Ano passado, propus para mim mesma listar os filmes que veria no cinema. Como sou prática, sabia que isso me obrigaria a visitar as salas de exibição com frequência, levando-me a conhecer o mais amplamente possível (não tão amplamente, já que os cinemas daqui da região não nos apresentam tantas opções) as novidades do mercado. Também decidi que não leria as resenhas de filmes antes de construir minha impressão sobre eles. Minhas idas ao cinema foram fruto sobretudo da curiosidade fomentada pelos banners dos filmes e de um ou outro trailer que vi.
O resultado foi bem interessante. Se tomei algumas rasteiras - por exemplo, de trailers bem realizados que se revelaram propagandas enganosas de filmes ruins, também não raras vezes saí do cinema empolgada com a qualidade de algumas produções. Ao ampliar o escopo de observação - beneficiando-me de um conjunto de salas de cinema alternativo que abriu relativamente perto de minha casa - acabei redescobrindo o gosto pela tela grande. Alguns dos filmes que vi - bons ou ruins - apareceram por aqui, em resenhas às vezes ácidas, às vezes apaixonadas, mas que sempre desejavam intensamente fazer justiça ao que eu acabara de ver.

Descobri-me apaixonada pelo cinema brasileiro e por aquele produzido fora do circuito comercial de Hollywood. Tanto que teria dificuldade, nesse início de ano, de apontar os meus "cinco melhores" de 2010, como fiz no ano passado - muitos mais mereceriam destaque.
No Brasil, se o ano passado foi o ano de "Nosso Lar" e "O Bem Amado", filmes que se apoiaram na religião e/ou na galáxia Global para conquistarem o público, também foi o ano de filmes feitos com esmero, verdadeiras poesias visuais, como "Quincas Berro D'Água" - linda adaptação de A morte e a morte de Quincas Berro D'água, de Jorge Amado - e A Suprema Felicidade, de Arnaldo Jabor. Apareceram também produções independentes de fôlego, como "Antes que o mundo acabe", dirigido por Ana Luiza Azevedo e produzido pela Casa de Cinema de Porto Alegre. Esse foi um dos filmes que senti não poder ter discutido mais detidamente aqui, tão delicado, maduro e humano foi o tratamento dado por ele a conflitos típicos da adolescência: o namoro, a amizade, o desejo de liberdade, a relação com os pais. Àqueles que não o viram no cinema - e a contar pela relação espectadores-produção apontada por Ewald Filho, foram muitos - recomendo que o procurem nas locadoras.

Bom também (e igualmente injustiçado pelo público) é "Topografia de um desnudo", docudrama dirigido por Teresa Aguiar que tem o excelente Lima Duarte como protagonista e reconta um capítulo sombrio da época da Ditadura: o desaparecimento de mendigos do Rio de Janeiro - ato promovido pelo governo com o intuito de embelezar o espaço urbano antes da visita da Rainha da Inglaterra à cidade. E, enfim, não posso deixar de mencionar o surpreendente "Tropa de Elite 2: O inimigo agora é outro", que, a contar pelo binômio qualidade/espectadores, fez justiça ao cinema brasileiro.

José Padilha consegue elaborar uma continuação que multiplica em agudeza crítica a qualidade do original. Enquanto que "Tropa 1" é um filme de ação razoável, que trata de modo unilateral do problema do crime organizado no Rio (a partir do ponto de vista da polícia, claro), "Tropa 2" é um tour de force verdadeiramente visionário no que ele oferece de percepção da realidade carioca (e brasileira) em se tratando da relação entre crime e política. Foi impossível não ler com ceticismo a invasão policial do Morro do Alemão depois de ver o filme. O público recorde que o viu, mais de 11 milhões de espectadores, segundo o ranking apontado por Ewald Filho, deixa-me bastante otimista com relação ao futuro do cinema nacional.
Não é novidade dizer que 2010 não foi um bom ano para o cinema norte-americano. O grosso da produção de Hollywood deu-me aquela sensação ruim de "já ter visto esse filme antes". Pulularam comédias românticas engraçadinhas (e moralistazinhas), com elenco mais conhecido - ou menos -, e mais jovem - ou menos.

