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quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Giornate del Cinema Muto de Pordenone 2019: Dia VII

"Joan, the woman"
Fotografia de Valerio Greco

 Dia 7, 11 de outubro, sábado 

O dia – outro dia luminoso de uma semana especialmente clara, ainda que fria – inicia-se com uma sessão dos Weimar shorts, aquelas obras a meio do caminho entre o documentário e o newsreel rodadas pela Alemanha anterior ao terror nazista. “Between Mars and the Earth” (“Entre Marte e a Terra”, 1925), “The Frankfurt kitchen” (A cozinha em Frankfurt” 1927) e “Comical Hygiene” (Higiene cômica”, dois exemplares de uma série rodada entre 1926 e 1930) dão mostras da variedade temática e de gênero dessas obras. 


Uma hora mais tarde – ainda à hora do café, 10h00 da manhã – somos agraciados com um dos grandes filmes da semana, “Joan the woman” (Cecil B. DeMille, 1916), versão de Joana D’Arc rodada em meados da Primeira Guerra, e que procura estabelecer com a conflagração uma relação de paralelismo temático. A célebre mártir francesa, que poucos anos mais tarde ascenderia à posição de santa, é temática cara aos cineastas desde os primórdios. Aqui ela é interpretada por uma divindade operística, Geraldine Farrar, no seu quarto trabalho com Cecil B. De Mille. A trama estabelece um paralelo entre a Guerra dos Cem anos – especificamente, a participação da jovem camponesa no conflito – e a Grande Guerra. Wallace Reid, o galã das matinês cinematográficas daquelas priscas eras, é num só tempo o inglês do século XX a quem se atribui uma missão mortal na Guerra e o inglês do século 15 apaixonado pela plebeia belicosa. 

A crítica, diz o Catálogo do evento, nota a visada simpática à mulher numa trama que desmerece o sexo masculino – fraco e incrédulo das virtudes da jovem. Toma, ademais, o sacrifício do jovem contemporâneo como punição dos machos medievais. O certo é que o encaixe entre o passado e o presente de 1916 não se realiza sem arestas – a Joana de Farrar é menos a campesina viril e mais a mulher amorosa dos estertores da Belle Époque (ou, a coquete com laivos de mulher fatal da sétima arte), a premiar os seus adoradores com o beijo da morte. No intuito de construir a ponte entre o passado e o presente, De Mille pinta-nos um rapaz galante que ama a jovem Joana – tipo menos histórico que cinematográfico. Assim, ele surge em 1916 de baioneta em punho, heroicizado pelo tenebroso conflito. Porém, salta-nos aos olhos, sobretudo, menos a história e mais a colorização deslumbrante do filme, selecionada para momentos simbólicos, como o martírio da jovem na fogueira inquisitorial. 

Fotografia de Valerio Greco

O destaque/ embelezamento do momento horrendo fora realizado dez anos antes, ainda no coração do primeiro cinema, por uma película como “Os martírios da Inquisição” (“Les Martyrs de l’Inquisition, Lucien Nonguet, 1905) – e ali, o nosso Arthur Azevedo constatava o descompasso de se verem brutezas tais num espetáculo cinematográfico exibido no cândido Passeio Público carioca. Aquele público fruía tais cenas bebendo limonada cor de rosa, comenta Arthur, como nós, cento e tantos anos mais tarde, fruímos com deleite o vermelho que tinge as imagens cinzas, tão abismados desses prodígios técnicos quanto o público de outrora. Continuamos não passando de uns meninos... 

Fotografia de Valerio Greco


A tarde se aproxima. Após um almoço rapidamente engolido – o tempo urge em Pordenone –, vemo-nos noutra sessão do programa “Films on films”, composta por obras europeias e estadunidenses, rodadas durante os anos de 1920, as quais dão destaque à máquina inventora de portentos e às estrelas criadas por ela. Entre os filmes do programa, “Meet Jackie Coogan”, rodado na Grã-Bretanha em 1924, cujo protagonista é o maravilhoso “Garoto” que Charlie Chaplin lança ao estrelato no filme homônimo, abertura do Festival de Pordenone de 2019. 

À noite, dois belos programas, entre uma sequência hilária – especialmente quando vista agora, do distanciamento temporal – de propagandas cinematográficas rodadas na Noruega nos anos de 1920. Tratam-se dos longas “Sally, Irene and Mary” (Edmund Goulding, 1925) e “Gardiens de phare” (Jean Grémillon, 1929). 


