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terça-feira, 27 de junho de 2017

O cinema francês contemporâneo no Brasil: Vista d’olhos no Festival Varilux

Acompanhei de modo algo aleatório a mostra anual do cinema comercial francês, entre as entradas e saídas de arquivos, aqui e no Rio, e a redação de artigos e de relatório de pesquisa. Teço a seguir alguns comentários sobre as produções que vi, bastante motivada pelo artigo de Carlos Mattos "Franceses perdidos no tempo e no espaço", que fez eco ao resultado de meu balanço mental sobre as quatro produções que vi: Tal mãe, tal filha; O Reencontro; Tour de France Frantz
Como só vi quatro filmes dentre a dúzia e meia apresentada, esse meu texto obviamente não tem a pretensão de fechar uma interpretação da Mostra ou do cinema francês contemporâneo. De todo modo, o que essa pequena amostragem anuncia é corroborado pelas conclusões que tirei do visionamento algo extenso da produção cinematográfica francesa, que empreendi enquanto eu vivi alguns meses por ali, entre fins de 2012 e princípios de 2013. A decantada “excelência” do cinema francês ficou pra história – no realismo poético dos anos 30 ou na Nouvelle vague, como bem lembra Mattos. Hoje o que se vê é a reprodução à la francesa da standartização oriunda dos Estados Unidos (a qual penetra com a mesma eficácia no Brasil). 
Essa impressão me foi muito forte vendo especialmente Tal mãe, tal filha (Telle mère, telle fille, 2017). As duas peças principais da comédia romântica de Noémi Saglio são Juliette Binoche e Camille Cottin, a mãe riponga e filha certinha que engravidam concomitantemente. A estrutura da comédia romântica norte-americana alinhava o enredo que caminha perigosamente no fio da navalha, mas acaba, ao fim e ao cabo, aderindo ao status quo, como soe ao gênero. O filme traz à baila uma questão razoavelmente bem resolvida na França, a legalidade universal do aborto às gestações de até três meses. Mãe e filha decidem a questão com pragmatismo diante do obstetra – “Eu vou continuar com a gravidez, ela vai interrompê-la.”, diz a menina ao médico. 
Binoche e Cottin são duas perfeitas contrapartes, ambas muito à vontade nos papéis. Todavia, no cinema apenas rimos eu e dois outros gatos pingados: a moral cristã é ainda fortíssima em nosso seio, e agora novamente amonta no seio francês. A personagem de Binoche desistirá do aborto e terminará a história nos braços do marido, o lindo Lambert Wilson, por sinal, o pai da personagem de Camille Cottin. O filme é gracioso, mas fecha numa mensagem edulcorada que deixa algumas lições amargas: que os panfletos contrários ao casamento homossexual, à adoção de crianças por pais do mesmo sexo e ao aborto, usualmente entregues pelas ruas de Paris por grupos de extrema direita, vêm finalmente germinando (que o diga a quase vitória de Le Pen nas últimas eleições presidenciais). Cinematograficamente, o filme prova o descompasso entre o tema e a forma. O aborto é um tema outsider à comédia romântica, lugar da encenação de consensos sociais. O único filme do tipo que conseguiu se safar bem da tarefa espinhosa foi, ao que eu me lembre, Juno (Jason Reitman, 2007). No mais, adere-se à moralidade a mais convencional, como faz esse filme, ainda que com alguma originalidade e graça. 
O Festival Varilux apresenta no Brasil uma mostra do cinema comercial francês e, neste âmbito, não vende gato por lebre. Transparece-se, pelas produções apresentadas, que a viabilização comercial do cinema depende de sua aderência à estéticas/gêneros já consolidados, ou seja, à reprodução do já visto em detrimento das surpresas. O Reencontro (Sage Femme, de Martin Provost, 2017) se sai melhor nesta empreitada. Embora não deixe de lado chavões do gênero – a parteira amarga, porque mal-amada, que vê seu mundo ruir quando a clínica na qual trabalha fecha as portas e a ex-mulher do pai retorna à sua vida às beiras da morte; o perdão; o desaparecimento final da ex-madrasta como catarse ascéptica –, sustenta-se melhor pela química entre Catherine Frot (a parteira) e Catherine Deneuve (a mulher que inconscientemente leva o pai da, então, menina, ao suicídio). 
Ademais, Deneuve tem um significado simbólico nesta mostra que homenageia o cinquentenário de Duas Garotas Românticas (Les Demoiselles de Rochefort, de Jacques Demy, 1967) – esta sim, uma sublime releitura dos musicais hollywoodianos, tão crítica quanto mágica. Sua Béatriz é avó de sua Delphine – a garota romântica que deixa Rochefort para encontrar o amor e a fama em Paris. O trajeto aqui é diametralmente oposto: Béatriz volta a Paris depois de um interminável séjour europeu para encontrar um passado em ruínas e para ela própria ruir, ao cabo da história. Vista a partir deste contraponto simbólico, a situação do atual cinema francês é lúgubre. 
Tour de France (de Rachid Djaidani, 2016) e Frantz (de François Ozon, 2016) abraçam cada qual um gênero consolidado: o road movie, o primeiro, e a ficção histórica, o segundo. São ambos bem acabados, esteticamente honestos. Duas pregações sobre a humanidade que se sobrepõe às diferenças religiosas e geográficas, reflexos deste contexto de fechamento de fronteiras e pregação de ódios. O primeiro coloca em disputa simbólica pela voz e pelo espaço cinematográfico duas gerações, dois gêneros musicais: Gerard Depardieu e Sadek, a história viva do cinema francês (amante, no filme, do clássico cancioneiro francês) e o hip hop (e com ele, as novas mídias sociais, os novos públicos massivos). 
Desnecessário dizer quem leva a melhor – a crista da onda sobrepondo-se à tradição, pintadas uma e outra de modo dicotômico (a personagem de Depardieu como o reacionário nojento que abomina os árabes e a cultura das ruas; a de Sadek – mimese do próprio cantor, que decola na França – como a voz dos jovens, das ruas, das mídias). A representação da vitória final do jovem serve ao gosto contemporâneo – no palco de um megashow em que ele recebe a benção dos seus ídolos. É bem verdade que é política a pintura idealizada da personagem de Sadek – belíssima é a cena em que ele declama O Albatroz, de Charles Baudelaire, ao seu inopinado colega de viagem –, servindo como imposição ao público comum de um estilo musical ainda estigmatizado. Estigmatizado, mas consumido com avidez pelas parcelas jovens do público. Levá-lo ao cinema me parece, antes, um esforço de impô-lo ao público cinematográfico – aquele público que ainda prefere a sala escura aos dispositivos móveis ou à Netflix. Povo à beira do desaparecimento, como o reacionário desempenhado por Depardieu, espelho de Marine Le Pen. Ou, hélas, como o próprio Depardieu, já decrépito - embora divino. 
Frantz, por fim, é um filme interessante, mas estranho. Baseado frouxamente numa obra de Lubitsch (Broken Lullaby, de 1932) que eu não vi, mas, rodada no entre-guerras, provavelmente seguia a pegada antibelicista de O Grande Desfile (1925) e Adeus às armas (também de 1932), fabula sobre o encontro entre um soldado francês e a família do soldado alemão que ele matara no front. Quando comparado à obra original, altera-se aqui o foco: Lubitsch, alemão, ficciona sobre a morte de um conterrâneo, Ozon, de um oponente. Frantz gira em torno da necessidade de perdão do assassino imprevisto, igualmente vítima do conflito absurdo. O filme realiza uma leitura distanciada do passado à maneira como Ozon empreendeu anos antes, em Potiche (de 2010), no que tocava aos musicais de Demy. Mas a densidade do tema parece impedir, aqui, a fluidez do jogo. 
A mim, ao menos, soou incompreensível o tipo de leitura do passado, a oscilar o preto & branco e o colorido (a cor às vezes funciona como metáfora do falseamento da realidade, enquanto que às vezes pinta de modo algo tacanho a felicidade em meio ao infortúnio). 
O resultado é algo pretensioso, embora carregue, em boa medida, a acidez típica de Ozon no enfrentamento da realidade contemporânea (e dentro dela, do atual estado do cinema contemporâneo). Em carta ao povo de casa, a menina finge que tudo está bem, e persiste na cidade cosmopolita, longe do provincianismo de onde viera, até encontrar alguém que sirva de substituto verossímil ao seu amor perdido. Aí está o cinema francês, estendendo-se frágil a tocar um passado glorioso - cada vez mais distante -, dobrando-se a substitutos plausíveis, na falta da grandiosidade perdida.

