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quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Hitchcock, o gênio assombrado


Ninguém mais ou menos familiar com a obra de Alfred Hitchcock é capaz de negar que ela apresenta um denso compêndio de neuroses.
Nela desfilam homens feridos física e/ou psicologicamente por armas às vezes tão mortais quanto desconhecidas. Homens fechados ao relacionamento amoroso, como o agente da inteligência norte-americana em tempos de guerra Cary Grant, de “Interlúdio” (Notorious, 1946), que convence a mulher de costumes fáceis Ingrid Bergman a se juntar aos Aliados, casando-se com um espião nazista. Homens aos quais a Guerra só fez emergir um complexo pré-existente, como o suposto médico e suposto assassino Gregory Peck de “Quando fala o coração(Spellbound, 1945), curado com a conjuração da psicanálise freudiana pela Dr. Constance Petersen (novamente Ingrid Bergman). Homens esquivos como o taxidermista Norman Bates de “Psicose”, que cobre com a capa da afabilidade outro feixe de complexos altamente tributários de Freud; cuja relação com a mãe se desdobra do complexo de Édipo para a projeção/identificação. 

Ou voyeristas como o fotógrafo ao qual James Stewart dá corpo em “Janela Indiscreta” (Rear window, 1954), a fugir da relação de carne e osso com a bela Grace Kelly para mergulhar o olhar na apreciação detalhada da vida alheia, a partir das lentes de aumento da teleobjetiva. 
Uma mente sã certamente não seria capaz de engendrar tais fantasmas. O próprio Hitchcock tratou de construir literatura a seu respeito, como forma de estabelecer os lastros reais, biográficos, das fantasias que dirigiu. A longa entrevista dada já no fim da vida a Truffaut é preciosa por mostrar, no esmiuçamento de alguns personagens, o quanto eles dialogam com as neuroses de seu diretor. A prisão que os pais lhe teriam impingido certa vez, quando ele ainda era garoto, se reproduz cinematograficamente, na sua obra, numa série de indivíduos atados. Atados, muitas vezes, por algemas empíricas, como a lourinha June de “O inquilino sinistro” (The lodger, 1927), presa pelo noivo como um simbólico (e sinistro) prelúdio do casamento; Madeleine Carroll, a quem Robert Donat subjulga nos “39 Degraus” (The 39 steps, 1935), a união forçada transformando-se rápido na aproximação amorosa; ou a algema do suspeito de terrorismo de “Sabotador” (Saboteur, 1942), a qual o tio cego da mocinha simbolicamente não enxerga – enquanto que a deficiência visual o faz ver aquilo que a aparência não mostra; a inocência do jovem perseguido. 
Os objetos cênicos adquirem valor simbólico nos filmes do mestre do suspense. Isso, claro, não é exceção em sua obra. Ocorre em todo grande cinema. Mas falamos de Alfred Hitchcock, que transformou-se a si num de seus mais interessantes personagens. O legado tão precioso que ele deixou à cultura não poderia deixar de motivar reflexões sobre a mente que o construiu. 
Um trabalho notável neste sentido é Fascinado pela beleza, de Donald Spoto, estudioso de cinema com longa lista de publicações na área e cujo estudo sobre a obra de Hitchcock gerou uma tríade de livros, da qual este é o último. Spoto abre o volume com uma longa lista de agradecimentos às atrizes que ele entrevistou. Nomes como Ingrid Bergman, Grace Kelly, Kim Novak, Eva Mary Saint, Tippi Hendren – praticamente todas as protagonistas figuram nela. Ao fim, uma bibliografia igualmente volumosa explicita que a obra não é fruto de meras conjecturas. Estas partes do texto são fundamentais, pois as conclusões da análise de Spoto são estrondosas. 