Foi um prazer ver a sempre perspicaz Merryl Streep na tela grande, porém, "Simplesmente complicado" é um filme que começa divertido e original e descamba para o mais óbvio enlatado hollywoodiano, com direito a um artificial final feliz que prega a sisudez dos costumes com um zelo religioso. A surpresa, em minha opinião, ficou com "Cartas para Julieta", gracioso pelas locações idílicas e pela sensacional atuação de Vanessa Redgrave no papel da senhora já idosa que viaja à Itália seduzida pela resposta temporã à uma carta que ela enviara à Julieta 50 anos antes. Cada um dos momentos da atriz na película é imperdível. Meus preferidos são aqueles em que a veterana ampara a jovem Amanda Seyfield (ainda visivelmente uma aprendiz do ofício), fazendo-a brilhar - exemplos são as cenas tocantes que mostram o desenvolvimento da relação entre a senhora e a jovem, o qual paulatinamente aproxima-se da relação mãe e filha.

Porém, os filmes do ano em Hollywood (vamos pular os que concorreram ao Oscar 2010) foram "A Origem", "A Rede Social" e "Toy Story 3". Eu daria o prêmio da Academia deste ano ao terceiro sem pestanejar, pelo uso original que ele faz da linguagem cinematográfica e dos gêneros já estabilizados pela Sétima Arte (aliás, meu imenso prazer em falar sobre a animação multiplicou-se diante do fato de o post em questão ter se tornado um dos mais lidos do blog). Porém, "Toy Story 3" já ganhará o prêmio de Melhor Animação, então é provável que "A Rede Social" fique com a estatueta - salvo se aparecer outro azarão na última hora, como ocorreu ano passado com... como era mesmo o nome do filme vencedor?... Já disse aqui como gosto de "A Rede" (1995), filme que, na alvorada do mundo virtual, enxergou a importância determinante que teria a web no dia-a-dia da sociedade. "A Rede Social" faz isso com ainda mais maestria, pois está apoiado no roteiro inteligentíssimo de Aaron Sorkin (repleto de tiradas sarcásticas e elitistas, bem harvardianas, enfim) e conta com atuações excelentes de Jesse Eisenberg e Andrew Garfield - que até então, para mim, eram ilustres desconhecidos.

Para terminar esse breve passeio pelo cinema norte-americano, quero destacar "Minhas mães e meu pai", filme protagonizado por duas ótimas atrizes, Julianne Moore e Anette Benning, que trata com sensibilidade de um caso cada vez mais comum nos Estados Unidos (e no mundo): os percalços vividos pelos casais homossexuais que desejam dar início a uma família. Como concepção cinematográfica, o filme não é uma maravilha. No entanto, ele põe em debate com propriedade questões palpitantes e extremamente atuais, como os direitos que o doador de sêmen tem sobre os filhos gerados a partir de seu material genético; além do direito que cada um tem de escolher seu parceiro. É um gosto ver um filme desses brotando do seio dos Estados Unidos, país apenas pretensamente liberal. O filme comete uns pequenos deslizes de continuidade e, sinceramente, não entendi sua indicação ao Globo de Ouro na categoria "comédia", já que para mim ele é um drama que dá, quanto muito, uns sorrisos sarcásticos de canto de boca, porém, nem por isso ele deve deixar de ser prestigiado pelo público como obra que se afasta dos padrões de Hollywood.
Produções que primaram pelo esmero tanto da forma quanto do tema foram encontradas, em 2010, especialmente fora dos Estados Unidos.

