness which, if this be a film, can be easily visualized.”.
Fernando Guerreiro aponta com argúcia a filiação que esses roteiros têm com o “cinema de atrações” dos anos de 1900-1910, que teve em Max Linder uma de suas figuras principais – cinema mais preocupado com a agilidade da ação que com o literário. Eu o filiaria igualmente ao vaudeville teatral de fins do século XIX e começo do XX, que conserva a mesma raiz popular do cinema e também se constrói em cima de quiproquós. Ou então, à literatura policial de Arthur Conan Doyle, Gilbert Keith Chesterton e companhia. Doyle e Chesterton eram leituras diletas de Fernando Pessoa. Guerreiro refere-se aos textos críticos de Chesterton presentes na biblioteca pessoana que poderiam ter servido de influência ao pensamento do escritor português sobre o cinema. Deixa de lado, no entanto, o Chesterton autor de thrillers: no conto “A cruz azul” este escritor utiliza o mesmo expediente de que depois Fernando Pessoa se utilizaria em outro de seus roteiros: sabendo que será vítima de perseguição, o personagem principal envia o objeto precioso pelo correio, mantendo consigo apenas uma duplicata sem valor dele.

"O inesquecível" Max Linder
Mas tem mais: a troca de identidade nem sempre se dissolve no suspense. Ela igualmente desliza para a comédia sexual, e aqui eu me refiro ao terceiro roteiro presente no livro: “Half plan of play or film”. Segundo ele, certo “Marquês A.”, na impossibilidade de comparecer a um evento social, pede que o criado vá em seu lugar e se passe por ele. “D.”, que fica sabendo da ausência de “A.” (mas não do plano bolado por ele), e não recebe convite para o evento, resolve comparecer disfarçando-se de “A.”. Porém, “A.” decide ir à festa tão logo descobre que sua namorada também vai. Resolve, no entanto, fingir-se de “D.”, uma vez que o criado já se passaria por “A.”. A ação é cortada para o interior da festa, quando descobrimos que o criado é, na verdade, um bandido. Assim termina abruptamente o roteiro que, todavia, parece se desenrolar em outros dois documentos do baú pessoano: ambos escritos em português – por oposição ao inglês da primeira parte – e com propostas de desenvolvimentos mais, digamos assim, literárias, para o tema: o dinamismo da ação dá lugar a uma série de diálogos estapafúrdios que só fazem complicar a trama.
A língua inglesa para a construção de um enredo que pende para a cinematografia norte-americana; a portuguesa para os diálogos mais tributários do teatro. Fernando Pessoa parece a todo tempo querer encontrar o idioma que com maior justeza exprima o gênero com o qual se propõe a trabalhar. Tal identidade é ainda uma vez percebida nos dois últimos roteiros presentes no livro, escritos em francês, roteiros que, pela sua temática e cuidadosa decupagem, aproximam-se de obras da vanguarda cinematográfica francesa: ambos rompem com a narrativa convencional, transformando-se em herméticos poemas visuais à maneira do “L’étoile de mer” (de Man Ray, 1928), por exemplo.
Nenhuma semelhança há entre este Fernando Pessoa e aquele que investia em roteiros comerciais. Assim como não as há entre aquele das "Ficções do Interlúdio" e o da Ode Marítima.
Manuscrito de um dos roteiros em francês
Se a morte não tivesse colhido o escritor tão cedo, é bem provável que esses poucos escritos cinematográficos se multiplicassem e comportassem o nascimento de outros heterônimos – afinal, boa parte do recortes sobre o assunto presentes na biblioteca pessoana comporta filmes rodados em 1934, um ano antes da morte do escritor. Mais uns anos e talvez o escritor se inclinasse mais seriamente à sétima arte, podendo, quem sabe, fruir ainda em vida o reconhecimento de sua genialidade.

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Versão adensada da resenha saiu publicada na "Todas as Musas" ano 4, n. 1 (jul./dez. 2012)