Os críticos que torcem o nariz para a leitura biografista do objeto artístico terão dificuldades de debelar a argumentação construída pelo crítico. Spoto soma às entrevistas com as atrizes, atores, roteiristas e assistentes, a análise dos textos originais dos roteiros dos filmes e outros documentos de produção, para pintar com cores penetrantes a imagem do homem Alfred Hitchcock: encarcerado no seu tipo físico de glutão, apaixonando-se como um jovem romântico por suas estrelas ao ponto de desejar possuir-lhes o corpo e a mente. 
Pode-se, no início, acusar o sr. Spoto de sensacionalista ou bradar acerca da inutilidade de sua empreitada. 
Mas em certos trechos brilhantes, em que o crítico consegue alinhar as informações de suas fontes ao rendimento cênico de sequências de alguns filmes, só nos resta concordar com ele. Um exemplo é a análise de como sua paixão por Ingrid Bergman, explicitada em convites para martinis noturnos e na escritura de uma cena de “Quando fala o coração” que claramente aludiria a esse sentimento unilateral (a saber: a conversa entre a Dr. Petersen e seu apaixonado colega de profissão, que culmina com a seguinte resposta da doutora: “Ao me tocar você sente apenas seus próprios desejos e pulsações. Eles em nada se parecem com os meus.”), leva-o a tomá-la em primeiros planos extremamente emocionais, a tornarem-na feminina, frágil, monumental. 

Ingrid Bergman e Cary Grant, "Interlúdio" (1946)

Ingrid conseguiu manter seu diretor nas rédeas, conservando com ele uma relação de amizade para toda a vida. O mesmo não se deu com Tippy Hendren. Descoberta pelo diretor numa publicidade, a modelo sem qualquer experiência cinematográfica viu-se uma Eliza Dollittle nas mãos de um Pigmalião (ou nas mãos de um Svengali, como o próprio Hitchcock  se chamava, variante do homem que molda um ser que sacie seus próprios desejos). No pico de sua popularidade, o diretor julgava-se intocável (e efetivamente o era, como prova Spoto). Daí as tentativas de afastar Tippi Hendren do restante dos elencos de “Os Pássaros” (The Birds, 1963) e “Marnie” (1964), de colocar, no encalço da atriz, informantes a relatarem seus passos, de lhe fazer propostas explícitas. Presa por um long term contract, Hendren não via escapatória. 
Ela era a versão humana da doentia relação amorosa que vive com Sean Connery em “Marnie”. Em entrevista, Hendren conta que, durante a rodagem deste filme, Hitchcock lhe informara de que, daquele momento em diante, ela deveria estar completamente disponível para ele; sexualmente, inclusive. Spoto lembra do que a personagem de Connery diz a Marnie a certa altura do filme: “Você acha que eu sou algum tipo de animal que você enredou”, diz ela. “É isso mesmo o que você é. Dessa vez peguei algo realmente selvagem. E pretendo mantê-la em minha posse.”, ele retruca. Em rompantes românticos, o diretor externava à sua estrela os sonhos cinematográficos que nutria com ela (“Sonhei que os raios do sol entravam pela nossa casa pela manhã”...), tal e qual um garoto incapaz de diferenciar ficção e realidade, ou então alguém demasiadamente enredado pelas imagens em movimento, desejoso de tomar objetivamente parte delas. O que fazer quando o garoto iludido é, ao mesmo tempo, o artista criador da ilusão? 
Ingrid, Hitch e Gregory Peck nos bastidores de "Quando fala o coração" (1945)

Spoto faz um trabalho relevante de desvelamento do eu conturbado de Hitchcock. Um trabalho fundamental, aliás, malgrado a animosidade com que o receberam os fãs mais ferrenhos do mestre. Puxado o véu, a imagem que aparece dele está longe de ser bela, mas ela ajuda a dar complexidade à reflexão sobre a Sétima Arte. 
O analista fala muito bem sobre os medos recônditos de Hitchcock emergirem, na imagem cinematográfica, por meio de símbolos. Há nessa assertiva um tanto da psicanálise que interessou ao diretor em dois pontos fundamentais de sua filmografia, distanciados quase 20 anos um do outro: “Quando fala o coração” e “Marnie”. Há, todavia, outro tanto de cinema. A imagem prenhe de sentido, ao ponto de atingir o valor de símbolo: esta não é também a especificidade do cinema? Hitchcock não nos deixa perder de vista o parentesco entre o símbolo que confere perenidade ao cinema e o símbolo por meio do qual o psicótico transfigura a realidade, já que é incapaz de lidar plenamente com ela. 
O cinema foi o divã e a fábrica de sonhos de Alfred Hitchcock. Deu-lhe a possibilidade de apresentar seus fantasmas à apreciação das massas. Exímio contador de histórias visuais que era, fê-las mergulhar em universos vários, na esteira das estrelas e de suas histórias de mistério. E acabou, ele próprio, por mergulhar neste mundo de faz-de-conta, Svengali sedento de novas Trilbies às quais pudesse transformar em rainhas para depois por elas se apaixonar. 
Kim Novak, "Um corpo que cai" (1958)