Na Argentina, além do meu preferidíssimo "O segredo de seus olhos", destaco "Dois Irmãos", leitura delicada do relacionamento inter-familiar protagonizada por Graciela Borges e Antonio Gasalla e dirigida por Daniel Burman. Os dois artistas têm uma afinação ímpar que perpassa os momentos cômicos e dramáticos do filme. Gostei do final upbeating, com Gasalla e demais companheiros que com ele se aventuram numa releitura de um clássico de Shakespeare sapateando o clássico de Irving Berlin Puttin' on the Ritz (dançado por Clark Gable nos anos 30) - aliás, essa mistura entre clássico e popular ainda uma vez aponta como o cinema clássico norte-americano é caro ao cinema argentino.
Outra produção que vale a pena é o inglês "O mundo imaginário do Dr. Parnassus", fascinante homenagem a Heath Ledger - ator que o acaso nos roubou tão ridiculamente cedo. É extraordinário o modo como o filme constrói o percurso entre o sonho e a realidade, com o personagem de Ledger (que morreu durante a rodagem do longa) desdobrando-se em atores de fôlego como Johnny Deep e Jude Law - a necessidade acabou fazendo o filme tocar em questões psicanalíticas e lhe deu um dinamismo que remete à estética surrealista.

Disse que deixaria de lado os concorrentes ao Oscar do ano passado mas não posso deixar de mencionar "O Profeta", que aqui chegou apenas em setembro (!), filme ótimo pela leitura amoral que faz do sistema carcerário francês; pelo modo engenhoso como trata de questões de natureza transcendental; e pela leitura atual que faz de Mack the knife, já que o personagem título da canção parece pular de dentro dela direto para a tela - e, por Deus, nunca me dei conta do quão ácido é esse clássico do jazz, que já foi cantado por nomes como Frank Sinatra, Louis Armstrong e Bob Darin.

E, last but certainly not least, 2010 foi o ano do italiano "Vincere", sem dúvida o filme mais surpreendente que vi na tela grande no ano. Este foi outro filme sobre o qual apenas não me estendi porque estava atarantada.
Ele consegue como poucos escolher com precisão os protagonistas (Giovanna Mezzogiorno e Filippo Timi - também não os conhecia) que eu honraria com os principais prêmios da Academia desse ano. Além de tudo, é tecnicamente perfeito. O modo como ele paga tributo à cinefilia italiana é extremamente bem concebido - tanto quanto Tornatore o faz em "Cinema Paradiso".
A película parte de um fato pretensamente real (uma esposa e um filho primogênito que Mussolini teria renegado) para dar um mergulho sem oxigênio no mais descabelado melodrama. Porém, o gênero melodramático cai no filme como uma luva. "Vincere" é agudíssimo, exagerado e delirante como uma ópera de Verdi. Porém, é, na mesma medida, originalíssimo: o passado fascista italiano é recontado com tintas tão irônicas quanto Chaplin o contara em "O grande ditador" (1940) - a cena em que o filho abandonado de Mussolini o imita remete a esta obra de Chaplin. Porém, vista no distanciamento histórico, o discurso ensandecido do líder fascista ganha em "Vincere" contornos mais assustadores, que dialogam com a própria linguagem do drama: concebida a partir da costura de imagens de arquivo de filmes clássicos (como "O Garoto", de 1921) e noticiários em que figuram os atos públicos de Mussolini.

Destaco mais uma cena - certamente Eiseinsten a aplaudiria de pé se ainda estivesse entre nós: Mussolini encontra-se ferido num hospital de campanha em plena 1ª Guerra, cuidado atentamente por uma freira enfermeira, e é visitado pela esposa. Na parede do recinto há um telão que exibe uma antiga versão cinematográfica da Paixão de Cristo. As cenas da Paixão entremeiam-se às do filme na medida em que os três personagens se confrontam; e assim, por meio da subjetiva direta, os personagens do drama religioso tornam-se metáforas dos personagens do drama que se desenvolve no hospital: a religiosa meio insana se enxerga como uma Maria Madalena, dizendo-se esposa de Mussolini, enquanto ele se vê como Jesus Cristo, martirizado que já está pelo ferimento da guerra e expiando uma culpa coletiva que, embora só exista em sua cabeça (àquela altura já tomada pelo delírio de grandeza que o acompanhará ao longo da vida) será a responsável não só por desterrar sua mulher e filho, mas por instaurar a barbárie na Itália.
Espero que este 2011 seja um ano cinematográfico igualmente produtivo. Já vou começar uma nova lista!