domingo, 28 de abril de 2013

Cinema e música em Paris: “Le monde en-chanté de Jacques Demy” na Cinemateca Francesa, “Musique et cinéma” na Cité de la Musique

Exposição "Le monde enchanté de Jacques Demy",
em cartaz na Cinemateca Francesa até 4/8/2013
Sentada em minha cama em Valinhos empreendo uma viagem mental até Paris. Ainda falta arquitetar um último post sobre correr dos dias na cidade-luz, aquele que a correria dos últimos momentos impediu de nascer enquanto eu ainda estava naquelas paragens. 
Falaremos de cinema e música. 
Cinema e música num post de despedida? Isso pede trilha sonora. 
Ao fundo soam baixos os primeiros acordes de “Sentimental Journey”, o leitor os escuta? Percebe que a voz doce de Doris Day se avoluma enquanto caminhamos ao longo do rio Sena, em direção da Gare d’Austerlitz, em plena primavera parisiense que começa a pintar tons de verde sobre as árvores e a tingir os jardins com as cores do arco-íris? Ops, comédia romântica em vista. Corta! 
Agora, o inesquecível tema de “Psicose” invade de súbito a cena. Quede árvores vicejantes, flores em botão, o rio Sena a brilhar sob a luz da primavera? Tudo está ali mas nada mais se vê. O som terrífico engole tudo, e o leitor, como o personagem, só pensa no perigo invisível que ganha corpo pela música e parece prestes a fazê-lo sucumbir... A mesma cena transformada pela trilha sonora. 
Paris oferece ao público duas oportunidades de pensar sobre o papel fundamental que a música exerce no cinema. Na Cinématheque Française (metrôs Bercy/Quai de la Rapé/Bibliothéque, dependendo da intensidade do desejo de caminhar que toma o visitante), a poucos metros de nossa cena hipotética, os refletores voltam-se para o mundo cantado/encantado (enchanté, gracioso trocadilho em francês) que Jacques Demy criou ao longo de três décadas. A Cité de la Musique (metrô Porte de Pantin) amplia o escopo para pensar o papel da música no cinema mundial desde o nascimento dele (ambas as exposições valem muito a pena e a visita a uma delas garante meio ingresso à outra). 
Como se vê, as exposições se complementam. 
“Musique et cinéma: le mariage du siècle?” dedica-se a responder prolixamente à questão: “Para que serve a música no cinema?”. 
Um largo salão na penumbra acolhe o visitante. Pelas paredes, vinis com sucessos musicais das películas. À esquerda, fones de ouvido e monitores de 14 polegadas dispostos diante de cadeiras usadas em sets de filmagens dão ao visitante uma mostra do poder do diretor; nas telinhas, cenas de obras célebres como “Nasce uma estrela” de 54. Mais à frente, trechos curtos de outras obras primas desenrolam-se no monitor superior enquanto a banda sonora é destacada no inferior. Ali o visitante tem o poder de manipular o tempo do som e descobrir onde, na imagem, foram emitidos os sons mais agudos, por exemplo. Mais além, uma sala de edição de som acolhe os mais ousados. À sua disposição, um sintetizador de som e um catálogo de cenas de filmes os esperam para que eles deem carne a invenções cinematográficas do tipo das que abrem este post
A exposição, interativa, é um prato cheio para os pequenos – é raro, aliás, que uma exposição em Paris fique um dia sem receber visita deles. No dia em que estive lá cruzei com um grupo de alunos do primário a apertar com curiosidade os botões da juke box gigante do subsolo para ouvir os sucessos musicais de clássicos da sétima arte rodados dos anos de 1920 a 2000. A seleção é eclética: Roy Orbison (Uma linda mulher, 1990), Vinícius de Morais (Orfeu, 1950), Maurice Chevalier (Ama-me esta noite, 1932) ecoaram democraticamente pelos quatro cantos do ambiente. 
A intervenção ativa do visitante no ambiente dá lugar à concentração silenciosa na sala seguinte, onde três telões apresentam cenas de clássicos nos quais a música exerce papel preponderante. Em cena, Meryl Streep, levada pelas mãos do amado, aprende das alturas quão grande é a África. O tema musical de “Entre dois amores” (1985) é a alma do filme. 
No andar de cima aprenderemos pela observação empírica como os temas das aberturas das obras dão o tom das mesmas – duas dezenas de vídeos sucedem-se no centro do salão de entrada, convidando o público à aproximação. Enquanto isso, salas menores convocam os interessados a ouvir os criadores explicando a gênese de suas obras. É lá que, por exemplo, Michel Legrand explica que o ritmo de “The Thomas Crown affair” (1968) foi dado pela sua música (premiada com o Oscar), criada a posteriori à rodagem e que, não obstante, definiu a decupagem do filme. Corte, fade out