Há em sua trajetória muito do doentio percurso da personagem de James Stewart em “Um corpo que cai” (Vertigo, 1958), como bem observa Spoto. Apaixonando-se por uma mulher que não existe, já que é fruto da ficção inventada por um ex-colega de colégio no intuito de ludibriá-lo, Jimmy leva toda a segunda parte do filme a recriar a tão desejada figura feminina. Lá está ela, finalmente, à sua frente, arremedo quase perfeito da jovem supostamente louca e suicida: inclusos os cabelos louros que ele mandara tingir (os louros cabelos desde sempre objetos de desejo do fetichista Hitchcock) e o tailleur cinza que ele lhe comprara. Faltava apenas que ela prendesse seus cabelos num coque, e ele obriga a pobre moça a realizar o gesto final de despersonalização e, assim, dar acabamento à ficção. Anos depois Hitchcock diria a Truffaut: “era como se a mulher estivesse pronta para o amor, mas ainda assim se recusasse a tirar a calcinha”. A máscara corresponde ao desnudamento completo. Mais hitchcockiano que isso, impossível. 
Hitchcock e o apaixonado a quem James Stewart dá corpo, criador e criatura, descobrirão tarde a impossibilidade de realização completa da quimera. Porque, por mais deleitantes que possam ser as imagens cinematográficas, elas não passam de imagens: contornos feitos de luzes e sombras sem vida própria além daquela que nós lhes conferimos quando nelas nos detemos.

*
Para quem se interessar pelo livro, segue sua referência completa: Fascinado pela beleza: Alfred Hitchcock e suas atrizes, de Donald Spoto, publicado pela Larousse do Brasil em 2009. A Estante Virtual oferece edições novas a preços bem convidativos. 
As citações dos livros, mesmo as entre aspas, foram tomadas de orelhada. Eles estão em minha prateleira e eu, na estrada...

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

The Audrey Hepburn Treasures


Falei brevemente sobre o livro que dá título ao post quando analisava o excelente "Uma cruz à beira do abismo" (1959), filme que, para o deleite dos fãs de Audrey Hepburn, voltou ao mercado no fim do ano passado por um preço bem acessível. Naquela ocasião, tentei estabelecer um diálogo entre a película e uma carta de Audrey ao esposo, na qual ela discorre sobre detalhes da construção da personagem da irmã Luke. A carta deixou Lorena curiosa sobre o conteúdo do livro, especialmente dos fac-símiles dos documentos da atriz, que não aparecem a versão digitalizada do volume apresentada para visualização no site da Amazon. Hoje cumpro a promessa que fiz à minha amiga de trazer algumas dessas preciosidades para cá.

