Mostrando postagens com marcador Gravidade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Gravidade. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Os Melhores Filmes de 2013 versão "O filme que vi ontem"

A relação considera as obras lançadas ao longo do ano no Brasil, em circuito comercial, e é, obviamente, fruto de minha observação pessoal (estive longe de ver tudo o que entrou em cartaz no ano...). Os eventuais links enviam o leitor para os posts do blog correspondentes aos filmes. Notas breves apresentam aqueles ainda não resenhados. 


1- Vocês ainda não viram nada! (“Vous n’avez encore rien vu”, Alan Resnais, França, 2012)


2- Gravidade ("Gravity", Alfonso Cuarón, EUA, 2013) 

3- Branca de neve ("Blancanieves", Pablo Berger, Espanha, 2013) 
"O Artista" (2011), retomada moderna do cinema silencioso, deixou muita gente embasbacada por aquela arte. Porém, o grande momento dessa febre vintage eu penso que seja "Blancanieves", fantasia infantil vestida em branco e preto e de carregado tom dramático saída da batuta de Pablo Berger. O diretor mostra-se não só um exímio continuador dos grandes artistas da cena muda, a exemplo de Murnau - pelo requinte com que constrói visualmente a história - como um brilhante fabulista. Sua Branca de Neve (o roteiro também é de sua autoria) bebe tanto da fonte literária quanto da produção cinematográfica que lhe antecedeu. Jogos de luzes e sombras e enquadramentos (fugazes e dramáticos) lembram a obra do criador de "Aurora". Já o enredo recupera outro momento - mais recente, igualmente brilhante - do cinema: Nas errâncias de Branca de Neve após sua fuga do jugo da madrasta faz-se presente o mote de "Fale com ela" (2002), de Almodóvar, onde igualmente há homenagem ao cinema silencioso: o membro da trupe dos toureadores que ama a mocinha em coma acalenta o seu silêncio - como nós acalentamos o silêncio prenhe de sentido dos filmes mudos.

4- Azul é a cor mais quente ("La vie d’Adèle", Abdellatif Kechiche, França, 2013) 

5- O som ao redor (Kleber Mendonça Filho, Brasil, 2013) 
Filme brasileiro que mais burburinho causou ao longo do ano, "O som ao redor" narra o cotidiano de um bairro de classe média do Recife por meio de um sofisticado exercício técnico. A banda sonora exerce papel preponderante, como o título faz anunciar. A qualidade da obra se apresenta logo na cena que a abre, no plano-sequência que percorre visualmente a área comum de um edifício, atravessada pelos ruídos que emergem de dentro e fora de seus muros - surgindo, entrecortando-se, calando-se à medida em que a câmera circula. As personagens seguem a trilha da exasperação anunciada pelo barulho circundante: Cachorros irrequietos, britadeiras, estilhaços, mesmo o ruído aparentemente calmante de uma cachoeira penetram-lhes os ossos. Os fios lançados ao longo da trama, através do preponderante uso expressionista do som, culminam na costura de um thriller tão local quanto universal. "O som ao redor" é o nosso concorrente ao Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano. Tenho uma impressão muito forte de que ele ficará entre os 5 finalistas. 

6- Dentro de casa (“Dans la Maison”, François Ozon, França, 2012) 
Ozon une-se novamente ao fabuloso Fabrice Luchini (a quem dirigiu recentemente em "Potiche") para narrar a história do professor de Liceu enredado nas teias da novela escrita pelo aluno-prodígio Claude Garcia (Ernst Umhauer). Ficção e realidade se interpenetram num perigoso crescendo: à medida em que o aluno, com a ajuda do professor, vai refinando sua escrita, seu lugar dentro da família que ele resolve retratar desloca-se do posto de observador para o de ator. Claude deseja a onisciência, mas também quer-se narrador-personagem, daí a bisbilhotar de modo cada vez mais assertivo a vida da família, a interferir de forma crescente em seu dia-a-dia... Essa tragicomédia com cheiro de thriller traz também no elenco outro primor de atriz, Kristin Scott Thomas. 

7- O estranho caso de Angélica (Manoel de Oliveira, Portugal, 2010) 

8- O amante da rainha ("En kongelig affære”, Nikolaj Arcel, Dinamarca, 2012) 
O cinema dinamarquês ganhou protagonismo na Europa em 2012 depois que o ótimo Mads Mikkelsen arrebatou o prêmio de Melhor Ator em Cannes com "A Caça" (de Thomas Vinterberg, história do professor do jardim de infância injustamente acusado de pedofilia). "O Amante da Rainha" rodou o circuito europeu em seguida e mostrou ao público o ator versátil que ele é. Mikkelsen interpreta o médico do rei louco Christian VII que se envolve amorosamente com a rainha e, graças à confiança inabalável que o monarca deposita nele, acaba adquirindo foros de governança, imprimindo ideais iluministas à atrasada Dinamarca. A película é interessante não apenas porque os quiproquós têm lastro histórico, mas sobretudo pela belíssima fotografia, a competente reconstituição de época (séc. XVIII) e - sobretudo - a química entre Mikkensen e Alicia Vikkander. 

