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quinta-feira, 20 de outubro de 2011

“A Roda da Fortuna” (1953): brilhante homenagem ao cinema musical

“The Band Wagon” compôs a lista dos filmes de Vincente Minnelli que o Centro Cultural Banco do Brasil recentemente apresentou ao público amante do cinema.
A mostra dedicada ao diretor ofereceu aos curiosos a possibilidade de conhecer um dos mais competentes artífices da Hollywood clássica e aos cinéfilos, o prazer de rever clássicos do musical e do melodrama – gêneros que Minnelli manipulava com maestria – desta vez na tela grande. Eu me encaixo na segunda categoria. No CCBB carioca eu vi esse musical pela – suponho – vigésima vez. E mesmo sabendo de cor e salteado canções, diálogos e sequências, senti emoção análoga àquela que me pegou quando eu o vi pela primeira, ainda moleca. Análoga não, maior. E não só pelo tamanho da tela: minhas andanças pelo mundo da sétima arte me permitiram comprovar que esse filme é um dos mais sofisticados musicais da história do cinema.
Curioso é que essa sofisticação é construída a partir da mais óbvia das premissas. A obra trata dos bastidores da produção de uma comédia musicada a ser encenada na Broadway. Segue, portanto, a trilha dos “Broadway Melody” (de 1929, 1935, 1937, 1940), de “Rua 42” (24nd Street, 1934), “Footlight Parade” (1933), “Ciúme, sinal de amor” (Berkleys of Broadway, 1949) e um cem número de backstage movies que ganharam as telas desde que o cinema começou a falar e a dançar. Soma-se a isso o fato de sua produção ter sido contratada tendo-se em vista a utilização de um cancioneiro fechado (pertencente aos compositores Arthur Schwartz e Howard Dietz), a partir do qual deveria ser desenvolvido o enredo. Coube à unity de Arthur Freed, da MGM, rodar um filme que visasse, sobretudo, engordar os caixas da companhia. Trata-se, portanto, de uma obra realizada dentro do mais severo controle do estúdio, o que aparentemente lhe roubaria qualquer originalidade.

Os trigêmeos encrenqueiros Astaire, Febray e Buchanan

Porém, o acaso quis que as canções fossem escolhidas com extremo bom-senso por Betty Comden & Adolph Green, que no ano anterior haviam roteirizado “Cantando na chuva”, o que por si só patenteia a eficiência de ambos. A dupla produz um roteiro num só tempo limpo, profundo e bem-humorado, amarrando-o tão bem às canções que é como se elas brotassem naturalmente dele. O principal responsável por encarnar a graça desenhada pelo casal é Fred Astaire, monstro sagrado do cinema musicado que desempenha um ator decadente do teatro cômico-musicado tentando voltar ao palco da Broadway pelas mãos de Lily e Lester Marton – exceto no que toca à decadência, Fred era uma espécie de irmão do personagem que põe em cena. Oscar Levant e Nanette Fabray desempenham, em cena, os alter-egos de Comden e Green. Fred e Cyd Charisse representam personagens que ecoam seus passos artísticos.

O sapateador

Fred ingressou no show business ainda criança. Sapateou ao lado da irmã até ela se casar e deixar o meio artístico; só aí ele pensou seriamente no cinema. Cyd era bailarina de formação e fora contratada pela MGM para tomar parte no coro de “Ziegfeld Follies” (1945), uma das stravaganzas da companhia. Embora o studio system criasse para eles personas artísticas que se completavam, o certo é que ambos eram artistas muito diferentes: um popular, outro clássico. Comden & Green aproveitam-se disso, fazendo essa diferença emergir como cerne da história. Com isso, transformam “A Roda da Fortuna” no palco onde se encena o conflito indissolúvel entre a arte da elite e a das classes populares. Porém, isso se dá sem que a graça se perca. Embora o filme tenha um forte viés crítico, ele não deixa de ser adorável; e para que isso ocorra, Jack Buchanan desempenha papel fundamental.
Buchanan era ator cômico de carreira sólida no vaudeville londrino. Em “The Band Wagon” ele é Jeffrey Cordova, um “faz tudo” comum no meio artístico naquele tempo – meio que tinha revelado Orson Welles (diretor-autor-ator de “Cidadão Kane”) uma década atrás. Jeffrey é um artista “sério” – a primeira cena sua flagra-o desempenhando a tragédia “Édipo Rei”.

Édipo Rei sai de cena...