Na verdade, será um prazer me desincumbir da tarefa. O percurso me permitirá experimentar novamente aquela saborosa sensação de intimidade que tive ao passear pelas páginas do livro pela primeira vez - sensação, aliás, que experimento sempre que mergulho nos arquivos de pessoas e instituições.
The Audrey Hepburn Treasures: pictures and mementos from a life of style and purpose, organizado por Ellen Erwin e Jessica Z. Diamond e prefaciado pelo primogênito de Miss Hepburn, Sean Hepburn Ferrer, redesenha a trajetória da estrela a partir do depoimento de seus amigos e familiares e, especialmente, de seu arquivo pessoal. É certo que os documentos que figuram em cópias fac-similares ou impressos nas páginas do livro são frutos da escolha das organizadoras. No entanto, nem por isso eles deixam de ser um belo panorama da persona pública e privada de Audrey.
Panorama que não raras vezes surpreende pela profundidade, como notará o leitor atento (ou aquele afeito à poeira dos arquivos, como eu).
O divertido é que o texto do livro procura fornecer brevemente ferramentas para que se entenda os documentos, mas não os analisa. Aos curiosos fica a fascinante tarefa de redescobrir a atriz a partir daquilo que ela guardava, de compreendê-la na vida privada que ela procurava manter longe das câmeras mas desnudava para os amigos, de descobrir a mulher por trás da atriz querida e entender como nasceu o mito. Meu percurso daqui em diante será comentar algumas dessas preciosidades.
A que abre o post, datada de 1939, é a frente de um postal de uma Audrey ainda bebê - provavelmente enviado por sua mãe à família da mesma, atesta o livro. A dedicatória não esconde a paixão que Ella sentia pela filhinha de três meses:

Essa é Audrey e ao vivo ela é 1000 vezes melhor e mais graciosa. Eu ando estado na Suíça e agora retorno à França. Audrey está muito bem, forte e gordinha! Com amor, Ella.

Deixei de lado os programas de recitais dos quais a jovem dançarina participou na Holanda antes de o país ser invadido pelas tropas nazistas, o que a obrigou a refugiar-se com a família e a motivou a se juntar às hostes da resistência. A partir de então e até se sentir forte para dançar, Audrey procurava levar alento, através da arte, aos indivíduos perseguidos pelo 3º Reich. A mudança de rumo em sua carreira ocorreu, como conta a atriz, quando a escassez de comida deixou-a com uma anemia profunda que quase a levou à morte. Audrey conhecia bem as marcas deixadas pela guerra e pela fome, daí o papel cabal que exerceu na UNICEF em seus últimos anos de vida.
Porém, vamos seguir a linha cronológica. Conheçamos primeiro a carta de um ardoroso admirador da artista quando ela ainda era corista de espetáculos de vaudeville londrinos - atividade que exerceu até ser descoberta pela escritora francesa Colette e protagonizar da adaptação teatral de seu romance "Gigi".


A correspondência flagra o entusiasmo que a jovem atriz suscitava no público antes de entrar na máquina de Hollywood e passar a fazer parte daquele céu estrelado que tornava os stars inatingíveis e, paradoxalmente, tão próximos dos humildes mortais. O jovem Capitão Roger Marley começa desculpando-se por se dirigir à atriz e lembra-lhe do trágico passado que os une: durante a Conflagração, ele compunha a equipe de paraquedistas que participou da liberação de Arnhem, cidade da Holanda em que Audrey vivia. Com graciosa timidez, o rapaz assume o ethos romântico do qual não raras vezes se embuem os combatentes para afirmar:

Se eu soubesse que você estava lá eu teria lutado até ser morto para lhe tirar de lá, porque, você me dê licença para que eu lhe diga, você é, de longe, a garota mais atraente que eu já vi.
Não se preocupe, eu não sou um "lobo", tenho uma esposa atraente e uma linda criança, mas é fato que, se eu soubesse que você estava em Arnhem naquele dia, eu não estaria vivo para lhe escrever.

Audrey colecionava fãs, embora desempenhasse papéis pequenos nas comédias musicadas das quais participava - como atestam as páginas do programa de "Petit Sauce Tartare" (1949), espetáculo do elegante nightclub londrino Ciro's Club em que ela apenas figura com destaque num dos números e sua foto é impressa no pé da página.