Fade in para a próxima vedete do post
Os curiosos pela sétima arte têm alguma ideia sobre a importância de Michel Legrand na arte de Jacques Demy, já que o músico foi responsável por musicar a poesia dos principais sucessos do artista: “Guarda-chuvas do amor” (Les parapluies de Cherbourg, 1963), “Pele de asno” (Peau d’âne, 1970) e “Les demoiselles de Rochefort” (As donzelas de Rochefort, 1966). 
A câmera Pathé Kid de
Jacques Demy
A mostra que a Cinemateca Francesa acolhe nesta primavera europeia aprofunda a relação entre estas almas-gêmeas artísticas, estabelecendo igualmente outras vias para a compreensão do diretor francês. As demoiselles de Rochefort esperam o visitante na entrada. Um longo espelho transforma-o num personagem daquele filme para jogá-lo dentro da cozinha do menino Jacques, set de rodagem de sua primeira criação, uma fita de animação. Lá está o aparelho Pathé Kid com que ele começou a dar vazão ao seu mundo encantado. Pelas paredes, retratos de família misturam-se aos retratos das personagens de papel por ele criadas a partir dos anos 60, que ganharam corpo nos desempenhos de Anouk Aimée, Catherine Deneuve, Jeanne Moreau. 
Caminhando pela rua cenográfica de Rochefort
O mundo real e o de ficção se misturam, intercambiam-se, reproduzindo o movimento do artista, enfant éternel a usar a batuta de diretor como se esta fosse uma vara de condão, a imprimir mesmo nas imagens mais amargas um sopro de felicidade, a transformar em música e em riso as mais severas filosofias. 
A certa altura do percurso pela vida/ obra de Demy o visitante se vê plenamente imerso nos cenários de seus filmes. Difícil é não aceitar o convite e se tornar um habitante de sua Rochefort ou do reino encantado no qual se refugia a princesa “Pelo de Asno”. 
Recriação do cenário de Pelo de Asno

Entre cenário, telões demandam a atenção dispersa do visitante, que se descobre ora diante de um Harrison Ford que as vicissitudes da indústria do cinema impediram de conseguir, junto de Demy, sua primeira grande chance nas telas (Model Shop, 1968); ora diante de um Marcelo Mastroianni grávido de Catherine Deneuve – inversão jocosa na relação que ambos encetavam offscreen (L’évènement le plus important depuis que l’homme a marché sur la lune, 1973). 
No mundo enchanté de Demy apresentado pela Cinemateca ouve-se também muita música de Legrand e vê-se um belo vídeo em que Agnés Varda compila a arte do esposo. Ambos Varda e Legrand tiveram presença ativa para o preparo da mostra, e Vardas está vez por outra no recinto, a acompanhar de perto a cria, assim como fizera durante a rodagem dos filmes do companheiro: Fotografias das produções realizadas pela artista estão espalhadas pela mostra, e seu nostálgico documentário “Les demoiselles ont eu 25 ans” (1992) compõe o box com a obra completa de Demy, que o visitante cinéfilo precisa trazer de Paris, pois à venda por aqui não há sequer “Os guarda-chuvas do amor” (foi o que fiz, e logo mais vou precisar recorrer a Demy pour revivre les jours d’été – como cantam as soeurs jumelles Catherine Deneuve e Françoise Dorléac – que vivi nesses gélidos e inesquecíveis meses que passei em Paris.) 

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Dessay, Legrand e a preparação da “Recette pour un Cake D'Amour” de “Peau d’Âne” (1970)