9- Django livre ("Django Unchained", Quentin Tarantino, EUA, 2012) 
Um típico Tarantino, "Django livre" lança mão de referências pop, de grande elenco e de muito sangue para contar a história do escravo em busca da liberdade para si e sua esposa. Ajuda-o o dentista Dr. King Schultz - Christoph Waltz, brilhante num papel de "mocinho" depois de seu memorável nazista arquetípico de "Bastardos Inglórios", o filme anterior de Tarantino). A inversão de papéis segue com a escalação do cada vez melhor Leonardo Di Caprio como Calvin Candie, o sanguinário fazendeiro que tem a posse da esposa de Django. Pontuado por ironia, o filme fecha com uma brilhante sequência que carrega na sátira à arrebicada nobreza francesa, molde para a alta-sociedade americana do século XIX. No entanto, todo o empolamento desce pelo ralo quando a saraivada de balas começa...

10- Frances Ha (Noah Baumbach, EUA, 2012)
Não é só o branco e preto e a corrida desembestada da mocinha pelas ruas de New York que nos fazem aproximar o luminoso "Frances Ha" de "Manhattan", obra-prima de Woody Allen. A protagonista do longa de Baumbach (Greta Gerwig, co-roteirista da história junto com o diretor) também é uma apaixonada pela cidade. Com a diferença de que a visada irônica de Allen é aqui substituída por uma doçura ingênua que se casa perfeitamente à protagonista, jovem aspirante a dançarina sem brilho particular que tenta se descobrir na vida afetiva e profissional. A câmera segue as andanças (e os bailados...) da mocinha pelas ruas da cidade, dividindo seus descaminhos por meio de intertítulos que lembram a organização de um filme silencioso, e aborda com uma suavidade matreira seus altos e baixos - mesmo ao final, e prova disso é a sequência que encerra o périplo da jovem, quando ela finalmente consegue colocar seu nome na porta de seu apartamento próprio e, simbolicamente, acabar de construir a sua identidade. 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

“2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968) e Stanley Kubrick no MIS-SP – uns ecos de “Gravidade”