As portas para o sucesso internacional foram apenas abertas para a artista quando ela desempenhava um pequeno papel no filme "Monte Carlo Baby" (1951), rodado em inglês e francês. Não devido ao papel mas porque, nas areias da praia francesa, a jovem esbarrou em Colette, que naquela época estava em busca de protagonista para seu romance recentemente transformado em peça teatral. A dedicatória da escritora à atriz - impressa numa das páginas de The Audrey Hepburn Treasures - ressalta seu olho clínico: "Para Audrey Hepburn, tesouro que encontrei numa praia! Colette". Nem mesmo a jovem tinha, naquele momento, tanta confiança em si. O livro lembra que, convidada pela escritora para desempenhar a sapeca Gigi, ela teria respondido: "Sinto muito, madame, mas é impossível. Eu não poderia, pois não sei atuar."
No mesmo ano de 1951, em novembro, a Gigi de Audrey Hepburn enlouquecia a crítica da Filadélfia. A peça estreou na Broadway no final de novembro e ficou em cartaz até 31 de maio de 1952. Abaixo, páginas do programa da peça. E, um detalhe: "Gigi" ganhou os palcos na forma de comédia, portanto, sem as canções de Alan Jay Lerner e Frederick Loewe que cooperaram para que a maravilhosa adaptação cinematográfica dirigida por Vincent Minnelli arrebatasse 9 Oscars em 1959.

Tendo começado a carreira artística como dançarina e cantora, Audrey conquistou seu lugar ao sol como atriz, que sem dúvida era o que ela sabia fazer melhor. A maquinaria de Hollywood funcionou, como era costumeiro, para a divulgação de sua imagem - com as notícias eufóricas que surgiam a seu respeito enquanto ela estava na Itália rodando, com Gregory Peck, seu debut no cinema norte-americano e o filme que lhe daria o Prêmio de Melhor Atriz da Academia. Mesmo assim, é inegável que Audrey rouba a cena em "A Princesa e o Plebeu" ("Roman Holiday", 1953), o que motiva seu galã a conceder à atriz iniciante a honra de ela figurar ao seu lado acima do título do filme. Peck afirma ter feito isso para seu próprio bem, já que sabia que a atriz "ganharia o Oscar em seu primeiro papel". A Academia pode ser imprevisível e inegavelmente é muitas vezes injusta, porém, é bonito ver o nascimento de uma estrela consagrado desse modo. Audrey guardou sua via do recibo do recebimento da estatueta, que a comprometia a mantê-la em sua posse - se quisesse vendê-la, apenas poderia fazê-lo à Academia, recebendo por ela a soma de $ 10,00...

Até aqui, é visível (se o leitor ainda não se cansou e me abandonou no meio do caminho) que a atriz era uma religiosa guardadora de recordações. Identifico-me com esse ímpeto de arquivar a vida em pastas e mais pastas - e, ao relê-la, me redescobrir entre os pedaços de passado que resolvi eternizar. Há, em meio aos documentos selecionados pelas organizadoras do volume, um cartão postal (de 1959) em que Audrey dedica à família uma Feliz Páscoa em nome dela, do marido e do amado cãozinho que ilustra o cartão, Famous - presente de Mel Ferrer que por um tempo ocupou o espaço do filho que Audrey tentava ter. Há também o anúncio de nascimento de Sean, momento em que a "Miss Audrey Hepburn" da galáxia hollywoodiana dá lugar à mãe de família "Mrs. Melchor G. Ferrer" - papel que ela desempenhou com deleite, daí as lindas fotografias dela com o filho impressas no volume.




De volta a Hollywood, Audrey atuou, em 1961 e 1964, em duas de suas mais notórias películas, "Bonequinha de Luxo" ("Breakfast at Tiffany") e "My fair lady". De ambas as produções, Audrey nos guardou recordações interessantes. Das páginas datilografadas de uma das mais melancólicas - e difíceis - cenas da "Bonequinha...", apreendemos detalhes do métier de atriz: palavras grifadas do roteiro lembram-nos daquela inconfundível musicalidade de sua voz, sobre a qual me referi ao falar sobre "Uma cruz à beira do abismo"; e uma das réplicas de Holly a Paul (a penúltima réplica constante na página amarela do roteiro) foi transcrita literalmente por Audrey no verso do roteiro - estratégia comum de memorização.