Vivendo intensamente minhas (re)descobertas francesas. 
O maravilhoso acaso do encontro com Natalie Dessay reservou inúmeras surpresas. A soprano francesa passou o mês circulando a França ao lado de Michel Legrand, a cantar as canções por ele compostas ao longo de mais de 50 anos, para clássicos como “Os guarda-chuvas do amor” (Les parapluies de Cherbourg, 1964), “As donzelas de Rocheford” (Les Demoiselles de Rocheford, 1967), “Pele de Asno” (Peau d’Âne, 1970) e "Yentl" (1982). O necessário encontro com ela trouxe de bandeja a redescoberta de um dos mitos da música popular. Não podia ser melhor. Chuva de pétalas de rosas sobre a fronte de Natalie, a quem o blog se dedicará mais a contento brevemente (tapete vermelho já em fase de instalação)! 
No entanto, o assunto principal da postagem é um dos efeitos colaterais de Mme. Dessay, “Pele de Asno”, ou melhor, a receita do “Cake d’Amour” de “Pele de Asno”, episódio central do filme de Jacques Demy. 
Nada melhor para por fecho no ano que a preparação de um bolo de amor, no qual colocaremos todas as nossas melhores esperanças para o ano vindouro, e... Opa, chuva de clichés à vista; paremos por aqui antes que o leitor feche – com razão – a página, e vamos logo para a receita... Mas não sem antes dizermos umas palavrinhas sobre o filme. 
Michel Legrand e Jacques Demy engendraram, a partir dos anos 60, uma das mais frutíferas parcerias do cinema. Juntos, o músico e o letrista/roteirista/diretor promoveram uma leitura tipicamente francesa do filme musical norte-americano. Vistas de relance, suas películas nada devem às produzidas por Hollywood. O olhar atento revela a originalidade na tessitura das músicas, dos versos e uma maior liberdade na montagem. O resultado é a quebra das convenções que regiam os musicais americanos em direção à leitura bem-humorada das complexas relações humanas; a uma poesia risonha. 
A definição veste bem “Pele de asno”, cujo enredo foi baseado em fábula de Charles Perrault. Catherine Deneuve é a princesa repudiada pelo pai depois da morte da mãe. Uma promessa feita à esposa impede o rei de se casar novamente. Quererá o acaso que a mulher perfeitamente talhada para ele seja a filha, a quem ele pede em casamento anos mais tarde. 
A menina vacila, embora esteja mais que propensa a aceitá-lo como marido. A avó, uma fada, canta-lhe os graves preceitos morais que impedem a união: Mon enfant, on épouse jamais ses parents./Vous aimez votre père, je comprends./ Quelles que soient vos raisons,/ Quels que soient pour lui vos sentiments./Mon enfant, on épouse pas plus sa maman./ On dit que traditionnellement,/ Des questions de culture et de législature/ décidèrent en leur temps, qu'on ne mariait pas/les filles avec leur papa. (“Conseils de la fée de Lilas”). Canta-lhe esse assunto da maior gravidade e de forte sopro trágico no ritmo monotonal da língua francesa, por cima de uma melodia que mais se choca com os versos do que os envolve, promovendo como resultado final uma graciosa surpresa. 
Quando tomado no diálogo com a matriz americana, “Pele de Asno” revela-nos um punhado de outras surpresas. A princesa é obrigada pela avó a partir inesperadamente a um longínquo povoado, disfarçada como a emporcalhada criadinha Pele de Asno – depois saberemos que a avó queria mesmo era casar-se com o rei, que, neste sentido, por uma ironia do destino é obrigado a abrir mão da filha para se unir à sogra!... 
Reduzida ao trabalho braçal, Pelo de Asno divorcia-se das princesas sofredoras e passivas da tradição ao decidir que se casará com um príncipe, nem que precise sair ela mesma em sua busca (“Les insultes”). E depois de enredá-lo, ela, com uma encantadora assertividade, preparará para ele a famigerada “Recette pour um Cake d’Amour”, cujo papel fetichista é sublinhado pela crítica que tratou do filme. Aqui, deixaremos fetiches de lado para metermos a mão na massa literalmente. A partir de agora, o Cake d'Amour", versão "Filmes, filmes, filmes!". Mas primeiro, fiquem com a canção: 

 

Recette pour um Cake d’Amour versão Aline Vessoni e Danielle Crepaldi: 

Como viram no clip, Pele de Asno desdobra-se no seu alter-ego Princesa para preparar o doce. Eu precisava de ajuda, por isso convidei para a empreitada a amiga Aline Vessoni, que todos dizem ser minha irmã-gêmea perdida. Eu, responsável por preparar a receita, faria o papel da princesa. Ela, da mal-ajambrada Pele de Asno... 
Embora tenha reagido agressivamente a princípio (por que será?!...), Aline acabou por encampar a ideia. Aqui vocês a veem entoando a canção em falsete. Abaixo segue a receita/canção.

Préparez votre... préparez votre pâte 
Dans une jatte... dans une jatte plate 
Et sans plus de discours 
Allumez votre... allumez votre four.

Prenez de la... prenez de la farine 
Versez dans la... versez dans la terrine 
Quatre mains bien pesées 
Autour d'un puit creux... autour d'un puit creusé

Choisissez quatre... choisissez quatre œufs frais 
Qu'ils soient du mat'... qu'ils soient du matin frais 
Car à plus de vingt jours 
Un poussin sort tou... un poussin sort toujours. 

Un bol entier... un bol entier de lait 
Bien crémeux s'il... bien crémeux s'il vous plait 
De sucre parsemez 
Et vous amalga... et vous amalgamez. 

Une main de... une main de beurre fin 
Un souffle de... un souffle de levain 
Une larme de miel 
Et un soupçon de... et un soupçon de sel. 

Il est temps à... il est temps à présent 
Tandis que vous... tandis que vous brassez 
De glisser un présent 
Pour votre fian... pour votre fiancé 

Un souhait d'a... un souhait d'amour s'impose 
Tandis que la... que la pâte repose 
Lissez le plat de beurre 
Et laissez cuire une... et laissez cuire une heure 


Préparez votre, préparez votre pâte...: resultados do experimento 

Com todo o respeito, M. Demy e M. Legrand como cozinheiros são ótimos músicos. A mistura de quatro punhados de farinha, quatro ovos e uma cumbuca de leite apenas dá uma massa manipulável com as mãos no mundo fantástico instaurado pelo filme... Un bol entier de lait foi reduzido para cerca de 100 ml. Como a receita pede-o bien crémeux, usei um lait concentré entier non sucré, semelhante ao nosso creme de leite, não fosse por sua coloração amarelada. Mas mesmo a diminuição da quantidade de leite resultou numa massa da consistência de um milkshake... 
Enquanto eu realizava o milagre da multiplicação do trigo dentro da jatte plate, chegou em casa da Aline a Flávia Bragatto (era véspera de Natal, dia perfeito para preparação de um “Cake d’amour”...), chefe de cozinha que os deuses sabiamente colocaram em nosso caminho. Concordamos que quatre mains bien pesées era uma medida deveras vaga de farinha de trigo... À essa altura a receita era seguida apenas de rabo de olho, e Flávia se uniu a mim na missão de fazê-la dar certo. 
Cozinhando bem vestida pela primeira vez na vida...