“Gravidade” (2013) levou-me a “2001: Uma Odisseia no Espaço”, como não poderia deixar de ser, dadas às aproximações que se teceram entre as obras. 
A experiência de ver pela primeira vez o clássico de Kubrick só pode ser comparada à minha – já relatada – primeira assistência de “Metrópolis” (1927), em meados do ano. O filme tão brilhante quanto intransponível encontra definição cabal numa frase de seu diretor, dependurada numa das paredes da mostra que o Museu de Imagem e Som de São Paulo lhe dedica, mais ou menos assim: “O objeto artístico não precisa ser compreendido racionalmente para nos tocar.” É um bom caminho pensar numa apreensão de 2001 que se atenha mais às sensações suscitadas pelo filme que pela busca por seu sentido unívoco (ou um que corresponda estritamente às vontades de seu realizador). 
Aí está a diferença mais clara entre esta obra e “Gravidade” – sem que isso signifique, obviamente, atestar a primazia estética de uma sobre a outra. 
O filme de Alfonso Cuarón prende-se à narrativa linear, à escrupulosa apresentação de causas e consequências, ao realismo. Kubrick deixa de lado o desejo de representação pictórica do real, rendendo-se à abstração para construir a experiência de viagem cósmica. 
Até mesmo por conta do objeto do qual trata. Na década de 1960, o espaço apenas começava a ser perscrutado in loco. A primeira viagem espacial humana se deu em 1961; os primeiros homens caminharam sobre o território lunar apenas em 1968 – data do lançamento do filme. Enquanto hoje potentes telescópios captam sistemas planetários distantes milhões de anos-luz da Terra, cinquenta anos atrás as imensidões do espaço ainda restavam a serem descobertas – o que as tornava campo fértil para a ficção científica. 
A falta de conhecimento empírico sobre o objeto resulta na sua invenção. Kubrick realiza um trabalho prodigioso de investigação sobre o surgimento das galáxias, do planeta, do homem, da racionalidade humana. Acena para a religião e a ciência no intuito de erigir sua interpretação sobre a ontologia do mundo. Apoia-se com a mesma sem-cerimônia nos fatos já comprovados pela então recente corrida espacial e nas mais extraordinárias ficções. Sua resposta é cifrada como o Apocalipse bíblico, como corresponde ao objeto intrincado do qual trata. 
“2001” mal parece um filme produzido para o público corriqueiro de cinema de fins dos sessenta. As experimentações visuais e sonoras às quais se entrega seu diretor transformam-no num sucessor da vanguarda cinematográfica dos anos de 1920, de homens como René Clair (“Entr’acte”, 1924) e Fernand Léger (“Ballet Mécanique”, 1924). Já à época, Stanley Kubrick divorciara-se da movie making de Hollywood e, refugiado na Inglaterra, decidira pela produção artesanal de suas obras. É bem conhecida sua atenção inflexível, anos a fio, aos projetos que tocava – clara ruptura com o regime serial de produção comum à América do Norte. De “2001”, ele não é só o diretor como também um dos roteiristas e o produtor. O controle total sobre seu objeto permite-lhe sobrepor a estética ao cunho mercadológico, originando uma obra única em meio ao caudal que brotava na “América”. 
“2001” não apenas rompe com a narrativa linear mas também com a linguagem cinematográfica clássica. O filme está repleto de cortes secos que a todo o momento chamam atenção para a sua materialidade. A escolha estrutural pela montagem da opacidade cobra do leitor distanciamento crítico do objeto, atenção à estranheza daquilo que é narrado em detrimento do mergulho de cabeça na história. A escolha da trilha sonora dá densidade ao percurso. É curioso escutar clássicos de grande poder imersivo de Strauss (“Danúbio Azul” e “Assim falava Zaratustra”) servindo de banda sonora ao belo/macabro bailado dos homens (ou projetos de homens) por céus e terras. 
Talvez caiba aqui outra aproximação entre o filme de Kubrick e as obras vanguardistas citadas acima, “Ballet Mécanique”, sobretudo, cuja ruptura formal com o cinema do período estendia-se para o uso da música (ruidosa e dissonante). Embora a música de “2001” aparente nadar na contracorrente da história, ela acaba oferecendo uma possibilidade interessante de interpretação ao conjunto: uma apoiada mais no sensorial que na linguagem verbal. 
O imperdível catálogo da Mostra,
que pode ser personalizado com o número do visitante.
Quem quiser dedicar um pouco mais de tempo a esse artista singular que é Stanley Kubrick – em específico a essa obra, que foi o seu grande sucesso de público –, aconselho que visite a mostra organizada pelo MIS. Uma das salas-cenários mais interessantes é dedicada a “2001”. Lá estão não só o primata e o bebê que, respectivamente, abrem em fecham a obra, como inúmeros desenhos, vídeos concernentes à produção, o Oscar de efeitos especiais vencido por ela – memorabilia original que faz a alegria dos fetichistas. Tudo isso espalhado num ambiente que reproduz a nave espacial responsável por levar o astronauta Dave Bowman (Keir Dullea) às fronteiras do espaço sideral e, enfim, à morte e à ressurreição. 
Cenário de "2001" na Exposição Stanley Kubrick
Que sais-je? Seria pretensão fechar um sentido para uma obra tão claramente hermética.
Do percurso alegórico do homem sobre a Terra, faço emergir um elemento que aproxime “2001: uma Odisseia no Espaço” e “Gravidade” – apenas porque este me levou àquele: a imagem da gestação.
No filme de Kubrick, os confins do espaço, feitos de losangos azuis sobre linhas encarnadas, desembocam num aposento de clássica frieza, quase que uma sala de museu. Lá o astronauta será tragado para se transformar no protagonista de um processo de envelhecimento, morte e gestação – transformado por fim num planeta-homem. O sentido inexpugnável desta odisseia encontra contraponto na elevação pessoal/espiritual de Sandra Bullock em “Gravidade” – filme apegado à estética de montagem clássica. Sem querer defender o filme de Kubrick em detrimento do de Cuarón (até porque eu, como boa e velha amante de cinema hollywoodiano, prefiro este àquele...), não posso deixar de constatar o quanto as descobertas científicas não acabam por nos deixar mais pobres de imaginação, ou mais apegados ao status quo...