Há uma porção de fac-símiles relativos À "Bonequinha de luxo", incluindo uma carta de Truman Capote (autor do romance do qual originou-se a versão cinematográfica) à atriz, mas vou fazer suspense até que tenha condições de escrever um post exclusivamente sobre esse filme, que amo desde muito tempo.
Relativo a "My fair lady" há um ticket da premiére mundial do filme, que teve lugar no Criterion Theatre de Nova Iorque em 21 de outubro de 1964. O preço salgado do assento, $ 150,00, seria revertido a um hospital e centro de pesquisa do Estado.

todavia, os dois documentos que mais me atraem relativos ao filme são, o primeiro, a carta de Katharine Hepburn e Spencer Tracy à Audrey e George Cukor (diretor da obra e amigo de longa data de Kate, a quem dirigiu em produções memoráveis como "Núpcias de Escândalo" e "A Costela de Adão"), congratulando-lhes pelo sucesso da película. Katharine, numa letra tão impossível quanto a de Audrey e bastante semelhante à dela (o parentesco entre ambas que seus sobrenomes podem indicar não se sustenta de fato) lhe diz algo como: "You two certanly hit the nail on the head. (...) You scared all your friends to death. A million congratulations. It's a real triumph."

E, por fim, um cartão do "Pygmalion", "Grande Magazine de Novidades" situado no Bd. Sébastopol, em Paris - cartão que, de acordo com o livro, foi usado pela atriz como marcador de página do roteiro de "My fair lady". Adoro conhecer as pequenas inspirações responsáveis pela criação dos grandes papéis. Aliás, lembram-se do post em que ensaiei uma trajetória do Pigmalião da antiguidade até o Professor Higgins ao qual Rex Harrison deu vida na versão cômico-musicada e, depois, cinematográfica de "My fair lady"?


E agora, para encerrar, dois registros da Audrey madura, tão bela por dentro quanto por fora. A primeira, um postal de Hupert Givenchy (de aprox. 1984) - estilista responsável por transformar a Holly Golightly e sua criadora em epítomes de beleza. Aqui ambos estão atentos um ao outro, sem badalação, em meio ao inverno parisiense que joga neblina nos monumentos históricos da cidade. A dedicatória afetuosa sublinha a amizade que os unia:

Minha Audrey.
Estou muito feliz de estar perto de você nesta noite de domingo.
Sempre com amor.
Hupert.


E, por fim, uma obra de arte (de 1988) que revela outra faceta de Audrey - a desenhista - retratando uma das imagens que mais a chocaram em suas peregrinações como Embaixadora de Boa Vontade da UNICEF: o sofrimento de uma mãe etíope vendo o filho sucumbir à fome. O original foi leiloado e a verba, revertida na compra de animais para o transporte de vacinas às crianças que habitavam regiões remotas e inacessíveis, afirma The Audrey Hepburn Treasures.

E agora, preciso parar, pois estou sendo quase que impedida de respirar por aquela familiar nostalgia dos velhos tempos: tempos em que tela do cinema projetava sombras mais reais que a própria vida, sombras que encontravam eco em figuras grandiosas de carne e osso. Ah, Audrey, quando nascerá outra estrela como você?

sexta-feira, 8 de maio de 2009

A princesa e o plebeu. Ontem... Hoje... Sempre...

Ontem revivi antigas sensações ao rever, acho que pela vigésima vez, este filme que é tão importante para mim. Sim, porque "A princesa e o plebeu" (Roman Holiday, 1953) foi a minha porta de entrada pelo cinema clássico, cinema que agora roubou, nas minhas prateleiras, quase todo o espaço das outras produções cinematográficas. Lembro-me, ainda menina, de ter sido transformada no espaço de duas horas. Eu mal podia imaginar que existia um mundo em preto-e-branco que fosse tão colorido, tão brilhante. Mesmo tendo ele chegado até mim por meio de um VHS que tão claro mostrava o tempo que havia transcorrido entre a rodagem da película e minha descoberta da mesma.
E aqui está a fita, primeiro alugada, depois comprada e tantas vezes revista até que, em 2006, pude substituí-la pela versão remasterizada do filme, em DVD. No entanto, ela ainda insiste em ocupar espaço entre as minhas coisas, como para me fazer lembrar sempre da influência que teve em minha vida.