Aos quatro ovos, ao leite e às 750 gramas de trigo (“quatre mains” de gigante de trigo...), introduzimos quatro colheres de sopa de açúcar e aproximadamente 50 ml de mel. 
Seguimos à risca a quantidade de manteiga da canção, une main de beurre fin, umas boas 100 gramas. Multiplicamos o fermento para fazer o - agora - monstro, crescer; un souffle de levain virou três sachês de fermento biológico, já que cada qual faz crescer 250 gramas de trigo.
Hélas, antes a poesia de Demy que essa descrição prosaica da receita! Bem, atentamos contra a arte, mas... deu certo! Eis o resultado final, depois de a massa ter descansado ½ hora em fogo baixo e assado uma hora em temperatura de 200 graus. 
O bolo/pão acabou por espalhar amor pela casa (...). Como ficou apenas levemente doce, nós o comemos com manteiga, ricota, mostarda, patê de atum, frango e tudo o mais que havia na mesa. 
E na manhã do outro dia, ele ainda gloriosamente foi acompanhado por Nutella e mel, recordando experiências muito doces que começaram no concerto de Dessay e Legrand e acabaram numa perfeita (embora um tanto quanto bagunçada, devo reconhecer...) noite de Natal.

sábado, 30 de julho de 2011

As parcerias inspiradas de Catherine Deneuve & François Truffaut: “A sereia do Mississippi” (1969) e “O último metrô” (1980)

“Potiche”, ao qual recentemente me referi aqui quando falei sobre o Festival Varilux do Cinema Francês, me obrigou a uma visitação na filmografia de Catherine Deneuve. Retorno do passeio extremamente impressionada – besta, para dizer a verdade – com a variedade e a qualidade dos trabalhos por ela realizados e as nuances que ela soube dar às personagens criadas sob as batutas de diretores muito diferentes: o português Manoel de Oliveira, o inglês Roman Polanski, os franceses Luis Buñuel, Jacques Demy, François Truffaut, para citar só alguns poucos. Duas das obras de sua filmografia que mais me impressionaram foram dirigidas por esse último: “Le dernier métro” e “La sirène du Mississippi”. Embora diferentes entre si, ambas conservam um bom humor, delicadeza e frescor análogos, o que as torna tão atraentes.
Falar sobre elas é uma missão algo difícil para esta cinéfila que carece de conhecimento da produção de Truffaut ou do cinema posterior a 1960, e que até dois meses atrás não havia visto de Deneuve mais que os dois clássicos lançados pela Folha em meados de 1990, “A bela da tarde” e “Indochina”. Por esse motivo, o post terá, como o leitor vai perceber, um agudo quê impressionista. Se ele não se salvará enquanto leitura da produção autoral de Truffaut, espero que se salve como propaganda. Ele e Deneuve alimentaram mais que uma ardente histoire de l’amour, como nos comprovam essas duas pérolas.

A primeira é um surpreendente thriller romântico-farsesco com pinceladas certeiras de Hitchcock. Não posso deixar de lê-lo em diálogo com a extensa e maravilhosa (tantas vezes já recomendada aqui) entrevista que o diretor francês fez com um Hitch já maduro, um bate-bola memorável em que ambos discorrem sobre o cinema com clareza e profundidade.
A produção cinematográfica do diretor inglês deixou recordação indelével no francês desde jovem – como o entrevistador deixa claro ao entrevistado inúmeras vezes. Truffaut entrevista Hitchcock em 1962; "Hitchcock/Truffaut: entrevistas" sai pela primeira vez em 67. A emulação bem humorada de Hitchcock feita por Truffaut na “Sereia do Mississippi” parece desdobramento natural daquela admiração. Emulação que ganha contornos próprio, distintos da obra do mestre, bem entendido. Mais que entrevistador, o diretor francês fora um dos críticos responsáveis por elevar a obra de Hitchcock do lugar de “entretenimento banal” que ela ocupava para “obra autoral” de primeira grandeza.

“A Sereia do Mississippi” (La sirène du Mississippi, 1969) deixa patente seu lastro com a fantasia e o mito logo no título, no predicativo que atribui à personagem de Catherine Deneuve: como o ser fantástico (um pássaro ou um peixe, dependendo da origem da mitologia), sua Julie/Marion é uma mulher ambivalente – o que se apercebe a partir de seus nomes, um de conotação maviosa e outro, severa. Ela começa a história como a esposa por encomenda de um plantador de fumo de uma ilha do Oceano Índico; mulher loura, linda e misteriosa que, vestida com tecidos de estampas suavemente florais, surpreende o noivo à espera de uma mulher morena e comum. O charme da jovem enreda o noivo e, por tabela, o público. Depois de crer com facilidade na história pouco verossímil contada pela mulher, o jovem (Jean-Paul Belmondo) se casa com ela e se coloca aos seus pés: Vous êtes adorable, Julie – o mantra que ele repete durante a primeira parte da história sugere a perda de razão gerada pelo fascínio que a literatura ocidental tanto atribuiu às sereias.
A graça da película está na quebra de expectativas que o diretor vai inserindo na história. O idílio amoroso vivido pelo casal em lua de mel é brevemente quebrado por uma saída misteriosa da mocinha. O marido não percebe. Truffaut, a partir daí, começa a brincar de ser Hitchcock. Assim como faz o mestre inglês faz em “Um corpo que cai” (1958), o francês constrói o suspense depois de tornar o público ciente de algo que o protagonista não sabe: no filme americano, o espectador fica sabendo muito antes de Jimmy Stewart que a simplória Judy e a misteriosa Madeleine são a mesma pessoa; na “Sereia do Mississippi”, a escapada da jovem obriga o público a subverter o olhar de encantamento que desde o princípio voltara à Julie. A semelhança dos nomes Marion/Madeleine – Julie/Judy também não parece coincidência, bem como a sua conotação. O “Mad” (louca) de “Madeleine” pode ser lido como alusão à suposta insânia da personagem de Hitchcock. A inversão que Truffaut promove na atribuição de nomes à sua personagem aponta para o caráter de emulação/subversão que o diretor francês imporá à obra o inglês. Caráter que atinge o paroxismo na segunda parte do filme, na multiplicação das referências às obras de Hitchcock: os primeiros planos dos trilhos do trem que levam o jovem apaixonado em busca da amada lembram “Pacto Sinistro” (1951) e “Quando fala o coração” (1945); sua internação num manicômio para se curar do transtorno emocional que sofrera com o abandono da mulher lembram o destino de Johnny em “O corpo que cai”; a corrida louca do casal pelos quatro cantos de Paris, tendo insolitamente no encalço o detetive que o próprio protagonista contratara para achar a mulher, lembra “Intriga Internacional” (1959); a deliciosamente absurda cena do envenenamento do mocinho lembra “Interlúdio” (1946): tanto pelo móvel do crime quanto pela personagem que o intenta.