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Gravidade (2013)

Vez por outra o cinema comercial de Hollywood dá sinais de que ainda tem algo a dizer. Como agora, neste filme cujas rédeas todas são de Alfonso Cuarón (responsável pelo roteiro, direção, corte final e produção da obra), que faz um trabalho difícil de definir d’outro modo que não como brilhante. 
Esta minha leitura de sua obra por certo que a tomará a partir do lugar de onde ela saiu. Numa terra de anódinos blockbusters, talhados para arrastar multidões aos cinemas – e daí, obedientes de expedientes pouco inspirados, como o moralismo, a pancadaria e o riso fácil –, “Gravidade” é uma flor de cepa rara. Vá vê-lo, quem ainda não foi – ele felizmente está enchendo salas há semanas. 
Cuarón abre mão do elenco numeroso e de efeitos especiais altissonantes para se concentrar nas histórias de duas personagens que passam por uma situação-limite: a cientista incumbida de atualizar o sistema operacional da estação espacial americana e o piloto responsável pela missão. Lixo cósmico oriundo da destruição de outras estações lança o casal à deriva na imensidão do espaço. Ambos precisam retornar à nave para reentrar o planeta Terra. 
A simplicidade do enredo mal prepara o público para o que ele está prestes a ver. A Veja comparou o filme a “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968), tratando-o como a definição por excelência de “cinema”. Difícil não concordar. “Gravidade” constrói em potência o espaço para o mergulho do espectador na tela – algo favorecido pelo 3D, certamente, mas sobretudo pelo manejo notável de câmera e pela decupagem que o diretor impõe ao objeto fílmico. 
Basta uma cena – quase no início – para que percebamos a proeza. Ryan Stone (Sandra Bullock) despreende-se da asa da estação e mergulha no infinito. Num plano-sequência, a câmera principia a captar seus rodopios, à distância; aproxima-se paulatinamente para focalizar seu rosto em giro, a Terra refletida no vidro do capacete; cola ao seu rosto e, transformando-se nos olhos da astronauta, enxerga o mundo a girar; para, por fim, despregar-se dela e, de novo, tomá-la da distância. Uma câmera objetiva indireta (o olhar “objetivo” da câmera) que por um momento se torna objetiva direta (o olhar da personagem), para logo readquirir sua função de olhar onisciente da realidade: por meio dela, o espectador atinge, num só tempo, consciência do espaço inóspito e da mulher desesperada. 
Mas Cuarón vai além. A singularidade deste trabalho obriga-nos a destacá-lo do campo terra-a-terra palmilhado pelo blockbuster hollywoodiano para que, com ele, ascendamos ao terreno da metafísica – considerando, claro, que o cinema também é uma religião. Penso no quanto a escolha que o diretor faz do espaço da ação não esteve impregnada de um desejo de compreender a gênese do cinema. Eu exagero, talvez. Mas não poderíamos considerar que essa liberdade de pássaro que o artista dá à sua câmera conota aquele papel primordial do cinema, de desatrelar-se do tempo e do espaço para, então, fundar uma nova realidade? Tal ruptura com o tempo é explicitada pela alternância aleatória entre dia e noite experimentada pela Terra – vista pelos protagonistas a partir da distância que transforma o planeta em espetáculo. “Você precisa admitir que é bonito” – Stone ouve do piloto Kowalsky (George Clooney) enquanto ambos, na liberdade do espaço, lutam para readquirir os liames. 
No que toca aos protagonistas, cumpre entregarmos ao Sr. Cuarón uma medalha de honra ao mérito pela firmeza com que dirige a dupla de estrelas – sobretudo Sandra Bullock, em quem o filme especialmente se concentra. Eu, que acompanho Sandra desde os tempos de “Velocidade Máxima” (1994), jamais a imaginei uma atriz tão deslumbrante. Sandrinha (já disse que a acompanho há um bocado de tempo...), a girl next door de “Enquanto você dormia” (1995), a policial de coração mole de “Miss Simpatia” (2000), uma deusa? 
Bullock precisa agradecer ao seu diretor por lhe forjar uma nova imagem. Forjar, mesmo: de cabelos curtos, roupas mínimas e corpo firme, a atriz ganha foros de estatuária. A câmera ainda coopera. Duas belíssimas sequências bastam para explicitá-lo: quando, ao reentrar na nave, ela se despe do traje especial, a semigravidade do ambiente cooperando para que ela componha uma imagem uterina; e quando, na sequência final, um contra-plongée sintetiza a grandiosidade que o diretor desejou imprimir para a personagem. 
Tais sequências são, além de tudo, simbólicas: da geração de Ryan Stone, no útero da nave, ao seu nascimento pela água e, enfim, aos primeiros passos titubeantes pela Mãe-Terra, esboçam-se os contornos da mulher a quem a experiência extrema fez renascer. Renascimento da personagem e da persona da atriz. As poucas palavras que Sandra Bullock diz neste filme permitem-nos conhecê-la mais do que quaisquer de seus papéis anteriores jamais nos permitiram. Sinto deveras que ela já tenha recebido o Oscar de Melhor Atriz. Espero, porém, que isso não a impeça de ser dignamente homenageada por este seu trabalho espantoso.