Espaço parecido ocupa a Audrey Hepburn, cuja atuação perfeita não cansa de me encantar, encantamento que só fez aumentar quando li que ela, convidada alguns anos antes para fazer "Gigi" na Broadway, disse a Collette: "Desculpe-me, mas não sou atriz"... Não é apenas Audrey que está perfeita nesse filme. Ele é todo assim, resultado do esforço de, além da novata atriz que parece já ter nascido sabendo (ela tinha feito apenas umas poucas pontas em filmes europeus), de um diretor que tinha fama de perfeccionista (William Willer, com quem ela depois faria o adorável "Como roubar um milhão de dólares" - 1966) e do já consagrado Gregory Peck. E aquela trilha sonora (quem a compôs, meu Deus?), fascinante desde o princípio, quando ainda acompanha os créditos que em meu VHS apresentam Ian McLellan Hunter como roteirista, lugar suplantado, no DVD, pelo verdadeiro escritor dessa gema, Dalton Trumbo, o qual escreveu-a enquanto estava encarcerado, suspeito de colaborar com o regime comunista, lado negro da perseguição política nos Estados Unidos. Irônico o fato de toda aquela poesia brotar de um meio tão lúgubre, mas um belo exemplo de que a literatura, e ainda mais o cinema, podem construir um doce mundo de faz-de-conta que suplante a aspereza do mundo real.

Esse filme é imperdível por tantos motivos... Para aqueles que gostam de uma boa comédia, há nele uma infinidade de cenas impagáveis: a constante preocupação que tem o jornalista com sua carteira enquanto ele está ao lado da mocinha aparentemente embriagada (e na verdade, dopada por uma medicação) cuja origem ele desconhece; o modo como ele se apresenta na delegacia, quando todos vão presos; a motocicleta descontrolada nas ruas de Roma, motivo da prisão...
Para os românticos de plantão, não há história de amor mais bela do que esta que se prepara em fogo brando, entre mal-entendidos, risadas e passeios, até finalmente explodir e determinar a completa mudança das personagens: ela, uma jovenzinha que se torna mulher; ele, um jornalista maltrapilho e sem muitos escrúpulos que acaba por deixar de lado a chance de mudar de vida por aquela que ele sabe que nunca poderá ter. Há quem diga que histórias desse tipo são piegas, mas o amor não é mais ou menos isso mesmo?
"A princesa e o plebeu" é perfeito para aqueles que querem misturar risos e lágrimas. E como eu gosto de fazer isso constantemente, esse é o meu filme de sempre.

domingo, 1 de março de 2009

Um filme muito especial de Hitchcock: “Quando fala o coração” (Spellbound, 1945)