Todavia, ele será caracterizado desde o início como personagem cômico – repetindo uma constante na produção cinematográfica de Hollywood: a defesa de seu cinema a partir do rebaixamento da arte considerada “erudita”. Daí, por exemplo, o deslizar jocoso da câmera pelo cartaz de propaganda da tragédia na qual seu personagem entrava como tradutor, diretor, produtor e protagonista. Jeffrey desempenha um megalômano que rejeita a arte ligeira em prol do drama, considerado por ele um produto cultural superior. Por isso, tão logo põe as mãos no roteiro dos Marton, desejará transformar uma “light play” num “drama with stature and meaning”.
Exemplo cabal da graça com que o assunto é tomado encontra-se na extraordinária “That’s Entertainment” – canção que, dali em diante, passaria a definir o show business (Gene Kelly rodaria, entre os anos de 70 e 90, o trio de documentários do mesmo título – um sensacional tributo ao cinema musicado da MGM). A canção é usada duas vezes. Na primeira, quando os Marton apresentam o entrecho da comédia a Jeffrey e descobrem que ele deseja transformá-la no tal “drama de estatura e significado”. Questionado sobre o retorno financeiro que teria uma produção tão erudita, o homem afirma que tudo era entretenimento: desde os trejeitos de um palhaço até o drama vivido por Hamlet. A partir daí, os roteiristas e o sapateador decadente entram em seu jogo, dando vida a um genial número musical, perfeito pelo modo como a cenografia potencializa o sentido da música. Segue o vídeo – nunca é demais (re)ver uma obra prima:

Jeffrey transformará a “peça graciosa” escrita pelos Marton – peça em que o enredo frouxo serviria apenas como desculpa para a introdução de números musicais; bem ao gosto do teatro musicado daqueles tempos – numa versão moderna do mito de Fausto. Num drama de tamanha estatura ganharia o papel feminino principal a bailarina clássica interpretada por Cyd Charisse, a quem o público é apresentado num solo de ballet de tirar o fôlego.

A bailarina

Cyd e Fred – Gabrielle Gerard e Tony Hunter – metaforizam desde o princípio o conflito entre a cultura europeia e a norte-americana. Falei sobre isso com algum cuidado posts atrás, quando discuti o papel dos musicais de Rooney & Garland na afirmação da cultura ianque. Remeto os leitores àquele texto para ir direto ao ponto aqui. Se, durante a primeira metade do filme, sobram desentendimentos e farpas entre o casal principal, ambos acabarão por descobrir um meio termo que torne possível sua relação – primeiro no âmbito profissional e depois no afetivo. Isso não enquanto ensaiam o Fausto moderno, mas sim durante o belíssimo dueto Dancing in the Dark, no qual Cyd e Fred explicitam que o que os diferencia é o gênero ao qual cada um resolveu se dedicar, não a beleza com que o fazem.

O desenlace da história é óbvio – portanto, deem-me licença de dizê-lo: a megalomania de Jeffrey mostra-se infrutífera, levando-o a entregar a batuta da direção da peça a Tony Hunter. Uma vez na dianteira, o sapateador poderá realizar com os Marton o projeto original. De bailarina clássica, Gabriele Gerard torna-se vedete de teatro de revista – o sonho de consumo da Hollywood clássica... E todos vivem felizes para sempre – inclusive eu, pelo menos cada vez que vejo o filme. Mas não sem antes entoarem uma paródia de “That’s entertainment” que subverte o sentido da original. Se, na versão entoada no início do filme, todo e qualquer gênero serviria para entreter o público, no final fica claro a supremacia do teatro leve sobre o erudito:

A show that is really a show
Sends you out with a kind of a glow
And you say as you go on your way
That Entertainment!
A song that is winging along
or a dance with a touch of romance
is the art that appeals to the heart
That's Entertainment!
Admit we're a hit and we'll go from there
We played a charade that was lighter than air
a good old fashioned affair
as we sing this finale
we hope it was up your alley
No death like you get in Macbeth
No ordeal like the end of Camile
This goodbye brings a tear to the eye
The world is a stage
the stage of a world of entertainment!

Supremacia que, em última instância, é estendida para o próprio cinema americano – que tantas críticas ouvira desde o início do século por ser considerado um arremedo da arte teatral; por só servir de diversão barata às classes pobres; por destruir as personagens criadas para os palcos and so on... A releitura da canção passa em revista o enredo do filme: o palco (e, por extensão, a tela), é um mundo aberto ao entretenimento, portanto, um espetáculo que desejasse tocar o coração do público deveria deixar de lado o drama em prol da “música que voa como um pássaro” e da “charada que é mais leve que o ar”... Coisa que o filme faz de sobra, brincando com gêneros e tipos explorados pelo cinema em seus primeiros 50 anos de existência (os desentendimentos amorosos, os quiproquós cômicos, a trama detetivesca, a mulher fatal), submetendo-os todos à lógica do musical de estúdio. Porque “A Roda da Fortuna” é, acima de tudo, uma defesa arrebatada e arrebatadora do musical da época de ouro do cinema. E se esses argumentos ainda não convenceram o leitor a verem-no, então o vejam porque ele é lindo, lindo, lindo.