Apresentado na sessão Redescobertas, “Sally, Irene and Mary”, permite-nos efetivamente descobrir o que fez Joan Crawford cair nas graças de Hollywood. A jovem, recém-vinda dos coros da Broadway, tem a chance de protagonizar pelas mãos do talentoso Goulding, que a lança ao estrelato. Dividem a cena com ela Constance Bennett e Sally O’Neil, e as três trilham, aos olhos do público, um caminho que já fizera sucesso nas revistas teatrais da Broadway: experimentam num só tempo a pompa e o avesso do showbusiness: o brilho, a exploração, o assédio, os sonhos não realizados e as tragédias. Logo descobrirão que The show must go on é uma filosofia difícil de engolir. Valeu-nos o filme sobretudo pela descoberta, não só de uma ainda verde Crawford – ótima dançarina, mas ainda inexperiente atriz – como da jovem percussionista mexicana Lorena Ruiz, aluna do programa musical da Giornate deste ano, que se juntou na última hora ao ensamble responsável pelo acompanhamento musical do filme, e arrasou. 


O dia encerrou-se com “Gardiens de phare”, integrante da sessão O cânone revisitado, obra francesa rodada com impressionante artesania nos estertores do cinema silencioso. Esse belo canto dos cisnes mescla experimentações visuais e enlace melodramático. Narra a história de dois faroleiros, pai e filho. Este, recentemente mordido por um cachorro, será acometido pela raiva enquanto ambos estão isolados no farol, durante uma tempestade. Grémillon burila com invulgar perspicácia o tempo e o espaço da ação, construindo uma narrativa arrastada e de tangível claustrofobia. O pigmento azul que tinge a película, mais que mero adorno, contribui à contação da história, transformando o farol no espaço do mar, o que explicita imageticamente o naufrágio simbólico das personagens. Um grande filme, que merece a revisita de tempos em tempos. 

domingo, 20 de setembro de 2009

Gloria Swanson & Cecil B. DeMille

Quem gosta dos clássicos de Hollywood certamente já passou por "Crepúsculo dos Deuses" (1950), o mais contundente filme sobre os bastidores da capital do cinema e, em minha opinião, um dos melhores filmes de todos os tempos. Depois de passear pelos extras da baratíssima edição de "Sunset Boulevard" distribuída pela Paramount, é bastante provável que o espectador se sinta compelido a procurar os filmes em que Miss Gloria Swanson foi dirigida por Cecil B. DeMille: retratado em "Sunset..." como um atarefado diretor que nem remotamente deseja tirar do ostracismo a outrora famosa atriz muda. É também possível que esse espectador procure saber um pouco mais sobre os outros artistas esquecidos que também comparecem no filme de Billy Wilder (Erich Von Stroheim, Hedda Hopper, Buster Keaton). Eu, pelo menos, saí atrás de toda essa gente.

O passeio me levou até "Don't change your husband" (1918), "Male and Female" (1919), "Why change your wife" (1920) e "The affairs of Anatol", películas em que uma Gloria Swanson no auge de sua juventude, beleza e popularidade é dirigida por Cecil B. DeMille.