Se me perguntassem por que admiro tanto o trabalho de Hitchcock, eu diria que é porque ele consegue ser muito popular sem, no entanto, perder a compostura. Não é a toa que, como ele próprio explicita naquela longa entrevista que deu a Truffaut, o grau de interesse que nutria pelos filmes os quais dirigia estava diretamente relacionado à admiração que o público lhes votava. 
A famosa sequência do sonho de Spellbound,
desenhada  por Salvador Dalí
Psicose, que levou multidões aos cinemas e rendeu milhões aos cofres da Paramont, parece ter sido um de seus preferidos. 
Sob o signo de capricórnio (Under Capricorn, 1949), em contrapartida, que recebeu uma acanhada recepção do público, mereceu diatribes do diretor: ele queria Ingrid Bergman como protagonista para satisfazer uma veleidade infantil sua (é o que ele diz ele nesse texto bastante revelador), pois ela era a maior atriz atuante na América à época e, supunha ele, o papel da inglesa que se destruía por amor lhe cairia como uma luva (mal sabia ele quão enfaticamente a vida não acabaria, neste caso, imitando a arte, anos mais tarde...). Mais: Hitchcock diz ter optado pelos plano-sequência (segmentos de aproximadamente 10 minutos de duração, sem cortes), mesmo sabendo que a fluidez da câmera não permitiria a construção de qualquer atmosfera de tensão, deixando o filme muito pouco parecido com um “Hitchcock movie”; e apenas ter se recusado a rejeitar o pagamento porque sua estrela recebeu rios de dinheiro e ele achava injusto deixar a empreitada com os bolsos vazios... 
Enfim, Hitch apresenta uma porção de argumentos para explicar o porquê de o público não ter ido ao cinema e o filme não ter sequer sido pago – exemplo claro de alguém que tinha um grande respeito pelos espectadores, ao ponto de ser, às vezes, injusto com sua própria produção, como acontece no caso de Sob o sigo de Capricórnio, um filme belíssimo. 
Trecho deletado da sequência
Essa preocupação - mais que cabível, aliás (graças às plateias o diretor tinha emprego) -, somada ao seu cuidado com as minúcias, conhecimento técnico e possibilidade de gastar largas quantias de dinheiro para transformar suas ideias em realidade, fizeram com que Hitchcock produzisse filmes, ao mesmo tempo, bem acabados e acessíveis ao público.
Isso, quando somado à sua ânsia por cutucar algumas feridas mais ou menos aparentes da sociedade, fazem com que sua obra ainda seja atual e consiga agradar não apenas meia dúzia de intelectuais – como usualmente acontece com as obras dos mestres – mas o público comum, que vai ao cinema para se divertir, se empolgar com as cenas de perseguição ou se emocionar com uma história de amor. 
Michael Chekhov, filho do célebre dramaturgo homônimo, 
foi indicado ao Oscar por sua atuação como o psiquiatra Alexander Brulov 
Há um pouco de tudo isso em Quando fala o coração, um dos meus Hitchs preferidos, tão especial para mim, já que me abriu as portas ao mundo do diretor e de sua estrela (uma das atrizes preferidas, dele e minha).
O plot paga inegável tributo ao melodrama. A personagem de Ingrid, séria e profissional psiquiatra de um asilo de lunáticos, apaixona-se à primeira vista por um colega de trabalho que ela, não muito mais tarde, descobrirá ser o principal suspeito do assassinato de um psiquiatra da casa - psiquiatra do qual ele, que sofre de amnésia, resolve tomar o lugar... A descoberta fará com que ela empreenda, com o rapaz, uma viagem física e psíquica, no intuito de sanar a patologia que o acomete e, enfim, livrá-lo da cadeia. 
Will he kiss me or kill me?
No entanto, a despeito da história de amor batida e do pseudo-freudianismo em volta do qual gira a trama, o filme é fascinante, e isso se deve ao modo como isso tudo é contado.
A simbologia dos óculos da personagem da médica, os quais, na medida em que ela os usa ou deixa de usá-los, mimetizam a sua aproximação e distanciamento do espaço exato da Ciência; as sete portas que se abrem quando ela percebe-se enamorada do médico; a inversão dos costumes vigentes – a força da mulher, que não raro veste pijamas masculinos e gravata – e a fragilidade do homem. Há também uma acertada escolha do preto-e-branco, num momento em que importantes filmes haviam sido rodados em cores, o que aumenta o clima de tensão da trama: enfatiza as linhas pretas na superfície branca, as quais tão funda impressão deixam no rapaz (são marcas de esquis sobre a neve que estão no subconsciente da personagem, resquícios do crime por ele testemunhado e esquecido). 
E há, acima de tudo, a Ingrid Bergman. Grande e inimitável Ingrid Bergman, que, ao contrário de algumas divas da Era de Ouro do cinema, não temia se enfear quando isso era pedido pelo papel: o modo como ela se transforma da fria e masculinizada médica – “é surpreendente quando a gente descobre que não era o que supunha” – numa bela mulher, iluminada de dentro para fora, é exemplo claro, num só tempo, de seu desapego e competência. 
Quando fala o coração é uma das produções de Hitchcock em que ele realizou cabalmente o intuito de saciar o gosto do público – tanto que é bem possível assistir ao filme comendo pipoca sem se engasgar com ela – sem que, com isso, abdicasse de seus ideais estéticos. Como eu estou feliz por ele ter sido bem sucedido nesta empreitada!...