Truffaut só lembra dos grandes Hitchcocks, daqueles que, durante a entrevista, ele próprio dissera ao diretor inglês que eram seus preferidos. E o uso que faz dos filmes só faz reforçar o tom de homenagem bem humorada: as constantes quebras de expectativas surpreendem e deleitam o público tanto quanto o faz Hitchcock usando expedientes diferentes. Hitch constrói suas personagens ancorado na realidade. Truffaut manda o mundo real às favas e cria uma fábula divertidíssima, como que uma brincadeira de criança. Até a loura elegante e aparentemente frígida ele traz do mestre (tenho pra mim que Deneuve daria uma grande musa de Hitchcock, se ambos tivessem se encontrado a tempo), atribuindo-lhe uma original dose de baratinamento sexual, moral e afetivo. Também a conclusão é subvertida: livre da necessidade de um Happy End – ao qual Hitchcock tantas vezes fora obrigado – Truffaut leva para o ritmo do filme a dinâmica de sua personagem principal, deixando a conclusão em aberto. A mulher-sereia não poderia dar uma existência de constante felicidade ao seu eleito. Mas de modo algum isso o afastava dela. O sentimento ambíguo de medo e paixão que ele nutre pela esposa fazem-no concluir: Vous êtes si belle, Julie, que te regarder c’est une joie et une souffrance. (Você é tão bela, Julie, que te olhar é uma alegria e um sofrimento).


O sensacional é que esta frase volta, quase que ipsis litteris, noutra parceria inspirada de Truffaut & Deneuve, “O último metrô” (Le dernier métro, 1980). Um parênteses necessário é o de que a beleza da musa francesa lhe rendeu, com o passar dos anos, uma legião de fãs/jornalistas/diretores extasiados. Em nenhuma de suas entrevistas ela deixa de ser atingida com perguntas que concernem a sua aparência física. Perguntada recentemente no Brasil sobre se “É um peso ser bela”, ela respondeu de modo inspirado: “Peso maior é ser feia”. Além de não ter pelo na língua (Bravo, Catherine!), a atriz demonstra que esta é, para si, uma questão menor. Tenho para mim, portanto, que ela e seu diretor decidiram de comum acordo transformar o assunto em tema de chiste. Quem pronuncia a sentença no filme de 1980 é a personagem desempenhada pela personagem de Gérard Depardieu na peça de teatro “decadentista” que um grupo francês encena numa Paris invadida pelos alemães durante a 2ª G.M. A frase, pronunciada com agudeza pelo ator, combina com o tom ultra-meloso e escapista da peça que o grupo põe em cena. Pensando-a no diálogo com o contexto, ela me parece uma gozação com o modo romantizado pelo qual público e imprensa veem a atriz – que, não raras vezes, afirma esperar no futuro “ser lembrada pela competência como intérprete e não pela beleza”.

Parênteses devidamente fechado, vamos agora a esse que é, sem dúvida, um dos melhores filmes de todos os tempos. E isso por tantos motivos... Pela profundidade com que trata das relações sociais estabelecidas em tempos de guerra, pela sutileza com que as personagens são construídas, pela solidíssima construção cinematográfica que torna o filme num só tempo inteligente, comovente, dinâmico, enfim, uma delícia de se ver e rever. Nele, Deneuve é uma ex-atriz de cinema que passa a tocar um teatro junto do marido diretor. Quando estoura a guerra, o homem de ascendência judia é obrigado a se esconder sob o palco do teatro, tornando-se, literalmente, a base sobre a qual se sustenta o edifício da peça ensaiada. Truffaut conduz uma câmera fluida para unir, de modo simbólico, o diretor apaixonado e o elenco alheio à sua presença: nas mais sofisticadas tomadas, a câmera desliza das cadeiras do teatro para o palco, dele para os atores e, em seguida, para a tubulação que levará as palavras ao diretor que, no subsolo, as repete com prazer. Emergem dessas cenas a dedicação pela arte, a luta pela liberdade e a possibilidade de o indivíduo espoliado retomar seu lugar na sociedade utilizando-se para isso da argúcia – expedientes que antes transformaram “Ser ou não ser” (1942), seu irmão de temática, noutro grande filme.
Em paralelo ao drama do diretor corre o drama de cada uma das personagens, as quais, apesar de livres, paradoxalmente sofrem mais revezes que o diretor. Longe dos olhos, mas não dos ouvidos do marido, a personagem de Deneuve protagoniza com a de Depardieu uma das histórias de amor mais surpreendentes da história do cinema. A economia dos gestos da atriz e a delicada robustez do ator presenteiam o público com um par romântico belo e verossímil. Um dos pontos altos do filme é a interferência do marido da jovem para esse desenlace. Tal inferferência mostra que Bernard Shaw estava certo ao dizer - tanto tempo atrás - que preferia a sutileza do Dr. Wangel (de “A dama no Mar”, drama de Ibsen) ao dispensar sua esposa do compromisso de ambos, do que a machadinha que certa personagem de Sardou usava para dar cabo da mulher que o traíra...
Com o filme, Truffaut prova cabalmente que o conceito de “autoria” não é sinônimo de emprego e reemprego incansável da mesma série de procedimentos tendo em vista chegar a um fim já conhecido. No "Último Metrô" está todo o charme de “A Sereia do Mississippi”, porém, numa ancoragem muito mais incisiva na realidade; num tratamento muito mais humano àquelas mulheres e homens que tinham de lidar com duros conflitos – não só externos como também internos.


sábado, 18 de junho de 2011

Festival Varilux de Cinema Francês 2011: várias boas realizações e uma obra-prima