Essas películas exemplificam bastante bem as diretrizes que determinavam o trabalho de DeMille
nos anos de 1910 e 1920. São comédias que seguem a linha das comédias de costumes teatrais, que buscam corrigir os vícios pelo riso. Daí a algumas delas não terem muita graça, por tentarem defender uma middle class morality de modo demasiado intencional. Por exemplo, a primeira e a terceira, "Não troque de marido" e "Porque trocar de esposa?", respectivamente. A apresentação do casal assemelha-se. No primeiro filme, a câmera delicia-se em apresentar pouco a pouco um marido relaxado: ele joga a sujeira do cachimbo no chão da sala, coloca os sapatos sujos sobre o lenço imaculado da esposa e não dá qualquer atenção a ela. A pobrezinha, que anseia por romance, encontra-o pouco depois no galanteador que a distraía no jantar em comemoração ao aniversário de casamento dela - ao qual o marido se esquecera de comparecer. No segundo é a vez de a câmera desnudar a pudica esposa que, por ser muito casta, acaba jogando o marido no colo de uma vamp (a hilária Bébé Daniels, num de seus muitos papéis de coquete espevitada). Num e noutro filme pululam as mensagens moralizantes do diretor, por meio de inúmeros intertítulos longuíssimos. A conclusão de ambos é: marido e mulher devem permanecer unidos para tentar resolver os problemas conjugais, pois nem sempre (nunca, de acordo com a filosofia demilliana) é bom negócio investir num novo consórcio. A leitura da questão é pretensamente inovadora quando DeMille propõe, em "Why change your wife", que a mulher deve deixar o puritanismo de lado para, de vez em quando ser também "amante" do marido. Porém, a dica parece servir unicamente ao objetivo de sustentar o lar burguês num momento em que não era tão difícil de se conseguir um divórcio (tanto que, nos dois filmes, o casal se divorcia, e os litigantes são punidos com segundos consórcios pouco deleitosos).
Além de acreditar que o casamento deveria durar até que a morte separasse o casal - mesmo que as diferenças já os tivessem separado muito antes -, outra crença alimentada pelo Sr. DeMille é a da estratificação das classes sociais, e isso fica muito claro em "Male and female", conto do mordomo que desejava a patroa rica mas, consciencioso de sua posição social, resolve casar-se com a criadinha sensaborona. O casamento entre a patroa e o empregado - enamorados um do outro - quase acontece. Isso enquanto ambos estão numa ilha deserta, onde vão parar depois que afunda o barco onde estão os ricos, o mordomo e a criada. Lá fundam uma nova sociedade, baseada na habilidade de cada um, e onde, pasmem, é a vez do esbelto mordomo tornar-se rei (literalmente). Só assim, superior à mocinha, ele poderia tê-la. O idílio dura pouco, pois os desaparecidos são resgatados, mas mesmo que não fossem, e que o casamento se consumasse, perduraria a visão machista do Sr. DeMille.

Mais agradável é "The affairs of Anatol", onde há mais bom humor na narração das situações em que se envolve o "cavalheiresco" jovem Anatol (interpretado pelo belo Wallace Reid num dos últimos papéis de sua breve carreira), sempre às voltas com a salvação das belas mulheres. Os intertítulos, apesar de continuarem longos, são sarcásticos: "O cavalheiro andante só quer fazer o bem, mas o que sua esposa pensa disso?"; "Se bem que ele não iria querer salvar a moça se ela não fosse tão bonita, e ela não iria querer ser salva se ele não tivesse os ombros tão largos", coisas do tipo. Além disso, as interpretações são bastante satisfatórias. Gloria faz uma mocinha recém-casada bem engraçada: frívola, tímida, ciumenta. Wallace Reid tem uns trejeitos hilários - destaque para a cena em que ele, depois de ser enganado por uma Dulcineia e abandonado na estrada pela esposa, olha para uns patos ("Greetings, brothers", diz o intertítulo). Bébé Daniels novamente aparece, e é uma das personagens mais interessantes dos silents de DeMille: uma vamp de aparências, que habita um misto de caverna do Drácula e pirâmide do Egito, e tenta vampirizar o bobo Reid no intuito de conseguir o dinheiro para a cirurgia de seu esposo.

No conjunto, a colaboração Gloria/Cecil deixou produções de inegável valor histórico, mas que não são vistas com muito prazer nos dias de hoje. Não me agrada o modo como ele pinta as mulheres: ou bonecas tolas, seduzidas por galanteadores baratos, ou mulheres descaradas, desejosas especialmente de limpar os bolsos dos homens. E pinta de modo grave, quase sempre com o dedo em riste. Por isso, me diverti tanto com Bébé na pele da mulher casada que amava o esposo e para quem o vampirismo era meramente uma carreira artística... Mas, por outro lado, nesses filmes DeMille pôde vestir Gloria com os trajes mais extraordinários do final de 10 e começo de 20. E que, na época, fizeram tremendo sucesso inclusive por aqui. Não posso deixar de pensar o quanto a descrição de uma das personagem do João do Rio teve influência da atriz: "O seu passo tango, o exagero das modas, que lhe davam o aspecto semipersa (...)" (abaixo e acima há uma porção de fotos da atriz usando trajes estravagantes).
Gostei muito de ver esses filmes, que esclarecem a leitura inteligente que Billy Wilder e Gloria Swanson fazem da época - e a leitura irritou DeMille, o qual rompeu relações com Wilder, segundo a trívia hollywoodiana. Mas prefiro Gloria em "Sadie Thompson", (1928) ou então no sonoro "It's tonight or never" (1931). Aliás, sobre este, meu preferidíssimo, ainda falarei futuramente.