Nessa semana, um pouco da cultura francesa desembarcou no Brasil no Festival Varilux de Cinema Francês 2011 - que nos trouxe 10 filmes recentemente produzidos e alguns nomes consagrados que deles tomaram parte.
Em Campinas, o festival encontrou seu espaço de divulgação no Cinema Topázio, que graciosamente se divide entre a exibição da produção cinematográfica comercial e da alternativa - algo cada vez mais difícil de se ver - e, aleluia, está fincado logo na entrada da cidade, bem perto daqui. Não dá para falar da mostra sem mencionar a casa que a hospedou - que é, aliás, minha segunda casa, como a de tantos outros cinéfilos que temporariamente se mudaram para lá junto com os filmes franceses. O resultado foi proveitoso - salas cheias, algumas vezes lotadas, ajudaram a contrariar a crença socialmente consolidada de que o público está hoje preferindo o download pirata às salas de exibição.
O cinema - enquanto espaço de congregação de pessoas no âmbito público - mostra que não vai morrer tão cedo, e aqui assino publicamente embaixo da simpática propaganda do Telecine projetada antes dos filmes: não há nada como o cinema no cinema.
Isso dito, passo agora a dar uma notícia das novidades francesas. Notícia breve e que ainda se ressente da overdose de trabalho dos últimos tempos - o que, infelizmente, me afastou daqui por mais tempo do que desejaria. Espero que a desamarração geral das linhas abaixo não diminua o desejo dos leitores de passar os olhos por algumas dessas produções - especialmente por "Potiche: Esposa Troféu", a obra-prima do título, comédia protagonizada por uma irresistível Catherine Deneuve. No entanto, não vamos pôr a carroça antes dos burros. Primeiro, uma referência às boas realizações, ao menos àquelas que tive a oportunidade de ver (a lista completa está aqui).

Audrey Tatou em "Uma doce mentira"


Os dramas

O primeiro, "Copacabana" (2010, direção de Marc Fitoussi), protagonizado por Isabelle Huppert, injeta um riso ao mesmo tempo ácido e estapafúrdio na situação dramática que toma como base. Huppert desempenha uma mãe atípica, hippie extemporânea rejeitada pela jovem filha que está prestes a se casar. Depois de ser desconvidada para o casamento da filha, a mulher viaja à Bélgica atrás de um emprego de vendedora de apartamentos time-sharing (sistema segundo o qual se adquire um imóvel em conjunto com outras pessoas, desfrutando-se do direito de ocupá-lo por um breve período de tempo todos os anos). O motivo real da viagem nem mesmo ela sabe ao certo, impulsiva que é: provar à filha que poderia ser uma mãe convencional?; viver outra aventura noutra terra estrangeira? A fortuidade impera no roteiro, estendendo-se para o título e a trilha-sonora da película - canções brasileiríssimas ritmam malemá as andanças da mulher pela gélida Bélgica - coadunando-se com as excentricidades do conjunto (excentricidade impressa até mesmo no colorido cartaz).
A história é surpreendente: a viagem desde sempre anunciada ao Brasil - mas nunca realizada empiricamente - desdobra-se numa original vivência da protagonista com o país que ela tanto ama (ama, aliás, o estereótipo do Brasil, o que nem por isso deixa de ser interessante, já que dá consistência ao papel da mulher avoada e calorosa); o percurso até o insólito clímax (que não vou anunciar para não perder a graça) é marcado por encontros da protagonista com personagens igualmente incomuns.
O mote da trama é doloroso e Huppert parece mais uma vez se deleitar desempenhando com desprendimento outra personagem surda às imposições do mundo, vivendo somente para seus instintos (vi-a pouco tempo atrás em "Minha terra: África", igualmente correta). O filme não alça nenhum maior voo, porém, é interessante pela forma como rejeita expressamente qualquer convenção - o que pode até acarretar na dificuldade de o público se identificar com a personagem principal, mas nem por isso diminui o interesse da história.

Os outros dois dramas seguem o mesmo saudável percurso que faria muito bem ao cinema norte-americano standard dos dias de hoje: roteiros despretensiosos, limpos e seguros, e atuações de uma naturalidade quase documental.
"O pai dos meus filhos" ("Le père de mes enfants", 2009, direção de Mia Hansen-Love) toma como tema a indústria do cinema a partir do ponto de vista de um pequeno produtor que tenta se equilibrar entre os sucessos comerciais e os artísticos. Que a luta é infausta todos nós sabemos. O problema é que as produções que se dedicam ao assunto insistem em desfechos upbeating - nos quais a qualidade vence o dinheiro e o artista lutador vê finalmente seus esforços recompensados. Aqui não há disso.
Acessamos flashes da vida familiar e profissional de Grégoire Canvel, pai amoroso e produtor cinematográfico dedicado que acaba digerido pelo sistema. A soma dos âmbitos público e privado, todavia, não prenuncia o desfecho que o homem terá: por isso tal desfecho é tão surpreendente.
A principal riqueza do filme está no modo como as duas partes da história são contadas. Na segunda, a virilidade - marca principal da personalidade de Canvel, transferida para o ritmo frenético da filmagem - é suplantada pela delicadeza das mulheres da família. A forma como o percurso se dá é bastante bonita: Multiplicam-se os primeiros planos dos rostos das frágeis mulheres e a velocidade dá lugar à lentidão; enquanto isso, através de velhas cartas do homem e da defesa de seus ideais, mãe e filhas tentam repor sua presença. O resultado vale a pena ser conferido.
Igualmente original é o modo como o thriller Simon Werner desapareceu... ("Simon Werner a disparu...", 2010, direção de Fabrice Gobert) é narrado. O mote é simples: numa escola de Ensino Médio, três jovens misteriosamente desaparecem. As soluções comuns ao gênero são, no entanto, deixadas de lado em prol de uma narração reiterativa, que teima em (re)contar tais desaparecimentos a partir dos pontos de vistas dos colegas de escola dos jovens. A escolha igualmente diminui a importância dada aos momentos de surpresa, e os sustos comuns ao gênero dão (viva!) espaço para uma leitura muito mais cerebral do caso narrado. O final é surpreendente e só faz ressaltar a potencialidade de uma narração em primeira pessoa: a câmera ganha os olhos de várias personagens; a subjetiva direta apresenta o olhar de cada um sobre o fato. Quem faz o balanço é o público, que, nesse sentido, participa do desvendamento do caso.
Algo curioso - e que menciono só de passagem, já que não consigo cogitar em suas razões - é que o filme tem um sopro nostálgico que se estende para as outras duas produções das quais me ocupo a partir de agora. Nele aparecem debates sobre o tabu do homossexualismo, a AIDS e a camisinha. Além disso, pululam walkmans e os toca-discos ritmam as festas estilo "Barrados no Baile" - o divertimento ingênuo com que as personagens dos anos 80 comemoravam a saída dos pais de casa ganha aqui tom lúgubre, mareado pelo aparecimento de um corpo. Parece que o nosso dia-a-dia marcado por celulares e demais dispositivos de localização imediata diminui o mistério das coisas, e que para novamente encontrá-lo se é preciso mergulhar no passado...

As comédias

O festival acertou em cheio na escolha das comédias: ambas leves e adoráveis. "Uma doce mentira" ("De vrairs mensonges", 2010, dirigido por Pierre Salvadori) permitiu a Audrey Tatou revisitar a personagem que eternizou em "O fabuloso destino de Amélie Poulain".
O filme está distante da obra-prima de 2001 no que toca à temática e o cuidado com a fotografia - de uma sofisticação e singeleza ímpares, como raramente vemos nesses dias. Porém, ainda podemos ver uma Audrey Tatou luminosa como um raio de sol - sim, a comparação é tolinha, mas é exatamente nela em que pensava sempre que o rosto da atriz era enquadrado pela câmera - demonstrando cabalmente que, embora se desincumba bem de papéis dramáticos, seu elemento mesmo é a comédia leve.
O enredo é simples, mas rende múltiplos achados cômicos: Emilie é dona de um estiloso salão de beleza situado num canto da Riviera e tem como empregado um jovem charmoso que nutre por ela uma paixão recolhida. Uma carta romântica anônima escrita pelo rapaz à moça dá início a peripécias que acabarão por envolver também a mãe dela - mulher desgostosa da vida depois de ser abandonada pelo marido.
Nada muito inovador, porém, a história é contada de um modo tão gracioso que se torna imperdível. Para isso, contribui enormemente uma trilha sonora dos anos 80 - não localizei os nomes das canções para dizê-lo com certeza, mas os arranjos me parecem bastante tributários dos 80 - que são um deleite para os ouvidos dos nostálgicos (para mim, essas canções combinavam com a piscina do clube onde eu passava despreocupados verões, tanto tempo atrás...). Elas caem como uma luva na história, dando credibilidade aos bobinhos desencontros amorosos encenados - já que estão envolvidos por aquela pátina do tempo que torna tudo mais charmoso. Imperdível, assim como "Potiche".

A surpresa do festival foi, para mim, "Potiche: Esposa Troféu" (Potiche, 2010, dirigido por François Ozon). Por causa dele, Catherine Deneuve acabou de ganhar um espaço de destaque na minha prateleira de musas.
O filme segue de perto o melhor da screwball comedy. Não conheço a filmografia do diretor e conheço pouco a de Deneuve. Então, ver o filme me proporcionou a deliciosa descoberta de que é ainda possível reencontrar na tela grande o ritmo que tanto me deleita naquelas maravilhas dos anos 30 e 40 dirigidas por Capra, Lubitsch, Cukor, La Cava... E isso pelas mãos de uma atriz que, embora experiente, mostra que pode ser lépida como uma garotinha - o que multiplica o charme da história.
"Potiche" mergulha romanticamente no passado - no final dos anos 70, aurora da luta da mulher pela igualdade social. Deneuve é Suzanne Pujol, a esposa enfeite.
Casada com um homem de ferro da indústria do guarda-chuva, a mulher de meia-idade (embora a atriz tenha quase 70, passa facilmente por uma mulher de 50 - ou menos) precisa se contentar com um espaço módico na vida pública e privada do homem. Como as bonequinhas dos anos 70, Suzanne se dedica a ninharias. Ela escreve poesias... A sequência que abre o filme, da mulher correndo no bosque e interagindo com os pequenos animais silvestres, é um primor da graça, tolice e poesia (não é quase impossível juntar bem tudo isso?).
A viagem ao passado é acompanhada de um olhar num só tempo amoroso e analítico. O filme constrói, com riqueza de detalhes, tipos e estereótipos dos anos 70 - o próprio pôster faz graça com isso, rotulando todas as personagens logo de cara, influenciado em grande medida pela produção cinematográfica e seriada da época. Porém, cabelões armados, calças bocas-de-sino, laquê e companhia emolduram personagens algo complexas. Os estereótipos vão caindo na medida em que a esposa-troféu vê-se obrigada, devido à doença do marido, a sair da estante e enfrentar a fábrica dominada pelos funcionários insatisfeitos. E aí, o filme é todo de Catherine Deneuve, que conduz o protagonismo com uma maestria igual a qual é raro vermos. A dignidade que a atriz experimentada imprime a cada cena faz o filme a todo momento deixar a sátira e esbarrar na poesia: seu encontro com o velho amor na boate da moda; sua relação suis generis com o marido - contada por uma câmera que a todo momento beira o kitsch mas vitoriosamente escapa dele.


Sem contar as referências à sétima arte - não só a produzida nos anos 70. Sabem que sou amante assumida do cinema clássico. Por isso minha emoção ao ver Catherine tratada com um respeito quase reverencial pelo diretor - a alusão a "Os guarda-chuvas do amor" não está só na fábrica de Monsieur Pujol, mas na canção que a própria personagem entoa graciosamente no clímax do filme. O respeito é merecido, porque não só a atriz mostra ter se esbaldado em cena, nós também nos esbaldamos com ela.

Como esse post é mais um convite para que os leitores conheçam as produções que uma análise cerrada de cada uma delas, paro por aqui para não estragar as surpresas. Aqui em Campinas, nos movimentamos e ganhamos de presente "Potiche" por mais um par de semanas. Desejo-lhes a mesma sorte!